Noites sem sonhos & sonhos acordados
Uma amiga minha costumava dizer que “se você quer surpreender alguém conte a verdade”, então é isso que farei aqui. Para quem não me conhece, meu nome não é Rosca J. R. Tudor, esse é apenas um pseudônimo que criei para participar de um grupo literário chamado Ecos e acabou ficando, pois não tenho interesse algum em expor minha verdadeira identidade.
Ecos começou sendo chamada de EcOS, se referindo a “mostra literária” dos “Escritores e Cronistas da Outerspace”. Outerspace é um fórum de discussões sobre videogames e variedades do qual participei de 2001 até 2015. Em 2014 criamos a EcOS, que significa “Escritores e contistas da Outerspace”. Sim, é um acrônimo meio cagado, pois o certo seria ECO, mas no fórum é costume abreviar Outerspace como “OS”, assim mesmo o “c” deveria ser maiúsculo, formando “ECOS”.
Mas isso não importa, pois não tenho intenção de falar sobre a Ecos (isso foi só um merchan suave e, sim, mudamos o nome para Ecos, para desvincular do fórum) mas, sim, de mim mesmo. Quero lhes contar algumas histórias que fizeram parte de minha vida.
Antes de tudo, é bom esclarecer sobre o meu conceito de Realidade. Não sou apreciador de conceitos definidores pois creio que, excluindo raras exceções, definir é limitar. Essa frase pode soar como um amontoado de jargões e, de fato, o é, mas ela também é honesta quando falo sobre a Realidade. Para resumir, apelando para outro jargão, “a Realidade é a nossa percepção”. Esclarecendo: para uma pessoa a realidade é aquilo que ela consegue, ou não, ver, ouvir, cheirar, tatear e degustar. Enfim, perceber.
Não importa o que você, leitor, achara de mim, mesmo que esteja certo, pois isso nada mudará as experiências que tive e aqui relatarei. Pode me considerar louco, iludido, simplório ou ignorante e talvez eu realmente o seja, apenas entenda que, a única coisa que não sou é mentiroso. Dizer “não sou mentiroso” poderia ser a minha grande mentira, mas creio que se você se prontificou a ler esse texto é porque, pelo menos, está disposto a me dar um voto de confiança. Se não confiar também não é impedimento, esse texto não é nenhuma tentativa de evangelizar alguém ou, sequer, advogar a favor de meu relato de vida. Encare isso tudo como uma peça de entretenimento ou mera curiosidade. Sei que alguns de vocês passaram por experiências parecidas e quero que saibam que, possivelmente, não estamos loucos. Para todos os outros, espero que nunca passem por esse tipo de experiência.
Minha primeira vez
Não sei dizer quando foi a primeira vez que a realidade ficou confusa. Quando eu era pequeno, digo, realmente pequeno, em torno de meus três ou quatro anos de idade, talvez mais novo, costumava sonhar com o apartamento onde cresci sendo construído. Era um sonho cheio de detalhes, os quais me recordo até hoje como se tivesse vivido aquilo, o que não seria cronologicamente possível, pois o apartamento ficou pronto antes mesmo de eu ser uma ideia na cabeça de meus pais.
Sobre o mesmo apartamento, eu costumava ter “sonhos” onde ficava deitado em minha cama, escondido sob os lençóis, olhando tudo destruído, como se acabasse de acontecer uma guerra ali. Com medo eu gritava por minha mãe e ela vinha, como se nada estivesse acontecendo. Ela se recorda até hoje disso, então não foi um “sonho dormido”, realmente aconteceu, ao menos em minha cabeça. Já ouvi “dizerem” que é comum crianças terem esse tipo de sonho e, também, alucinação. Porém até hoje nunca ouvi de um psiquiatra ou psicólogo que isso seja comum. Ok, ajudaria se eu realmente fosse a um doutor de cabeça ver o que aconteceu dentro da minha, mas é mais barato escrever um texto sobre isso.
Para mim os sonhos foram a porta de entrada para todo o desfoco ao convencionado como Realidade. Nada mais justo, afinal tive que começar por algum lugar e existe tanto a possibilidade de meus sonhos serem um processo biológico totalmente aleatório como, também, um portal que expande minha percepção ao sobrenatural. Pode ser até mesmo as duas coisas juntas. De fato, tive minha carga de leitura sobre sonhos, do científico ao exotérico, e como não estou aqui para expor preferências ou declarar favoritos me recolherei dizendo, apenas, que tem bastante coisa acontecendo entre o Céu e a Terra, então deixarei Ciência, Filosofia e Crenças trabalharem por si próprias, resumindo minhas histórias apenas ao que posso contar sobre elas.
Apesar de confundir muita coisa, não sabendo dizer o que era realidade material, alucinação ou sonhos toda história precisa de um antagonista. Eu tive o meu, por muitos anos. Nunca comentei sobre isso com ninguém e entendam que era o pesadelo de uma criança bem pequena, então com certeza era muito mais assustador naquela minha cabeça do que minhas palavras conseguirão atiçar sua imaginação, assim mesmo começaremos por aqui.
Enter Sandman
Meu inimigo noturno não era o Sandman (João Pestana, em luzitanês), era só um sádico, pedófilo, demente, supernatural, extremamente covarde e inconveniente. Na época era apenas absurdamente aterrorizante, a ponto de eu mijar na cama, acordado, só por medo de trombar ele no corredor entre meu quarto e o banheiro. Dizem que todo herói precisa de um grande vilão, mas definitivamente, não sou um herói.
Lembro bem de nosso primeiro encontro. Não só do primeiro, lembro de todos. No sonho eu estava na minha antiga escola, ainda no pré-primário (que realmente frequentava na época). Era uma daquelas escolas de bairro, com várias salas, paredes pintadas de verde musgo, adornadas com bichinhos fofinhos e coloridos, piso de azulejos vermelho telha e aquelas antigas carteiras de madeira vernizada, mas não pintada, nas quais várias mesas e cadeiras eram grudadas umas nas outras, para evitar que a criançada anarquizasse demais. Estávamos em “aula”, que era “a tia” soando aquele “blablabla blablabla”, idêntico aos adultos em um desenho do bom e velho Charlie Brown, enquanto todas as outras crianças faziam nada de maneira aleatória, como figurantes em um cenário vagabundo. Então aconteceu.
Um de meus “amigos”, que não lembro o nome, apesar dele ser a representação de um colega real, mas creio que chamava Diego (bom, decreto que agora ele assim o chamará), entra correndo de maneira escandalosa, tropeçando em tudo (sim, meus sonhos eram bem animados... a cores... 3D... surround 7.1... e alguns até tinham cheiro, sabor e todos os sentidos) e gritando de maneira efusiva, “corre que o Dadada tá vindo”.
Nota de esclarecimento: Da-Da-Da era o nome de uma música de um grupo chamado Trio. Não sei qual é dessa banda, apenas ouvi essa música e achei a coisa mais ridícula do mundo. Acontece que meus pais, sei lá por que caralhos, insistiam em colocar um disco dessa patota áudio-circense, com a referida faixa, para eu escutar quando era muito novo. Com certeza meu subconsciente, em um acesso sadomasoquista, batizou meu nêmese com o nome dessa música, de lançamento contemporâneo a seu surgimento.
Independentemente de sua gênese, o desgraçado estava vindo e, como em todo bom sonho, eu ficava cada vez mais pesado e inerte, quase pregado naquele piso vermelho, vendo o mundo ficar mais alto ao meu redor e nada, que eu queria, acontecendo.
Sim, meu sonho foi quase uma releitura de Tubarão, onde o maior inimigo é o suspense, não o digno predador marinho. Mas, ao contrário do filme do Spielberg, o “monstro” (o Dadada, não o peixe) apareceu em pouco tempo. A única maneira eficaz de descrever aquilo é com um “put* que pariu”, pois ele não precisou fazer nada para eu saber quem era, o que queria, como conseguiria e que me daria muito trabalho, apesar de ainda não ter noção do quanto.
Para resumir o Dadada: Ele era um adulto bem grande e forte, apesar de ser velho. Tinha uma pele pálida, ligeiramente amarelada e sua marca era a cabeça afunilada para os lados, parecendo o formato de uma bola de futebol americano, mas pontuda. O objetivo existencial de tal ser era perseguir crianças mordendo seus pés.
É uma descrição idiota e um objetivo idiota, mas tenham em mente que se tratava de um ser idiota... “criado pela mente de um idiota”, pensou você, com seu humor ácido. Não julgue assim tão fácil. O Dadada sempre foi compatível com minha idade e experiência de vida. Por exemplo, ele só conseguiu realmente me morder depois que eu tomei a primeira mordida real. Foi exatamente naquele ano, ainda no Pré 2, de uma menina que muitos anos depois se tornou uma boa amiga, mas na época estava em sua fase de morder e nada podia ser feito em relação a isso. O ponto relevante aqui, porém, não é ela me morder e sim que a mordida de meu inimigo doeu um bocado mais. Mas, muito mesmo! Minha cabeça conseguiu pegar um sentimento real e o materializar em sonho. E a evolução continuou. No início ele era quase um inimigo de Super Sentai, mas com o tempo se tornou um carniceiro muito eficiente. O pavor durante os sonhos era tão intenso que eu acordava berrando, suado e chorando só dele conseguir chegar perto de mim. Nossa interação era totalmente sugestiva e eu não precisava ser mordido, ou sequer pego, para ficar aterrorizado. Eu via meus amigos, parentes e familiares serem estraçalhados com grandes requintes de crueldade, noite após noite. Ele chegou até a matar minha cadela na correia de um motor automotivo e a cena foi tão real que não esqueci dela nunca mais. Mesmo no dia que essa minha cadela sumiu (quando cães fogem de casa para morrerem longe da “matilha”), eu já tinha meus dez anos, ainda pensei nele e fiquei legitimamente com medo dela ter morrido com tal sofrimento. Infelizmente nunca mais a encontramos.
Mas, tudo tem um fim. O Dadada evoluiu conforme minhas experiências de vida, mas eu também evolui, à minha maneira. Para explicar isso eu conto um pouco da minha história de vida e também experiências sobrenaturais, que são o motivo pelo qual você está lendo até aqui.
Para começar a explicar minha vida sobrenatural é melhor não começar pelo começo, mas sim por um episódio que, coincidentemente, é contemporâneo ao surgimento do Dadada.
A Casa
Eu possuía certo grau de mediunidade, sensibilidade, imaginação ou o que quer que você queira chamar. Meus sonhos acordados eram tenebrosos, meus sonhos dormidos muito realistas e convincentes, mas o principal é que eu via coisas. Eu não “via pessoas mortas”, apenas coisas que, segundo a Ciência, não deveriam estar ali.
Tenho um primo que morava, com meus tios, em uma casa muito grande e antiga. Era um sobrado enorme no bairro paulistano da Consolação, com uma escadaria longa dando acesso à entrada, pisos de madeira, janelas que pareciam ter saído de um filme de terror (e isso não é minha imaginação, tenho fotos para provar o péssimo gosto dos meus tios na escolha por aquele imóvel) e tudo mais que precisa para dar errado.
Casas com piso de madeira naturalmente fazem vários barulhos, mas quem as conhece uma hora aprende a distinguir estalos e ruídos aleatórios de sons específicos causados por determinadas ações. Aconteciam coisas bizarras, como todo mundo estar no piso inferior e passos serem ouvidos no andar de cima. Luzes acendiam sozinhas em cômodos sem ninguém. Armários trancados se abrindo sozinhos. Respiração atrás da cortina do banheiro bem naquela hora que é complicado você levantar da privada e sair correndo. Muitas dessas coisas são questionáveis, certamente, mas a frequente ocorrência delas e a maneira que grande parte de meus familiares mantem as mesmas lembranças nítidas nos deu muito sobre o que pensar.
O episódio que fez eu realmente entender essa minha relação com o “não material” foi um dia que eu saí do quarto do meu primo e ouvi, vinda do escuro quarto dos meus tios, do outro lado do corredor, uma voz me dizendo “desce”, no tom mais imperativo imaginável. Não havia ninguém lá. Meu primo estava no quarto atrás de mim e todas as pessoas estavam bem visíveis na sala, logo abaixo. Não foi eco, alguém fazendo graça ou qualquer coisa assim. Eu ouvi, assim estou convencido. Obvio que desci correndo para a aba de meus pais.
Foi na hora de ir embora quando finalmente aconteceu o que tinha para acontecer. O fato comum para minha família: Eu estava descendo as escadas, sem ninguém perto, quando cai de um jeito esquisito e comecei a rolar degraus abaixo até o nível da rua. Todos os três adultos presentes (meus pais e minha tia) viram eu ser arremessado. Alucinação coletiva? É possível. Minha versão? “Segura no corrimão”, me ordenou a mesma voz, mas não existia um corrimão para eu segurar. Enquanto eu olhava para os lados procurando por um senti um pé enfiando uma solada bem servida nas minhas costas. Pode ser desatenção de uma criança? Certamente, mas eu sei bem como é sentir o peso do pé de alguém te chutando, e me refiro a esse sentimento em relação à coisa física e não à solada filosófica, que também conheço bem, por isso sei que são coisas bem diferentes.
Contato Total
Quando fiz dez anos de idade decidi iniciar a maior luta de toda minha vida. Foi o momento que decidir parar de ser medroso. Como isso foi difícil. Por mais jovem e inexperiente que eu fosse admito, sem modéstia, que consegui planejar bem a coisa toda. Meu grande problema não era de ordem noturna ou sobrenatural, mas sim real, obvio e escancarado em minha frente. Eu era menor que todo mundo, mais fraco e mais mole. Isso tinha que mudar o mais rápido possível.
Depois de peregrinar por diferentes estilos e academias eu finalmente encontrei um tal de Sérgio Batarelli, um dos percussores dos eventos de artes marciais mistas no Brasil como eventos organizados. Em 1989 conheci uma de suas academias, junto de um estilo que ele criou, chamado Full Contact (esclarecimento: Full Contact era uma modalidade que englobava vários estilos marciais, ele apenas batizou seu estilo com esse nome, pois o treinamento visava a participação nesses campeonatos, muito populares na época), que não vou descrever muito, mas foi a mudança que eu precisava em minha vida. Não vou dizer que virei o Daniel San, porque ele era um v******* e eu estava mais para integrante de uma versão da Cobra Kai sem aquele vilanismo caricato (ou qualquer tipo de vilanismo, pois aprendíamos a ser esportistas honrados).
O mais importante que aprendi ali não foi a dar porrada e sim a parar de achar que eu era feito de isopor. Aprendi a me respeitar muito mais e também não deixar os outros me diminuírem. Parei de ter medo de reagir.
Claro, a “evolução” disso foi me tornar um babaca chato que briga todo dia na escola, mas isso não é culpa do Batarelli ou do Full Contact, o “mérito” é só meu. Acontecia que em minha infância eu era um covarde que fugia ou, geralmente, paralisava e na adolescência virei um covarde que se escondia atrás da violência. Porém, como eu avisei, foi um processo de evolução, e esse tipo de coisa não acontece de um dia para o outro. Comigo demorou anos, mas foi um processo contínuo, até o dia que fiquei corajoso o bastante para fugir de uma luta (desnecessária) contra alguém mais fraco apenas porque, por mais que ele estivesse muito errado, eu podia fugir e deixar quieto. Esse foi o fim de todo esse processo, apesar que sempre evoluo um pouco mais nesse quesito. Mas para essa história, da casa da Consolação, eu precisava dar um fim. E dei.
Evolução
Entre meus quatro e doze anos de idade a minha experiência com o sobrenatural só se intensificou. Mais vozes, mais visões, mais pesadelos e cada vez menos coragem. Mas ela teve começo e fim.
Era comum eu escutar vozes no meu quarto durante a alta noite, especialmente quando acordava de madrugada. Obviamente não dá para separar tão bem o que era sonho ou poderia ser real, mas existiram dois momentos, sobre esse episódio, onde eu tenho certeza que foram reais. O primeiro foi ser chutado na escada, aos quatro anos. O segundo foi uma noite onde uma maldita voz ficava sussurrando meu nome, ao lado de minha cama. Isso era muito comum durante os anos, só que especificamente nesse dia meu sentimento não foi medo e sim aborrecimento.
Um pouco de reflexão sobre a questão do “medo” com o “aborrecimento”. O medo é um sentimento sempre relacionado ao desconhecimento. Se não conhecemos algo o temeremos de alguma maneira. Se o temor for grande acaba virando medo. O aborrecimento, porém, sempre foi, no meu caso, um sentimento decorrente em exatamente todas essas situações. Me aborrecia a maneira que essa entidade, ou seja lá como você queira chamar, me tratava. Experimenta ficar cornetando a vida de uma pessoa! Experimenta toda noite ficar falando na orelha de quem quer dormir! Experimenta chutar as costas de alguém, especialmente quando esse está descendo uma escada tosca! Dizer que isso tudo me aborrecia é um put* eufemismo. Nada disso “me aborrecia”, isso tudo me deixava puto pra c***lho. Mas eu ia ficar bravinho com quem? Com uma voz sem rosto? Com alguém que me chuta mas não tenho como revidar?
Isso acabou em menos de meio segundo, estimo. Eu estava deitado de lado, virado para a parede encostada na esquerdo da cama. A voz chamou meu nome algumas vezes, não contei, suponho que entre quatro e cinco. Pedi, sem o mínimo polimento, “cala a boca e me deixa dormir”, então me chamou mais uma. Como eu falei, a academia do Batarelli era muito boa. Em um movimento muito rápido (modéstia à parte, fui rápido mesmo) girei meu corpo da esquerda para direita acertando um soco rodado de destra no meio da fuça de alguém. E, sim, depois de mais de ano de Full Contact eu já reconhecia exatamente como era acertar uma de destra no meio da fuça de alguém. Quando olhei para o espaço ao lado de minha cama ele estava vazio. Voltei a dormir e quando acordei minha mão direita estava levemente inchada, como deveria ficar caso acertasse um soco desse em alguém.
Ao lado direito de minha cama não tinha nada que eu pudesse acertar sem querer enquanto dormia, não foi parede, móvel e nem algum familiar, então tudo me leva a crer que não foi um sonho. Após esse dia duas coisas aconteceram. Primeiro eu nunca mais ouvi vozes. Segundo eu nunca mais sonhei com o Dadada.