Estouro da bolha chinesa será mais letal que o coronavírus
Em 2008, a bolha imobiliária americana explodiu e levou o mundo inteiro a uma depressão econômica. Mas, para os que acham que o apocalipse já aconteceu, as notícias não são as melhores em relação à China
Há um par de décadas as previsões sobre uma possível bolha imobiliária na China já começavam a ser levadas a sério. O Partido Comunista Chinês, reagindo àquelas previsões, explicava que tudo fazia parte do “plano quinquenal” e que, de acordo com as diretrizes daquele plano, todas as ações do governo seriam tomadas pensando cinco anos à frente. Neste momento, a China encontra-se em seu décimo-quarto plano quinquenal, estabelecendo os rumos e as metas do país para o período de 2021 a 2025. Em outro artigo aprofundaremos esse tema, esmiuçando os 14 planos e debatendo sobre a importância e o impacto de cada um, tanto para a China quanto para o mundo. Por ora, cabe explicar que o plano quinquenal é o modelo de política da China para o desenvolvimento social e econômico de médio prazo. A elaboração dos planos quinquenais começou em 1953, quatro anos após a fundação da República Popular da China. Não obstante um pequeno hiato de 1963 a 1965, a China conseguiu, até agora, implementar 13 desses planos de cinco anos e o desenvolvimento econômico tem sido a prioridade de cada um dos planos.
No entanto, na prática, efeitos colaterais diversos têm sido observados.
É muito comum ouvir-se falar dos trens-balas que levam nada para lugar nenhum, cidades-fantasmas com estruturas mirabolantes, shopping centers colossais que jamais receberam um único cliente, e outros dispêndios absurdamente monstruosos que surgiram naquele país. Os tais cinco anos passam, as construções continuam ociosas e os planos econômicos continuam repetindo as mesmas metas para a construção civil.
Numa análise mais próxima, posso até chamar essas metas de experimentais, porquanto, no período de minha residência durante quatro anos naquele país, presenciei trabalhadores idosos “limpando” as ruas altas horas da madrugada. As aspas chamam a atenção para o fato de que, na verdade, aqueles idosos, já sem capacidade produtiva, não estavam verdadeiramente limpando as ruas, mas, sim, passando lentamente as vassouras no chão e levantando um pouco de poeira. Isso revela a existência de um gigantesco cabide de empregos, no qual são abrigados trabalhadores sem qualificação, em atividades muitas desnecessárias.
O exemplo mais clássico dessa situação é visto na construção civil, onde são empregados cinco vezes mais trabalhadores que o necessário para a realização de uma obra. O efeito disso são obras que são finalizadas em tempo recorde, mas que estarão deterioradas em tempo recorde também.
A bolha
John Maynard Keynes, a priori, ficaria satisfeito com a gerência econômica do Partido Comunista Chinês. Um mundo em que o governo gera empregos inúteis, para repassar dinheiro à população e, assim, aquecer a economia. Um paraíso onde os bancos estatais oferecem créditos a perder de vista, com juros ínfimos —especialmente para a construção civil — para gerar postos de trabalhos para a edificação de cidades-fantasmas. Dessa forma, o dinheiro vai para o bolso do trabalhador e aquece a economia. Mas, sim, a armadilha está aí: o dinheiro é estatal, o ciclo é fechado. Keynes trouxe a ideia para solução de crises, mas países como a China e o Brasil dos tempos do Partido dos Trabalhadores —o PT de Lula e Dilma —, transformaram essa ferramenta keynesiana em política permanente de Estado. Resultado: a maior bolha de ativos do mundo está ainda maior e mais perigosa que nunca.
De fato, nem o coronavírus impediu seu contínuo inchaço. Após uma breve pausa durante os lockdowns, ocorrida em fevereiro, e em que pese a ocorrência de uma série de problemas econômicos e de milhões de empregos terem sido perdidos devido à pandemia, o boom imobiliário chinês retornou com força total em algumas megacidades — que muitos já qualificavam como insuportáveis para se viver —impondo uma astronômica escalada de preços dos imóveis, mas com muitos investidores ávidos por negócios e ainda acreditando que ficarão ricos da noite para o dia. Em março do ano passado, 288 apartamentos de um novo empreendimento imobiliário em Shenzhen foram vendidos online em menos de oito minutos! Alguns dias depois, compradores adquiriram mais de 400 unidades de um novo complexo habitacional em Suzhou. Em Xangai, as revendas de apartamentos quase atingiram novo recorde em abril. Em apenas um sábado de junho, quase 9.000 pessoas depositaram, cada uma, um milhão de yuans (US $ 141.300 à época) para a fase de qualificação para a compra de apartamentos em um empreendimento em Shenzhen.
“Eu mal tive tempo para almoçar nos fins de semana de março, quando o mercado começou a se recuperar”, disse Zhao Wenhao, um agente imobiliário da corretora Lianjia, em Xangai, uma das maiores corretoras de imóveis da China. “Muitos clientes temem que a moeda chinesa se desvalorize com a desaceleração econômica global, direcionando ainda mais dinheiro para a habitação como se fosse um paraíso financeiro.”
Para efeito de comparação, no auge do boom imobiliário dos EUA, cerca de US $ 900 bilhões por ano estavam sendo investidos em imóveis residenciais. Nos 12 meses encerrados em junho de 2020, cerca de US $ 1,4 trilhão tinham sido investidos em moradias chinesas. O valor total do estoque de casas de incorporadoras chinesas atingiu US $ 52 trilhões em 2019, de acordo com o Goldman Sachs Group Inc.. Isso corresponde a duas vezes o tamanho do mercado residencial dos EUA e supera até mesmo todo o mercado de títulos dos EUA.
Uma visão do interior da bolha
Segundo o Wall Street Journal, cerca de 21% das casas na China urbana estavam vazias em 2017 — uma proporção muito alta em relação aos padrões internacionais —o que equivalia a 65 milhões de unidades vazias, de acordo com os dados mais recentes da China Household Finance Survey. Entre as famílias que possuíam dois imóveis, a taxa de vacância chegava a 39,4%, e entre as que possuíam três ou mais imóveis, 48,2% estavam vazios. O rendimento do aluguel - a proporção do valor de uma propriedade feita anualmente pelo aluguel - é inferior a 2% nas principais cidades como Pequim, Xangai, Shenzhen e Chengdu, menos do que pode ser feito com a compra de títulos do governo chinês.
É extremamente anormal um boom imobiliário como o da China e a tendência é continuar subindo, mesmo em tempos de estresse econômico.
De certa forma, o boom atingiu os objetivos de Pequim. Ele impulsionou o crescimento econômico e criou riqueza para milhões de famílias chinesas de classe média. Também deu aos governos locais, que devem repassar uma parte importante da receita do imposto de renda ao governo central, receita adicional da venda de terras aos incorporadores.
Mas o boom tirou os dólares de investimento de outras indústrias que competem com tomadores de empréstimos imobiliários por financiamento bancário. Também sobrecarregou muitas famílias com dívidas.
De acordo com dados do Banco de Compensações Internacionais, globalmente, a China foi responsável por cerca de 57% do aumento de US $ 11,6 trilhões nos empréstimos às famílias ao longo da década até 2019, enquanto os EUA responderam por cerca de 19%.
Em essência, os chineses urbanos apostaram tudo em suas casas. Eles agora têm quase 78% de seu patrimônio vinculado a propriedades residenciais, contra 35% nos EUA, onde mais pessoas investem em ações e pensões, de acordo com um relatório do China Guangfa Bank e da Southwestern University of Finance and Economics.
O medo
A China Evergrande, cujas enormes dívidas lhe conferem a maior conta de juros do mundo entre as ações não financeiras listadas, segundo dados da Capital IQ, para desovar seu estoque imobiliário, ofereceu descontos de 25% em fevereiro e 22% em março. A Country Garden Holdings, outra grande incorporadora, ofereceu mais de 17.000 novas residências em toda a China por meio da mídia social, com descontos de até 50% no preço antes ofertado.
Yin Haiping, que dirige uma empresa de consultoria imobiliária em Shenzhen, disse que o medo de perder está levando mais compradores a procurar imóveis agora, já que com os preços das casas em algumas áreas desejáveis subiu menos de 10% no último ano.
A tendência é que a maioria dos chineses imobilizem suas riquezas em imóveis durante as recessões.
Resultados
Se em 2008, ano do estouro da bolha imobiliária americana, os analistas e investidores já estavam deveras assustados com o inchaço da bolha chinesa, a aposta é de que hoje a situação é muito pior.
Com números estratosféricos que transformam a crise de 2008 em brincadeira de criança, o eventual “crack” do mercado imobiliário chinês será, talvez, a pior praga já enfrentada pela humanidade em tempos modernos, com reais possibilidades de superar a crise causada pelo coronavírus.
— Eduardo Alves Meira é administrador de empresas e especialista em geopolítica asiática. Foi coordenador do Departamento de Português da Faculdade de Letras no Instituto de Mídia de Hebei.
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