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Ace Attorney e o sistema de justiça criminal japonês

ᴇʟʏsɪᴜᴍ

Zima Blue
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Nenhuma obra existe desvencilhada do seu tempo e espaço: tudo é produto desses dois fatores combinados, pois afinal, a mídia é feita por pessoas, que naturalmente possuem ideais, crenças, gostos distintos. Sabendo disso, podemos sempre saber algo por trás desta mídia que a sustenta e tem a sua razão de o ser. Com Ace Attorney não é diferente. Apesar de existir uma crença popular que, se me permitem a opinião, bem imbecil de que no Japão não existe “essa coisa de crítica social”, isso obviamente não é verdade.


O caso de Ace Attorney é bem particular pois muito desse viés questionador pode passar despercebido por questões de localização. Quando Ace Attorney foi trazido para o ocidente, o time responsável por isso decidiu ir pelo caminho da adaptação total, mudando o setting do jogo de Japão para Estados Unidos, Califórnia. Mais tarde, isto acarretou em uma transformação dessa versão localizada em um mundo alternativo em que a Lei de Terras Estrangeiras de 1913 da Califórnia não foi para frente, e em consequência o sentimento anti-japonês não era tão forte e a cultura japonesa ficou bem evidente no local. Quando voltamos a analisar o jogo na perspectiva original, isto é, se passando no Japão, percebemos que essa informação é muito importante para verificar que ele traz muita carga de como a justiça em si é vista nas circunstâncias japonesas. OBS: utilizarei neste texto os nomes localizados para facilitar a compreensão de todos, mas como estou falando do ponto de vista japonês, eu acredito que o correto seria utilizar os nomes originais.

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Na realidade original, é compreensível que exista um templo japonês no meio da cidade ou uma moça trajada com vestes tradicionais sem a necessidade de um mundo alternativo.

Na primeira trilogia, escrita e dirigida por Shu Takumi, acompanhamos a história do protagonista Phoenix Wright e sua assistente Maya Fey na sua jornada pelo mundo da advocacia, defendendo seus clientes em casos que sempre parecem ser já perdidos. Essa visão do jogo de que a absolvição é quase algo impossível tem base na vida real: a taxa de condenação no Japão apresenta um número assombroso de 99%. Isso acontece por vários fatores, mas os principais que citarei aqui são que:
1. Existem poucos promotores e, por isso, muitos casos pra pouca gente. Eles costumam levar apenas os casos mais sólidos em que um veredito de “culpado” seria considerado óbvio. 2. Juízes podem ser responsabilizados se eles atuam de um modo que a administração acha nocivo, e por isso, acabam por atuar de modo a tender pela condenação. Os promotores preocupam-se excessivamente em ganhar o caso para preservar sua reputação, e isso ilustra-se no jogo em que temos casos e casos de promotores com currículos impecáveis, dentre eles Edgeworth, von Karma e sua filha Franziska. Existe um orgulho muito grande em possuir esse histórico, e os promotores quase sempre possuem uma aura de intocáveis, superiores, quase deuses (Von Karma chega inclusive a ter a alcunha de “Deus da promotoria”), possuindo assim um ego enorme, uma figura quase sempre antagonística na série. Por vezes, chegando ao ponto de fazerem de tudo para atingir seu objetivo, desde manipular evidências a testemunhas.

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A figura do promotor como parte de uma hierarquia, estando ela numa posição superior, tem raízes na história do direito japonês. Com a Restauração Meiji em 1868, veio com ela a instauração de uma estrutura de Poder Judiciário, até então inexistente — a justiça criminal era controlada pelos chamados daimyōs — e assim, foi-se moldando um sistema em que todos os cidadãos deveriam ser tratados como iguais. Entretanto, algo tão inovador ainda carregava consigo certos aspectos tradicionalistas: o juiz e o promotor sentavam lado a lado no andamento de um processo sob uma plataforma mais alta, algo que refletia tanto a quantidade de poder que os promotores possuíam na época, já que investigavam juntamente ao juiz, tanto quanto a posição inferior em que os advogados da defesa se encontravam. Após a II Guerra Mundial, a ocupação estrangeira no país acarretou mudanças na lei como um todo, tentando entrar nos moldes da justiça ocidental, em que há a presença do individualismo resguardado perante à coletividade. Nessas mudanças, veio então a tentativa de trazer direitos ao acusado, tentando assim diminuir as diferenças entre promotoria e defesa. Contudo, tendo em vista que é algo relativamente recente, ainda se encontram resquícios desse poder enorme dos promotores. A realidade extremamente diferente entre advogados e promotores também é mostrada na série, na medida em que Phoenix e Edgeworth possuem um poder de consumo totalmente diferente. Isso no anime de 2016 é mostrado com um toque de leveza, em um episódio que mostra Phoenix indo ao tribunal de bicicleta em paralelo a Edgeworth que chega até ele dentro de um carrão cor vinho.

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A questão do excesso de poder da promotoria é mostrada de uma forma até mesmo escrachada, em forma de paródia, em que os promotores tratam o salão de julgamento como “casa-de-mãe-joana”, seja utilizando chicotes como instrumento de coação, tomando café quando não lhe é permitido, ou até mesmo chegando ao ato extremo de impor ordens ao juiz do caso. Claro que Ace Attorney traz consigo a licença poética de ser um jogo de ficção em que o objetivo por vezes é arrancar risos do jogador pela absurdidade da situação, mas nas entrelinhas dá para inferir a mensagem que se passa, que é a de que os promotores decidem e fazem o que querem quase o tempo todo, e está tudo bem, pois seria “o curso natural das coisas”.

O jogo também traz uma crítica intrigante à força policial: ela comumente é tratada como incompetente, falha, que não é digna de confiança. Três grandes personagens podem ser trazidos à tona para ilustrar esta situação: Dick Gumshoe, Maggey Byrde e o oficial Meekins. O detetive Gumshoe é uma figura que possui uma certa autoridade, mas é quase sempre retratado como imperfeito, errando coisas mínimas e triviais e criando problemas para seu superior, Miles Edgeworth, trazendo também risos ao jogador pois tem constantemente seu salário cortado pelos seus erros. Maggey Byrde foi policial por pouco tempo na história do jogo, mas tem sua participação notável neste argumento pois é descrita como alguém de muita má sorte: as coisas de alguma forma sempre costumam dar errado pra ela e aqueles a seu redor. Em um caso específico, foi acusada de matar seu namorado quando a morte deste foi uma mera fatalidade. O oficial Meekins é um personagem conhecido como descuidado, desastrado, e por causa destes defeitos que foi considerado suspeito em dois homicídios e já teve seu cargo rebaixado por seus erros crassos.

No contexto da realidade, Ace Attorney traz em si a tradução do descontentamento e desconfiança da população japonesa perante à polícia. Na vida real, ao invés de termos personagens de alívio cômico amáveis como Gumshoe e Maggey, temos a figura do policial corrupto que fecha os olhos para a problemática dos pachinkos e o crime organizado, as famosas yakuzas.
Agora, entramos no ápice da discussão: a valorização da confissão no processo. No jogo, que é dividido por casos, que vão de um número de 4–5 cada, quase nunca passando disso, nós seguimos sempre uma linha temporal de coisas a se fazer: temos o conflito instalado, a investigação, julgamento e uma reviravolta no fim desse dia de julgamento, e assim vai durante 3 dias que é o tempo de duração máximo estipulado do processo. E aí, no fim de cada caso, quase sempre arrancamos uma confissão do real culpado do crime, que normalmente sempre é uma testemunha que chamamos em juízo. A ênfase que o jogo dá a confissão não é por acaso, tendo em vista que na vida real o Poder Judiciário japonês depende imensamente da existência dela, sendo considerada “a rainha das evidências”, de modo que desconsideram-se todas as outras evidências se há uma confissão no caso. Dessa forma, tenta-se a todo custo arrancar uma confissão do acusado, chegando ao ponto de prendê-lo horas e horas sem comida ou água para isso, e muitas vezes resultando em pessoas inocentes confessando a fim de sobrevivência.

Um caso célebre que trouxe os olhos do mundo para essa problemática foi o caso de Carlos Ghosn, empresário franco-brasileiro preso em 19 de novembro de 2018 e que lhe foi negado diversos direitos fundamentais ao acusado, como fiança, presença de um advogado durante os questionamentos e a possibilidade de contato com a família. Esse sistema, chamado por muitos veículos midiáticos como um sistema de refém (“hostage justice” originalmente), serve para torturar psicologicamente o acusado e fazê-lo confessar em uma medida desesperada para sair desta situação. Voltando à realidade do jogo, em que o real culpado sempre se mostra, tem-se então o salvamento milagroso do cliente, pois outra pessoa confessou ao crime, prova cabal e irrecusável de que ele é inocente.

Por fim, é importante ressaltar que isso é apenas uma pontinha do iceberg de tudo que pode ser citado para contextualizar Ace Attorney. Tendo seu primeiro jogo lançado em 2001, em minha visão foi uma aposta ousada da Capcom, e que infelizmente muitas pessoas acabam não sabendo dessas observações tão interessantes que foram trazidas à tona na época e continuam sendo trazidas até hoje, já que ainda se guarda a esperança por muitos de que mais mudanças ocorram nesse sistema e seja enfim, trazida a real noção de justiça e não apenas a justiça meramente formal, dita no papel.


Fonte: https://m*edium.com/@disposablez/ace-attorney-e-o-sistema-de-justi%C3%A7a-criminal-japon%C3%AAs-e5d992cbf675

Sem o * em "medium".
 


Asteriques

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tem um livro chamado A Floresta do Suicidas (Jemery Bates), livro de ficção escrito por um americano com personagens americanos. Também critica essa "opressão" do sistema judiciario japones em certo momento (quando o protagonista ta lembrando de uma ocorrencia que ele passou em Shinagawa), em um outro momento.

Recomendo esse livro,
claramente o autor morou no Japão algum tempo.
 
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