Uma quarentena sem fim - Revista Oeste
Durante a peste negra, que matou 200 milhões de pessoas no século 14, os navios que aportavam na Europa com infectados alçavam uma bandeira amarela. Era o sinal para as autoridades recolherem e confinarem os doentes, a fim de tentar impedir a propagação da enfermidade. Tratava-se da única providência possível, naqueles tempos obscuros, quando a ignorância atribuía flagelos desse tipo a castigos divinos. Ou, como se passou a acreditar, mais tarde, a emanações de matéria orgânica em decomposição, os miasmas.
Com o tempo, o alcance das quarentenas foi sendo ampliado para isolar cidades inteiras, e até o final do século 19, quando surtos de cólera e varíola eram frequentes, elas constituíam a receita de praxe contra epidemias. Como explicar, no entanto, que mais de 600 anos depois, na atual “era do conhecimento”, nosso único recurso contra o coronavírus seja a secular fórmula medieval de trancafiar todo mundo em casa?
O paradoxo torna-se ainda mais chocante quando se considera que, até alguns meses atrás, acreditávamos estar diante de um futuro de possibilidades inimagináveis. Um mundo em que a robótica iria substituir o trabalho braçal, a bioengenharia viabilizaria o desaparecimento de doenças pela manipulação genética e a produção de órgãos humanos em 3D revolucionaria a medicina. Em vez disso, a covid-19 veio nos lançar de volta a um estado de perplexidade e ignorância comparável ao de nossos antepassados da Idade Média.
Apesar do acesso a um volume de informações sem precedentes, vemo-nos tateando em meio a uma densa névoa, à mercê de explicações desencontradas fornecidas por políticos, médicos, jornalistas e cientistas — boa parte delas sem fundamento, embora divulgadas como verdades incontestáveis. Só uns poucos epidemiologistas admitem que quase nada se sabe sobre o vírus, e a poderosa indústria farmacêutica corre contra o tempo atrás de alguma solução eficaz, de olho nas bolsas de valores e na promessa de lucros colossais.
Enquanto aguarda, o mundo permanece paralisado, como se bilhões tivessem sido afetados simultaneamente por algum feitiço sobrenatural. No começo, como se recorda, o
lockdown e o
social distancing, termos atualizados para a velha quarentena, seriam medidas emergenciais. Depois, criou-se o consenso de que eles deveriam durar até o tal achatamento da curva, cuja projeção varia muitas vezes conforme os humores do governante de plantão.
Mas, à medida que a doença e o pânico ganhavam terreno, o #fiqueemcasa se converteu num mantra hipnotizante e definitivo.
Agora, já se especula que o único jeito de conter a pandemia será prolongar o “isolamento social” por até um ou dois anos. Ou aceitar que ele se torne o “novo normal”, um confinamento sem fim, como alertaram dias atrás o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e seu colega italiano, Giuseppe Conte. Esse risco se afigura ainda mais concreto diante da “segunda onda” de infecções registrada em países como o Irã e a China, que já remeteu ao confinamento mais 100 milhões de pessoas. E sobretudo diante das mutações detectadas no coronavírus, as quais dificultam a busca de remédios e vacinas.
O fato de as autoridades sanitárias, a comunidade científica e a indústria farmacêutica terem se mostrado até agora incapazes de nos oferecer saídas para esse estado de coisas é ainda mais intrigante tendo em vista que nenhuma dessas entidades pode alegar ter sido pega de surpresa pela pandemia. Afinal, nas últimas duas décadas, desde a ocorrência da sars, a síndrome respiratória aguda grave, em 2002, o mundo vem sendo castigado por uma sucessão de epidemias que já mataram cerca de 600 mil pessoas. Entre elas, a gripe A ou suína, mais conhecida no Brasil como H1N1 (2009-2010), a mers, síndrome respiratória por coronavírus do Oriente Médio (2012), e a sinistra ebola (2014-2016), cuja taxa de mortalidade pode atingir 90%.
Durante esse período, assistiu-se a uma considerável mobilização de instituições de pesquisa e órgãos multilaterais com o objetivo de planejar protocolos para o enfrentamento dos próximos surtos. Mas não se chegou a nenhum resultado efetivo, como lembrou em entrevista recente à Rádio France Culture o historiador das ciências francês Guillaume Lachenal, professor do Institut d’Études Politiques de Paris (Science Po).
De fato, em vez de uma resposta articulada global apoiada em consensos científicos, o que vemos é um lamentável espetáculo de disputas de poder em praticamente todas as instâncias. Que expõem os muitos interesses conflitantes em jogo e dificultam o encaminhamento de soluções. A começar pela Organização Mundial da Saúde, a OMS, cuja autoridade vem sendo minada há anos pelo caráter político de suas decisões — distorção evidenciada mais uma vez durante sua reunião anual da semana passada, transformada em palco de propaganda do Partido Comunista Chinês.
E, se a exploração política e comercial da pandemia por governantes medíocres de diferentes nacionalidades e coloração ideológica não chega a ser surpresa, a estridência das brigas dentro da comunidade científica causa espanto. Como a recomendação de
lockdown foi transformada em dogma, quem quer que proponha abordagens alternativas, independentemente de suas credenciais científicas, torna-se imediatamente alvo de linchamento de reputação. É o caso, entre outros, de pesquisadores de renome como o microbiologista francês Didier Raoult, professor da Universidade de Ciências Médicas de Marselha, e o virologista brasileiro Paolo Zanotto, do Departamento de Microbiologia da USP.
Não é de hoje que quem questiona visões consolidadas na esfera médica e científica paga caro por desafiar a ortodoxia.
O exemplo mais célebre talvez seja o médico húngaro Ignaz Semmelweis, que descobriu no século 19 as causas da febre puerperal, infecção que matava 10% das parturientes à época. Por levantar a hipótese de que uma das razões seria a falta de assepsia de seus colegas, que não desinfetavam adequadamente as mãos entre autopsias e partos, ele foi proibido de exercer a medicina e internado num hospício, onde morreria em circunstâncias misteriosas. Sua tese acabaria confirmada apenas uma década mais tarde pela teoria dos germes de Louis Pasteur.
Essa história, que inspirou a peça do dramaturgo Henrik Ibsen
O Inimigo do Povo, é apenas a mais conhecida de uma longa série de casos de perseguição a pesquisadores que descobriram verdades inconvenientes. Como o da epidemiologista inglesa Alice Stewart, que constatou na década de 1950 a relação de causa e efeito entre o uso de raios X em grávidas e alguns tipos de câncer infantil. Em consequência, foi vítima de uma campanha de difamação tanto por parte de seus pares da classe médica, encantados com a nova tecnologia, quanto pela indústria da radiologia e pelas agências responsáveis por sua regulamentação. Que se negaram por nada menos que 25 anos a reconhecer as evidências de sua tese antes de finalmente proibir a prática.
A ciência, afinal, não é um oráculo provedor de respostas absolutas, como pretendem muitos que a invocam para defender seus pontos de vista. Como método de conhecimento, trabalha com hipóteses, sempre sujeitas a questionamento. Também não pode ser tratada como vestal, isenta de pressões comerciais e políticas. Suas pesquisas, financiadas por verbas governamentais, de fundações e da indústria farmacêutica, estão sujeitas a influências e direcionamentos nem sempre alinhados com os interesses da saúde pública.
Nesse sentido, a covid-19 lança luz também sobre o lado perverso do modelo de negócios da chamada Big Pharma, que favorece o investimento em drogas de alto retorno mercadológico em detrimento daquelas com maior potencial de benefício social. “Apesar dos vários surtos desde 2002 e das evidências de que enfrentaríamos outra pandemia, a indústria não investiu o necessário no desenvolvimento de novos tratamentos e vacinas”, observam dois analistas desse mercado, Tahir Amin e Rohit Malpani, em recente artigo na publicação americana especializada
Stat.
Não se trata aqui de desvalorizar a importante contribuição do setor para a saúde nem de fomentar teorias conspiratórias sobre interesses ocultos.
Mas é evidente que algo não saiu como devia na resposta global à pandemia. Seis meses após a detecção dos primeiros casos na China e dois depois do reconhecimento oficial da pandemia pela OMS, continuamos capturados em uma espécie de realidade paralela. E talvez só venhamos a entender as razões desse desatino no futuro, a partir da perspectiva histórica. Como afirmou o cientista russo Valery Legasov, que desafiou a censura e ameaças de morte para revelar ao mundo as causas do desastre nuclear de Chernobyl, a verdade sempre acaba aparecendo, mais cedo ou mais tarde. “Ela está lá, queiramos vê-la ou não. […] E pode ficar aguardando por quanto tempo for necessário.”
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Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo
e da revista Veja
, na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital, conteúdo, live marketing
e relações públicas. É mestre em comunicação pela USP e estudante permanente da História.
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Vai gada, tem que fazer o lokidau pra salvar o país!