Aquele momento em que você descobre que um petista era mais sensato que o Bolsonaro:
Venezuelano embaralha debate no Congresso
Críticas de Chávez à globalização provocam entusiasmo tanto na esquerda como na direita
BRASÍLIA - O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que se encontra hoje com o presidente Fernando Henrique Cardoso em Manaus, transformou-se em peça de discussão política entre governistas e oposicionistas no Congresso, embaralhando os conceitos entre esquerda e direita no Legislativo. As críticas do presidente venezuelano à economia globalizada e a sua iniciativa de promover uma ruptura institucional levaram ao entusiasmo o líder do PC do B, Aldo Rebelo (SP), e o deputado e capitão do Exército na reserva Jair Bolsonaro (PPB-RJ), e são usadas pelo líder do governo no Congresso, deputado Artur Virgílio Neto (PSDB-AM), como arma contra o presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, que há algumas semanas classificou Chávez de "fantástico". Mais do que isto: recolocou a discussão sobre a necessidade ou não de preservar o sistema representativo de poder no Brasil.
Exibindo jornais publicados por militares de reserva em que o coronel presidente venezuelano aparece fardado e é descrito como "autor de uma autêntica revolução pelo voto", Jair Bolsonaro comenta que "há uma revolta popular latente contra a democracia brasileira, porque o País está empobrecendo e no atual sistema político um homem sério só consegue ser governo se propõe uma ruptura".
Para Aldo Rebelo, "a democracia no Brasil é relativa e não tem o direito de se sentir segura". "Não sei se será pelos mesmos caminhos, mas o que aconteceu lá pode acontecer aqui", disse.
Ressalvando que o PT não está pregando este roteiro para o Brasil, o secretário de Relações Internacionais do partido, Marco Aurélio Garcia, acredita que "há espaço para mudanças profundas no campo institucional" e disse que a reforma política que está sendo agilizada pela cúpula dos grandes partidos visa impedir o surgimento de um homem "fora do esquema" como Chávez. "A iniciativa do PSDB, PFL e PMDB para restringir a proliferação partidária pode culminar na instituição do parlamentarismo para o sucessor de Fernando Henrique e mostra como as instituições estão fragilizadas."
Mesmo considerando Chávez um perigo para a América Latina, o presidente do PPS, senador Roberto Freire (PE), compartilha do diagnóstico de Garcia. "Os grandes partidos no Brasil têm de abrir o olho, para não acontecer com eles o que ocorreu com a Ação Democrática e o COPEI, que dominaram a vida política da Venezuela por 40 anos e transformaram-se em farinha graças a Chávez", disse.
O líder do governo no Congresso, Artur Virgílio, resolveu radicalizar o debate e acusa a oposição de pregar a mesma ruptura. "Não tenho dúvidas de que o MST e uma boa parte do PDT e do PT gaúcho defendem a ruptura institucional", afirmou. Ele disse que no Brasil também se vive uma conjuntura de crise do sistema político e não poupa ataques ao presidente venezuelano. "Chávez é uma figura soturna, que desmantela as instituições em um país importante sem apresentar qualquer proposta; remete para os ditadores da América Latina na época do Cadillac do rabo-de-peixe", disse. "Ao defender Chávez, a esquerda no Brasil mostra que caminha para o hospício", disse, ressaltando que esta não é a posição do governo brasileiro sobre o presidente venezuelano, que já se encontrou com Fernando Henrique quatro vezes desde que foi eleito.
Do lado da oposição, Aldo Rebelo propõe uma aproximação do Congresso brasileiro com a Assembléia Constituinte da Venezuela, controlada por Chávez, que virtualmente dissolveu o Congresso daquele País. "É um absurdo um líder governista desmerecer um presidente de um país amigo democraticamente eleito que está seguindo todos os ritos legais para reformar a Venezuela; pretendo propor que o Congresso envie uma comissão a Caracas e recebe um grupo de constituintes em Brasília para se desfazer estas agressões", disse.
Dúvidas - Não há consenso dentro da esquerda sobre o que Chávez pode significar para a América Latina como um todo. Embora todos destaquem a contestação às políticas denominadas como "neoliberalismo" como o grande ponto positivo, há dúvidas sobre o alcance das mudanças econômicas promovidas na Venezuela e mais dúvidas ainda sobre a sobrevivência da democracia naquele País. "Chávez está sendo beneficiado pela alta do preço do petróleo e adotando uma linha cuidadosa do ponto de vista econômico, propondo apenas políticas compensatórias", disse Garcia, para quem "o importante é que no campo econômico ele está dentro de uma corrente predominante na Argentina, com Fernando de la Rúa, no Chile, com Ricardo Lagos, no México, com Cuahtemoc Cárdenas, e no Uruguai, com Tabaré Vasquez, todos candidatos a presidente à esquerda dos atuais governos e que querem rediscutir a linha econômica", afirmou, ponderando que no campo político "existem componentes autoritários na imagem de Chávez e não se pode descartar o aparecimento de uma ditadura". Para Aldo Rebelo, "não vai haver um regime totalitário porque Chávez se apóia em forças empresariais e de centro que estão longe de pretender segui-lo de forma automática". Roberto Freire afirma que "a Venezuela é mais um exemplo na América Latina de mudança no paradigma econômico, que está expulsando as forças tradicionais que aderiram ao neoliberalismo", mas advertiu: "Era melhor que lideranças expressivas como Lula achassem mais fantástico alianças de convergência entre a esquerda e o centro, que acontecem em outros países."
Intelectuais - Mesmo no plano internacional, intelectuais de esquerda receiam a consolidação de uma ditadura na Venezuela. "Enquanto ele se afastava entre suas escoltas de militares condecorados e amigos de primeira hora, me estremeceu a inspiração de que eu havia viajado e conversado à vontade com dois homens opostos: um a quem a sorte empedernida lhe oferecia a oportunidade de salvar seu País, e o outro, um ilusionista, que podia passar para a história como um déspota a mais", escreveu o escritor colombiano Gabriel Gárcia Márquez , marxista e prêmio Nobel de Literatura, no fim de uma reportagem-perfil de Hugo Chávez feita para o jornal argentino La Nación, publicada em fevereiro deste ano.