Sgt. Kowalski
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A vida dos moradores de rua de SP
No centro de São Paulo, a Praça Manoel da Nóbrega - ao lado do Pátio do Colégio, um cartão-postal da cidade de São Paulo - abriga desde o ano passado a família da faxineira Marcela, de 34 anos. Com dois filhos, um menino de 3 anos e uma bebê de 1 ano, Marcela passa o dia ao relento numa área que atrai turistas e concentra a Secretaria Estadual da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo. Próximo ao centro, Bárbara, de 22 anos, outra mãe moradora de rua desde dezembro, cria a filha de 8 meses numa barraca de camping, sob uma marquise. As duas mães são parte de um contingente de famílias desassistidas que cresceu nas ruas de São Paulo em quatro anos. Em 2015, segundo dados da prefeitura, eram 505 crianças e adolescentes nas ruas da capital. Agora, são 664, um aumento de 31%.
Levantamento feito na capital pela empresa Qualitest a pedido da Prefeitura mostra um crescimento de 60% dos moradores de rua na cidade em quatro anos - de 15 mil, em 2015, para 24 mil, em 2019. Uma segunda fase da pesquisa sobre essa população, com foco na presença das famílias nas ruas, será finalizada em maio, mas dados iniciais apontam para um fato notado pelos paulistanos ao circular pela cidade, seja em grandes avenidas ou em vias menores, dentro dos bairros.
Consultados sobre a presença de parentes na rua, pelo menos 3.634 pessoas - um terço dos 11.693 entrevistados em abrigos - confirmam ter familiares com eles nessa condição de moradia precária, como as duas mães que aceitaram falar com o Estado.
Nova moradora
“Às vezes, a gente dorme no albergue; às vezes, dorme aqui mesmo na calçada, com o meu companheiro”, contou Marcela, que vive com o desabrigado Rogério e tem filhos de outro casamento. Ao lado dos dois menores, Marcela contou na quarta-feira da semana passada, 5, que os primeiros filhos moram no litoral, “em Peruíbe”, com a família do ex-marido. Ela relatou que vivia na favela do Cimento, na Avenida Radial Leste, incendiada em março do ano passado. Cuidava da mãe, cadeirante. “Sempre morei em favela.”
Depois que a mãe morreu, sem ter onde ficar, Marcela foi para a rua e passou a viver na região central, conhecida por catadores de papel e outros moradores de barracos de lona que se acomodam à noite pelo centro, a quadras dali, na área do Largo São Francisco.
Marcela recebe doações de pessoas que trabalham na área central ou circulam pelo comércio e se compadecem com a cena de abandono. A insegurança e o medo são companhias constantes da faxineira, que está desempregada. Durante o dia, reúne seus poucos pertences e os protege com uma lona para poder se mover na área com agilidade. “A gente mantém tudo enrolado na lona porque quando passa o 'rapa' é mais difícil correr carregando as coisas”, explicou Marcela, aguardando o companheiro, pai das duas crianças com quem vive. Àquela hora, Rogério tentava garantir o almoço da família na área da Sé.
Com o menino brincando com os cachorros de uma outra mulher que mora em uma barraca ao lado, Marcela contou que gostaria de trabalhar para tirar os filhos daquele ambiente. “O Conselho Tutelar já tentou tirar eles de mim”, contou. “A gente poderia ir cuidar de um sítio, como caseiros”, imagina. “Eu já tive problema de coração, minha mãe morreu disso. Eu cuidava dela quando a gente morava na favela que queimou.”
Natal
A crítica situação de Marcela é semelhante à de Bárbara, que acaba de passar seu primeiro Natal como mãe de rua. Ela mora numa calçada de um bairro perto do centro desde 1º de dezembro. Com a bebê Laura, de 8 meses, dormindo em uma barraca, Bárbara pede que o local exato não seja divulgado. Ela teme perder a menina. Na noite de quinta-feira, acompanhada por um amigo, um baiano que também está há cinco anos perambulando, a jovem abriu a porta da pequena barraca que habita para contar sua trajetória.
“Saí de casa por problemas familiares e estou na rua tem dois meses”, explicou. A moradora de rua diz não ter qualquer ajuda de serviços oficiais da Prefeitura, conta que tem medo, que está vulnerável a todo tipo de ataques, mas não vê outra saída. Ela lembra que já recebeu visitas de agentes sociais, que ela chama de “as meninas da Saúde”.
Bárbara, na verdade, conhece bem a dureza da vida sob as marquises. Ela própria foi abandonada na infância e criou-se em abrigo de menores, onde viveu por seis anos. “A vida lá não é fácil, não”, afirmou. Para cuidar de Laura na rua, conta com a ajuda de uma tia, que igualmente moradora de rua.
Os poucos objetos que Bárbara acumula são uma barraca de camping, onde dorme com a nenê num colchão, um balde com cueiros, roupinhas e fraldas da menina e um carrinho de bebê, que à noite fica encostado na parede de um prédio de esquina, sob o alcance do olhar dela. Mãe de primeira viagem, Bárbara disse que já entrou no programa Bolsa Família, mas acredita que verá o dinheiro somente em “três meses”. Até lá, vai sobrevivendo na calçada, confiando na solidariedade dos moradores e comerciantes da região que lhe oferecem fraldas e roupas para Laura. E comida.
Especialista diz que causas são diversas
Acompanhando o drama de pessoas que vivem na rua por quase três décadas, o advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe), explicou que há múltiplas razões para o atual aumento observado na presença de crianças e adolescentes nas ruas em São Paulo. O especialista em direitos da criança e do adolescente alerta que o problema dos moradores de rua na capital vem “desde os anos 60”, mas que está em franco crescimento. Para o conselheiro do Condepe, as causas são várias: as famílias sofrem com falta de moradia, perda de renda, desemprego, uso de drogas e violência doméstica, além da ausência de um sistema público de abrigos “que proteja as crianças e adolescentes adequadamente”. “Criança assim é uma situação dramática, uma tragédia”, afirmou. “São tratadas com desdém, sofrem traumas e ficam com sequelas”, lamentou.
O que diz a Prefeitura
Segundo dados da Prefeitura, São Paulo tem 131 locais para o chamado Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (Saica), com mais de 2,3 mil vagas. A Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social conta com outros 799 serviços para crianças e adolescentes em situação vulnerável e soma mais de 95 mil vagas no sistema, em parcerias com organizações da sociedade civil que atuam na assistência social.
Depois que a Qualitest apresentou os dados do censo 2019 da população de rua, mostrando o aumento em relação a 2015, quando o estudo foi feito pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), o município “anunciou um pacote de medidas que contemplam ações integradas entre diversas áreas: Assistência Social, Direitos Humanos, Saúde, Desenvolvimento Econômico e Trabalho, Subprefeituras, Habitação, Educação, Cultura”.
Segundo a Prefeitura, a intenção é realizar ações para “garantir o acesso de crianças, adolescentes e adultos em situação de rua” à rede de ensino e também para mantê-las na escola. O projeto também prevê “a garantia, a qualquer tempo, de matrícula e transferência de crianças e adolescentes em situação de rua, para ampliar oportunidades de acesso à educação básica.”
De acordo com técnicos da Prefeitura, 260 conselheiros tutelares recém-eleitos receberam capacitação, no mês passado, para que possam atuar com a secretaria no acolhimento de crianças em situação de rua e em casos de exploração do trabalho infantil. Também será criado um Núcleo de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em situação de rua.
Uma 'cidade' de pessoas mora nas ruas
A população que vive nas ruas na capital paulista hoje é maior do que o número de habitantes de 4.109 municípios brasileiros. Comparados com os dados do censo populacional de 2010 (base do IBGE), os números apontados pela empresa Qualitest mostram que há mais gente morando nas ruas em São Paulo - 24 mil, segundo dados oficiais - do que habitantes de 4.109 municípios brasileiros. Gente que trabalha com essa população carente há mais tempo, no entanto, diz que os números divulgados pela prefeitura estão subestimados.
A seguir estão histórias de pessoas que por diferentes motivos, em diferentes momentos da vida, foram parar na rua:
Catador que tem TV e parabólica vive na rua há 29 anos
A população de rua é composta também por pessoas que estão há décadas em situação de altíssima vulnerabilidade social.
Nascido no Rio Grande do Norte, Rodrigo de Souza Lucena, de 34 anos, fugiu de casa quando tinha 5 anos e há 29 mora na rua. Dorme sob a marquise de um prédio na Praça Patriarca, onde convive com barraqueiros e catadores de papel que se acomodam no centro. Mas não reclama.
“Essa aqui chegou do Sul tem uma semana”, contou o rapaz, mostrando uma mulher calada, acomodada sobre caixas de papelão, preocupada com a demora do entregador de pizzas. Rodrigo, que é separado e tem uma filha de 11 anos, contou que a nova moradora de rua de São Paulo não gosta de falar sobre sua condição de rua.
“A gente ajuda como pode, ela trabalha comigo e recebe uma ajuda”, explicou o catador, conhecido na rua pelo hábito de conservar uma antena parabólica junto da carroça e pela qual sintoniza canais de TV na barraca. “Não é gato, não”, afirma. “Eu pago a assinatura”, contou o homem, que se diz analfabeto que tem celular e está presente em pelo menos três redes sociais: Facebook, Twitter e Instagram.
“Nós tivemos uma reunião para discutir com a Prefeitura um plantão durante o carnaval”, afirmou ele, que acredita que consegue viver bem com seu trabalho. “Eu poderia até pagar aluguel, mas não quero. Prefiro a liberdade da rua”, pondera. Integrante do grupo do Cataki, organização de catadores que recolhe materiais descartados por lojas e moradores do centro, é quase uma celebridade da rua. No cartão de visitas, que entrega com desenvoltura de empreendedor, está escrito, sobre o número do celular: “Baixe o app Cataki, catador com orgulho”.
Migrante de Goiânia mora na Barra Funda
Assentada por um programa de habitação no Residencial Real Conquista, Rua RC, 14, Q 33, lote 34, em Goiânia, Maria Helena Ferreira de Brito, de 57 anos, 5 filhos, separada do marido, viu na casa de dois quartos, sala e cozinha, recebida em 2007, como solução para sua luta pessoal por moradia. Afinal, o Real Conquista, como diz o nome, tornara realidade, em 30 de julho de 2007, o sonho da casa própria acalentado por ela desde 2004. “Uma vitória da luta de pelo menos três anos embaixo de lona”, diz Maria Helena.
E tudo com o aval de gente grande na política, como o então prefeito Iris Rezende, o então ministro Márcio Fortes, e o então governador de Goiás Alcides Rodrigues, mais deputados federais e vereadores, todos na lista de presentes na entrega das 300 casas populares no módulo 2, preparado pela Agência Goiana de Habitação, repassadas às famílias do Movimento Luta e Moradia. Os papéis com as poucas referências que ainda restam a Maria Helena estão guardados num saquinho plástico transparente, junto com carnês do Banco do Brasil de pagamentos de contas registradas no endereço de Goiânia, que ela mantém entre o que restou de seus pertences em São Paulo.
Dona Maria Helena conta que desde o ano passado teve de abandonar a casa, na capital goiana, por sentir-se ameaçada, e que em agosto chegou a São Paulo de ônibus para viver na rua, sozinha.
Documentos do Ministério Público Federal registram um pouco da saga de Maria Helena ao descreverem a desocupação violenta da área do Parque Oeste, em 2005.
“No dia 16 de fevereiro de 2005, Goiânia, capital do Estado de Goiás, foi palco de uma das maiores operações de desocupação de área urbana já realizadas no País. À área invadida, conhecida como Parque Oeste Industrial, foram mobilizados pela Secretaria de Segurança Pública, 1.863 homens, numa operação denominada Operação Triunfo, tendo como resultado 2 mortes, 14 feridos (com um lesado medular), 800 presos, e inúmeros desabrigados, sendo 934 famílias alojadas em dois ginásios de esportes, nos bairros do Capuava e do Novo Horizonte”, resume o documento do MP.
Até duas semanas atrás, dona Maria Helena estava acampada sob um viaduto do Pacaembu, no bairro Barra Funda, quando outra vez foi desalojada. Um relatório de 2008 feito por uma assistente social de Goiânia, que ela carrega com cuidado e faz questão de mostrar, constata que naquela cidade ela vivia “em situação precária (…) necessitando melhorar as condições sócio-econômicas”.
Desde 2015, Maria Helena é beneficiária da Previdência. “O que recebo não dá para pagar um aluguel”, reclama. “Em 2014, o Bolsa Família foi cortado”, emenda. ”Não quero abrigo nem albergue, quero minha casa de volta”, afirmou. “Não sou bandida”, protesta!
Corte do governo federal. Em janeiro, o governo anunciou o corte de 1,3 milhão de benefícios do Bolsa Família, alegando a necessidade de revisão no pagamento. “A metade mais pobre do Cadastro Único, que hoje está em 13,2 milhões, é o público do Bolsa Família. Então, nós fazemos averiguações periódicas, batemos os números, conferimos se essas pessoas realmente não estão tendo uma outra renda, não estão declarando. E, quando a gente bate uma informação que não fecha com a nossa, nós suspendemos o benefício”, disse o então ministro Osmar Terra, segundo material divulgado pela pasta. De acordo com o Ministério da Cidadania, a ação no Cadastro Único permitiu uma economia de R$ 1,4 bilhão.
'Tattoo' da Rua Augusta vive embaixo de viaduto na Barra Funda
Ex-dona de uma loja de tatuagens na Rua Augusta que já não existe mais, Daniele Aparecida Dalcheco, de 38 anos, perambulou por Campinas e Americana, viveu numa comunidade alternativa por seis anos e teve três filhos. As crianças hoje vivem com uma avó. Natural de Piedade, interior paulista, ela foi criada na capital, no bairro Pirituba.
Há quatro meses dormindo na rua no Viaduto Antártica, Daniele conheceu Rafael Rodrigues Vieira, de 26 anos, também morador de rua. Passaram a viver juntos desde o dia em que Rafael, a pedido dela, cortou barba e cabelo. “Tem uns 15 dias que estamos sem bebida, nos cuidando para recomeçar a vida juntos. Queremos trabalhar para vivermos juntos”, contou Rafael, ao lado da mulher. “Vamos recomeçar, um ajudando o outro”, emendou Daniele. “Cada dia sem bebida é uma vitória”, disse.
Ex-cozinheiro vira marceneiro e vive na calçada no Campo Belo
Para Luiz Gonzaga de Jesus, de 64 anos, a situação de rua não é novidade. Ele vive assim desde 2000. Paulistano, o ex-cozinheiro lembra que trabalhou com eventos em hotéis famosos na empresa de bufê de festas. Atualmente, recolhe madeiras para reciclar e construir bancos e mesinhas na Rua Lavariz, uma travessa da Avenida Bandeirantes, perto do Aeroporto de Congonhas.
“Nasci e fui registrado em Moema”. explica. Ele tem dois filhos em São Paulo, mas estão desempregados. Conhecido nos arredores como Patrick, ocupa um cômodo que construiu sobre uma calçada usando caixas de isopor cheias de pedras, ao lado de um posto de gasolina. “Ele é tranquilo”, conta um dos funcionários do posto. “Fabrica e vende os banquinhos dele ali, sem problemas”, relata o funcionário do posto. Patrick conta que recicla madeiras e vende os bancos cobrando “pela mão-de-obra”.
Pessoas envolvidas com a questão da população de rua questionam os dados da Prefeitura
De acordo com dados oficiais, número de pessoas que vive nas ruas da cidade de São Paulo saltou de 15 mil para 24 mil no período de 2015 a 2019. Para pessoas que trabalham com a questão da população de rua, o número está subdimensionado.
O presidente do Movimento Nacional de População de Rua, Edvaldo Gonçalves de Souza, cita que o Cadastro Único (CadÚnico), do Ministério da Cidadania, registra quase 33 mil pessoas morando nas ruas em São Paulo.
A mesma impressão têm também especialistas em assistência social que todo dia percorrem a região central e encontram pelas ruas dezenas de pessoas na precária condição de abandono. Andando pelo centro da cidade na semana passada, um assistente social, que pediu anonimato, contou que “é visível o aumento da presença de pessoas” desassistidas nas ruas. “Eu encontro pelo menos uns 20 novos casos por dia para encaminhamento, inclusive famílias”, contou.
Na instituição franciscana Chá do Padre, que oferece espaço de apoio aos moradores de rua, localizado na Rua Riachuelo, atrás da Faculdade de Direito São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), a poucas quadras da Prefeitura, são servidos diariamente pelo menos 300 almoços e outro tanto de lanches à tarde para quem se alista para receber uma pulseira de identidade. “Servimos em todos os dias da semana”, contou Rafael Borges, orientador social que distribui as senhas para a comida e para os cem banhos permitidos no local. Era uma dessas senhas de alimentação que, horas antes, o companheiro de Marcela, a mãe com dois filhos que vive ao lado do Pátio do Colégio, tentava conseguir para levar marmita para a família da Praça Manoel da Nóbrega.
No centro de São Paulo, a Praça Manoel da Nóbrega - ao lado do Pátio do Colégio, um cartão-postal da cidade de São Paulo - abriga desde o ano passado a família da faxineira Marcela, de 34 anos. Com dois filhos, um menino de 3 anos e uma bebê de 1 ano, Marcela passa o dia ao relento numa área que atrai turistas e concentra a Secretaria Estadual da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo. Próximo ao centro, Bárbara, de 22 anos, outra mãe moradora de rua desde dezembro, cria a filha de 8 meses numa barraca de camping, sob uma marquise. As duas mães são parte de um contingente de famílias desassistidas que cresceu nas ruas de São Paulo em quatro anos. Em 2015, segundo dados da prefeitura, eram 505 crianças e adolescentes nas ruas da capital. Agora, são 664, um aumento de 31%.
Levantamento feito na capital pela empresa Qualitest a pedido da Prefeitura mostra um crescimento de 60% dos moradores de rua na cidade em quatro anos - de 15 mil, em 2015, para 24 mil, em 2019. Uma segunda fase da pesquisa sobre essa população, com foco na presença das famílias nas ruas, será finalizada em maio, mas dados iniciais apontam para um fato notado pelos paulistanos ao circular pela cidade, seja em grandes avenidas ou em vias menores, dentro dos bairros.
Consultados sobre a presença de parentes na rua, pelo menos 3.634 pessoas - um terço dos 11.693 entrevistados em abrigos - confirmam ter familiares com eles nessa condição de moradia precária, como as duas mães que aceitaram falar com o Estado.
Nova moradora
“Às vezes, a gente dorme no albergue; às vezes, dorme aqui mesmo na calçada, com o meu companheiro”, contou Marcela, que vive com o desabrigado Rogério e tem filhos de outro casamento. Ao lado dos dois menores, Marcela contou na quarta-feira da semana passada, 5, que os primeiros filhos moram no litoral, “em Peruíbe”, com a família do ex-marido. Ela relatou que vivia na favela do Cimento, na Avenida Radial Leste, incendiada em março do ano passado. Cuidava da mãe, cadeirante. “Sempre morei em favela.”
Depois que a mãe morreu, sem ter onde ficar, Marcela foi para a rua e passou a viver na região central, conhecida por catadores de papel e outros moradores de barracos de lona que se acomodam à noite pelo centro, a quadras dali, na área do Largo São Francisco.
Marcela recebe doações de pessoas que trabalham na área central ou circulam pelo comércio e se compadecem com a cena de abandono. A insegurança e o medo são companhias constantes da faxineira, que está desempregada. Durante o dia, reúne seus poucos pertences e os protege com uma lona para poder se mover na área com agilidade. “A gente mantém tudo enrolado na lona porque quando passa o 'rapa' é mais difícil correr carregando as coisas”, explicou Marcela, aguardando o companheiro, pai das duas crianças com quem vive. Àquela hora, Rogério tentava garantir o almoço da família na área da Sé.
Com o menino brincando com os cachorros de uma outra mulher que mora em uma barraca ao lado, Marcela contou que gostaria de trabalhar para tirar os filhos daquele ambiente. “O Conselho Tutelar já tentou tirar eles de mim”, contou. “A gente poderia ir cuidar de um sítio, como caseiros”, imagina. “Eu já tive problema de coração, minha mãe morreu disso. Eu cuidava dela quando a gente morava na favela que queimou.”
Natal
A crítica situação de Marcela é semelhante à de Bárbara, que acaba de passar seu primeiro Natal como mãe de rua. Ela mora numa calçada de um bairro perto do centro desde 1º de dezembro. Com a bebê Laura, de 8 meses, dormindo em uma barraca, Bárbara pede que o local exato não seja divulgado. Ela teme perder a menina. Na noite de quinta-feira, acompanhada por um amigo, um baiano que também está há cinco anos perambulando, a jovem abriu a porta da pequena barraca que habita para contar sua trajetória.
“Saí de casa por problemas familiares e estou na rua tem dois meses”, explicou. A moradora de rua diz não ter qualquer ajuda de serviços oficiais da Prefeitura, conta que tem medo, que está vulnerável a todo tipo de ataques, mas não vê outra saída. Ela lembra que já recebeu visitas de agentes sociais, que ela chama de “as meninas da Saúde”.
Bárbara, na verdade, conhece bem a dureza da vida sob as marquises. Ela própria foi abandonada na infância e criou-se em abrigo de menores, onde viveu por seis anos. “A vida lá não é fácil, não”, afirmou. Para cuidar de Laura na rua, conta com a ajuda de uma tia, que igualmente moradora de rua.
Os poucos objetos que Bárbara acumula são uma barraca de camping, onde dorme com a nenê num colchão, um balde com cueiros, roupinhas e fraldas da menina e um carrinho de bebê, que à noite fica encostado na parede de um prédio de esquina, sob o alcance do olhar dela. Mãe de primeira viagem, Bárbara disse que já entrou no programa Bolsa Família, mas acredita que verá o dinheiro somente em “três meses”. Até lá, vai sobrevivendo na calçada, confiando na solidariedade dos moradores e comerciantes da região que lhe oferecem fraldas e roupas para Laura. E comida.
Especialista diz que causas são diversas
Acompanhando o drama de pessoas que vivem na rua por quase três décadas, o advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe), explicou que há múltiplas razões para o atual aumento observado na presença de crianças e adolescentes nas ruas em São Paulo. O especialista em direitos da criança e do adolescente alerta que o problema dos moradores de rua na capital vem “desde os anos 60”, mas que está em franco crescimento. Para o conselheiro do Condepe, as causas são várias: as famílias sofrem com falta de moradia, perda de renda, desemprego, uso de drogas e violência doméstica, além da ausência de um sistema público de abrigos “que proteja as crianças e adolescentes adequadamente”. “Criança assim é uma situação dramática, uma tragédia”, afirmou. “São tratadas com desdém, sofrem traumas e ficam com sequelas”, lamentou.
O que diz a Prefeitura
Segundo dados da Prefeitura, São Paulo tem 131 locais para o chamado Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (Saica), com mais de 2,3 mil vagas. A Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social conta com outros 799 serviços para crianças e adolescentes em situação vulnerável e soma mais de 95 mil vagas no sistema, em parcerias com organizações da sociedade civil que atuam na assistência social.
Depois que a Qualitest apresentou os dados do censo 2019 da população de rua, mostrando o aumento em relação a 2015, quando o estudo foi feito pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), o município “anunciou um pacote de medidas que contemplam ações integradas entre diversas áreas: Assistência Social, Direitos Humanos, Saúde, Desenvolvimento Econômico e Trabalho, Subprefeituras, Habitação, Educação, Cultura”.
Segundo a Prefeitura, a intenção é realizar ações para “garantir o acesso de crianças, adolescentes e adultos em situação de rua” à rede de ensino e também para mantê-las na escola. O projeto também prevê “a garantia, a qualquer tempo, de matrícula e transferência de crianças e adolescentes em situação de rua, para ampliar oportunidades de acesso à educação básica.”
De acordo com técnicos da Prefeitura, 260 conselheiros tutelares recém-eleitos receberam capacitação, no mês passado, para que possam atuar com a secretaria no acolhimento de crianças em situação de rua e em casos de exploração do trabalho infantil. Também será criado um Núcleo de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em situação de rua.
Uma 'cidade' de pessoas mora nas ruas
A população que vive nas ruas na capital paulista hoje é maior do que o número de habitantes de 4.109 municípios brasileiros. Comparados com os dados do censo populacional de 2010 (base do IBGE), os números apontados pela empresa Qualitest mostram que há mais gente morando nas ruas em São Paulo - 24 mil, segundo dados oficiais - do que habitantes de 4.109 municípios brasileiros. Gente que trabalha com essa população carente há mais tempo, no entanto, diz que os números divulgados pela prefeitura estão subestimados.
A seguir estão histórias de pessoas que por diferentes motivos, em diferentes momentos da vida, foram parar na rua:
Catador que tem TV e parabólica vive na rua há 29 anos
A população de rua é composta também por pessoas que estão há décadas em situação de altíssima vulnerabilidade social.
Nascido no Rio Grande do Norte, Rodrigo de Souza Lucena, de 34 anos, fugiu de casa quando tinha 5 anos e há 29 mora na rua. Dorme sob a marquise de um prédio na Praça Patriarca, onde convive com barraqueiros e catadores de papel que se acomodam no centro. Mas não reclama.
“Essa aqui chegou do Sul tem uma semana”, contou o rapaz, mostrando uma mulher calada, acomodada sobre caixas de papelão, preocupada com a demora do entregador de pizzas. Rodrigo, que é separado e tem uma filha de 11 anos, contou que a nova moradora de rua de São Paulo não gosta de falar sobre sua condição de rua.
“A gente ajuda como pode, ela trabalha comigo e recebe uma ajuda”, explicou o catador, conhecido na rua pelo hábito de conservar uma antena parabólica junto da carroça e pela qual sintoniza canais de TV na barraca. “Não é gato, não”, afirma. “Eu pago a assinatura”, contou o homem, que se diz analfabeto que tem celular e está presente em pelo menos três redes sociais: Facebook, Twitter e Instagram.
“Nós tivemos uma reunião para discutir com a Prefeitura um plantão durante o carnaval”, afirmou ele, que acredita que consegue viver bem com seu trabalho. “Eu poderia até pagar aluguel, mas não quero. Prefiro a liberdade da rua”, pondera. Integrante do grupo do Cataki, organização de catadores que recolhe materiais descartados por lojas e moradores do centro, é quase uma celebridade da rua. No cartão de visitas, que entrega com desenvoltura de empreendedor, está escrito, sobre o número do celular: “Baixe o app Cataki, catador com orgulho”.
Migrante de Goiânia mora na Barra Funda
Assentada por um programa de habitação no Residencial Real Conquista, Rua RC, 14, Q 33, lote 34, em Goiânia, Maria Helena Ferreira de Brito, de 57 anos, 5 filhos, separada do marido, viu na casa de dois quartos, sala e cozinha, recebida em 2007, como solução para sua luta pessoal por moradia. Afinal, o Real Conquista, como diz o nome, tornara realidade, em 30 de julho de 2007, o sonho da casa própria acalentado por ela desde 2004. “Uma vitória da luta de pelo menos três anos embaixo de lona”, diz Maria Helena.
E tudo com o aval de gente grande na política, como o então prefeito Iris Rezende, o então ministro Márcio Fortes, e o então governador de Goiás Alcides Rodrigues, mais deputados federais e vereadores, todos na lista de presentes na entrega das 300 casas populares no módulo 2, preparado pela Agência Goiana de Habitação, repassadas às famílias do Movimento Luta e Moradia. Os papéis com as poucas referências que ainda restam a Maria Helena estão guardados num saquinho plástico transparente, junto com carnês do Banco do Brasil de pagamentos de contas registradas no endereço de Goiânia, que ela mantém entre o que restou de seus pertences em São Paulo.
Dona Maria Helena conta que desde o ano passado teve de abandonar a casa, na capital goiana, por sentir-se ameaçada, e que em agosto chegou a São Paulo de ônibus para viver na rua, sozinha.
Documentos do Ministério Público Federal registram um pouco da saga de Maria Helena ao descreverem a desocupação violenta da área do Parque Oeste, em 2005.
“No dia 16 de fevereiro de 2005, Goiânia, capital do Estado de Goiás, foi palco de uma das maiores operações de desocupação de área urbana já realizadas no País. À área invadida, conhecida como Parque Oeste Industrial, foram mobilizados pela Secretaria de Segurança Pública, 1.863 homens, numa operação denominada Operação Triunfo, tendo como resultado 2 mortes, 14 feridos (com um lesado medular), 800 presos, e inúmeros desabrigados, sendo 934 famílias alojadas em dois ginásios de esportes, nos bairros do Capuava e do Novo Horizonte”, resume o documento do MP.
Até duas semanas atrás, dona Maria Helena estava acampada sob um viaduto do Pacaembu, no bairro Barra Funda, quando outra vez foi desalojada. Um relatório de 2008 feito por uma assistente social de Goiânia, que ela carrega com cuidado e faz questão de mostrar, constata que naquela cidade ela vivia “em situação precária (…) necessitando melhorar as condições sócio-econômicas”.
Desde 2015, Maria Helena é beneficiária da Previdência. “O que recebo não dá para pagar um aluguel”, reclama. “Em 2014, o Bolsa Família foi cortado”, emenda. ”Não quero abrigo nem albergue, quero minha casa de volta”, afirmou. “Não sou bandida”, protesta!
Corte do governo federal. Em janeiro, o governo anunciou o corte de 1,3 milhão de benefícios do Bolsa Família, alegando a necessidade de revisão no pagamento. “A metade mais pobre do Cadastro Único, que hoje está em 13,2 milhões, é o público do Bolsa Família. Então, nós fazemos averiguações periódicas, batemos os números, conferimos se essas pessoas realmente não estão tendo uma outra renda, não estão declarando. E, quando a gente bate uma informação que não fecha com a nossa, nós suspendemos o benefício”, disse o então ministro Osmar Terra, segundo material divulgado pela pasta. De acordo com o Ministério da Cidadania, a ação no Cadastro Único permitiu uma economia de R$ 1,4 bilhão.
'Tattoo' da Rua Augusta vive embaixo de viaduto na Barra Funda
Ex-dona de uma loja de tatuagens na Rua Augusta que já não existe mais, Daniele Aparecida Dalcheco, de 38 anos, perambulou por Campinas e Americana, viveu numa comunidade alternativa por seis anos e teve três filhos. As crianças hoje vivem com uma avó. Natural de Piedade, interior paulista, ela foi criada na capital, no bairro Pirituba.
Há quatro meses dormindo na rua no Viaduto Antártica, Daniele conheceu Rafael Rodrigues Vieira, de 26 anos, também morador de rua. Passaram a viver juntos desde o dia em que Rafael, a pedido dela, cortou barba e cabelo. “Tem uns 15 dias que estamos sem bebida, nos cuidando para recomeçar a vida juntos. Queremos trabalhar para vivermos juntos”, contou Rafael, ao lado da mulher. “Vamos recomeçar, um ajudando o outro”, emendou Daniele. “Cada dia sem bebida é uma vitória”, disse.
Ex-cozinheiro vira marceneiro e vive na calçada no Campo Belo
Para Luiz Gonzaga de Jesus, de 64 anos, a situação de rua não é novidade. Ele vive assim desde 2000. Paulistano, o ex-cozinheiro lembra que trabalhou com eventos em hotéis famosos na empresa de bufê de festas. Atualmente, recolhe madeiras para reciclar e construir bancos e mesinhas na Rua Lavariz, uma travessa da Avenida Bandeirantes, perto do Aeroporto de Congonhas.
“Nasci e fui registrado em Moema”. explica. Ele tem dois filhos em São Paulo, mas estão desempregados. Conhecido nos arredores como Patrick, ocupa um cômodo que construiu sobre uma calçada usando caixas de isopor cheias de pedras, ao lado de um posto de gasolina. “Ele é tranquilo”, conta um dos funcionários do posto. “Fabrica e vende os banquinhos dele ali, sem problemas”, relata o funcionário do posto. Patrick conta que recicla madeiras e vende os bancos cobrando “pela mão-de-obra”.
Pessoas envolvidas com a questão da população de rua questionam os dados da Prefeitura
De acordo com dados oficiais, número de pessoas que vive nas ruas da cidade de São Paulo saltou de 15 mil para 24 mil no período de 2015 a 2019. Para pessoas que trabalham com a questão da população de rua, o número está subdimensionado.
O presidente do Movimento Nacional de População de Rua, Edvaldo Gonçalves de Souza, cita que o Cadastro Único (CadÚnico), do Ministério da Cidadania, registra quase 33 mil pessoas morando nas ruas em São Paulo.
A mesma impressão têm também especialistas em assistência social que todo dia percorrem a região central e encontram pelas ruas dezenas de pessoas na precária condição de abandono. Andando pelo centro da cidade na semana passada, um assistente social, que pediu anonimato, contou que “é visível o aumento da presença de pessoas” desassistidas nas ruas. “Eu encontro pelo menos uns 20 novos casos por dia para encaminhamento, inclusive famílias”, contou.
Na instituição franciscana Chá do Padre, que oferece espaço de apoio aos moradores de rua, localizado na Rua Riachuelo, atrás da Faculdade de Direito São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), a poucas quadras da Prefeitura, são servidos diariamente pelo menos 300 almoços e outro tanto de lanches à tarde para quem se alista para receber uma pulseira de identidade. “Servimos em todos os dias da semana”, contou Rafael Borges, orientador social que distribui as senhas para a comida e para os cem banhos permitidos no local. Era uma dessas senhas de alimentação que, horas antes, o companheiro de Marcela, a mãe com dois filhos que vive ao lado do Pátio do Colégio, tentava conseguir para levar marmita para a família da Praça Manoel da Nóbrega.