O UM BRASIL entrevista o filósofo canadense, professor das universidades de Shandong e Tsinghua, Daniel A. Bell. Na conversa com Renato Galeno, ele explica o modelo do Estado chinês - baseado na meritocracia. Ainda, o filósofo analisa a influência do pensamento confucionista na sociedade chinesa e a emergência da sustentabilidade e do combate à corrupção como as principais prioridades do Partido Comunista. Segundo Bell, transformações sociais devem tornar o gigante asiático mais aberto, mas dificilmente uma democracia eleitoral.
Como a elite de Pequim vê o mundo
Veja sete temas debatidos com burocratas, acadêmicos e empresários chineses
Como a elite que governa a China vê o mundo? No final de semana, participei de um diálogo entre alguns estudiosos e jornalistas estrangeiros, e burocratas, acadêmicos e empresários chineses, organizado pelo Centro Acadêmico para a Prática e Teoria Econômica Chinesa, da Universidade Tsinghua. A discussão foi a mais franca de que já participei em meus 25 anos de visitas à China.
Abaixo, sete proposições sobre as quais nossos interlocutores discorreram
A China precisa de um governo central forte:
A conclusão que os participantes extraíram foi a de que o Partido Comunista, com cerca de 90 milhões de membros, é essencial para a unidade nacional. Mas a corrupção e disputas entre facções vinham ameaçando a legitimidade do partido. Um importante dirigente chegou a dizer que Xi Jinping "salvou o partido, o país e as forças armadas". Essa perspectiva também justifica o fim da limitação ao número de mandatos presidenciais que uma pessoa pode exercer - o que, enfatizaram os participantes, não significa domínio perpétuo por um só homem.
Os modelos ocidentais são encarados com descrédito:
Os chineses desenvolveram um sistema estatal governado por uma elite tecnocrática com nível educacional elevado, operando sob o controle do partido. É o sistema que dominou a China na era imperial, em forma moderna. A atração que a democracia em estilo ocidental e o capitalismo de livre mercado exerceram sobre a elite chinesa terminou por definhar.
Os participantes enfatizaram a deficiência de investimento em ativos físicos e humanos pelos estados ocidentais, a baixa qualidade de muitos de seus líderes e a instabilidade de suas economias. Um participante acrescentou que "90% das democracias criadas depois da queda da União Soviética fracassaram, de lá para cá". Esse é um risco inaceitável.
Tudo isso serviu para reforçar a confiança no modelo singular da China. O que não quer dizer que haverá um retorno à economia controlada. Pelo contrário. Nas palavras de um participante, "acreditamos que o mercado tem papel fundamental na alocação de recursos. Mas o governo precisa desempenhar o papel decisivo. Ele cria a estrutura para o mercado. O governo deveria promover o empreendedorismo e proteger a economia privada". Um participante até insistiu em que a ideia de um "líder central" poderia conduzir a um governo forte e à liberdade econômica.
A China está sob ataque pelos Estados Unidos:
Um participante argumentou que "os Estados Unidos já dispararam quatro flechas contra a China: Mar da China Meridional, Taiwan, o Dalai Lama e agora o comércio internacional". Trata-se portanto de um ataque sistemático. Muitos dos participantes antecipam que a situação vá se agravar. Isso não acontecerá por conta do que a China tenha feito, mas porque os americanos agora consideram a China como ameaça à sua hegemonia econômica e militar.
Os objetivos americanos nas negociações de comércio são incompreensíveis:
Pessoas envolvidas diretamente nas negociações comerciais não conseguem entender o que os Estados Unidos querem. Donald Trump quer mesmo um acordo, elas imaginam, ou deseja apenas criar mais conflitos? De qualquer forma, funcionários chineses importantes dizem compreender e aceitar a legitimidade (e o valor para a China mesma) das demandas por proteção melhor à propriedade intelectual. Também compreendem o argumento em favor de uma liberalização unilateral, o que incluiria a liberalização do setor de serviços financeiros. Um dos funcionários chineses sugeriu que seu governo gostaria de tornar o programa Made in China 2025 "uma vantagem para todo o mundo". Mas o avanço tecnológico chinês é inegociável. Além disso, como a China pode reduzir o desequilíbrio em seu comércio bilateral com os Estados Unidos quando este impõe controles sobre a exportação de bens estrategicamente delicados e não dispõe da infraestrutura para exportar carvão e petróleo em termos competitivos?
A China sobreviverá a esses ataques:
Os participantes chineses pareciam razoavelmente confiantes em que seu país superaria os desafios que estão por vir.
Um deles apontou que a China já é um país industrial imenso. Seu setor manufatureiro é quase igual aos dos Estados Unidos, Japão e Alemanha combinados. O número de trabalhadores capacitados do país é enorme. Sua economia também depende menos do que no passado do comércio internacional.
Além disso, disse outro participante, o setor de negócios dos Estados Unidos está profundamente envolvido com a economia chinesa, e depende pesadamente dela. O povo chinês, enfatizaram outros, provavelmente suportaria privações mais facilmente do que o povo americano. E os chineses não aceitam intimidação da parte dos americanos. De fato a liderança chinesa não tem como ignorar a opinião pública ao discutir concessões. O que quer que venha a acontecer, disseram alguns deles, a ascensão da China não será detida.
Além disso, apontaram, a China é capaz de desafiar o domínio militar americano no oeste do Pacífico, onde o poderio do país está em alta. Em prazo mais longo, a China desenvolverá forças armadas "de primeira linha".
Este ano será um teste:
China e os Estados Unidos terão um relacionamento complexo e repleto de riscos, em longo prazo. Mas um dos participantes apontou que "este será um ano de teste. Se as coisas forem na direção certa, tudo ficará bem; se forem na direção errada, será um terremoto". O progresso conquistado quanto à Coreia, uma área na qual China e Estados Unidos colaboram, pode representar prenúncio de um resultado positivo; a fricção quanto ao comércio pode ser um presságio de desastre. A direção que o relacionamento entre os dois países vier a tomar pode mudar o mundo.
A estrutura política e social do Partido Comunista que fez da China um líder do mundo capitalista
A política na China tem pelo menos duas grandes contradições. A primeira delas é a de possuir o maior partido político do mundo, mas não ter eleições livres.
A segunda está no fato de o presidente, que é do Partido Comunista, ter por missão principal o desafio de levar os chineses à liderança econômica do mundo capitalista. O Congresso do PCC (Partido Comunista da China) se converte, a cada cinco anos, no desfile mais importante dessas e de outras contradições. O Congresso renova as linhas ideológicas do Partido e define os novos nomes das estruturas de governança. Seu período de duração é chamado de um verdadeiro "mistério" pelo jornal britânico The Guardian. A reunião é fechada. No país em que o povo é mantido afastado das instâncias de poder, o congresso do PCC ocorre em um salão chamado Salão do Povo. Ele está localizado na Praça da Paz, que ficou conhecida mundialmente pelas cenas de guerra ocorridas em 1989, quando o regime avançou com colunas de tanques contra manifestantes pacíficos, levando à morte de entre 700 e 4.000, dependendo das fontes. O atual Congresso confirmará a permanência no poder do atual presidente, Xi Jinping.
Para saber como isso influencia o futuro da China e do mundo, o Nexo conversou por telefone com o professor de relações internacionais da FGV Oliver Stuenkel. Ele já esteve várias vezes na China, incluindo uma visita realizada no ano de 2012, durante o Congresso anterior. Stuenkel é autor do livro "Brics e o Futuro da Ordem Global". A sigla Brics se refere à inicial dos nomes dos países que compõem o bloco: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Como é escolhido o presidente da China ?
OLIVER STUENKEL - O Partido Comunista é a instituição central do Estado chinês, que se inspira numa visão leninista de Estado {vertente do comunismo, do início do século 20, que, entre outras coisas, defende a centralidade do partido em todas as esferas de uma determinada sociedade}. Esse partido governa a China desde 1949 {ano da revolução comunista comandada por Mao Tsé-Tung}. A pessoa mais importante e poderosa da China é o secretário-geral do Partido Comunista. Só mais tarde veio a prática de que essa pessoa também seria presidente da China. O Xi Jinping, hoje, é, acima de tudo, secretário-geral do Partido Comunista. Isso é que dá a ele todo o poder que ele tem. Só as pessoas que fazem parte desse partido têm, de fato, como participar do processo. O processo que fez Xi Jinping chegar aonde chegou é semelhante ao processo de uma corporação gigante, que seleciona pessoas quando elas saem da faculdade. Fazendo parte do partido, esses jovens conseguem ter acesso privilegiado às estruturas de poder do país. O processo é parecido com o de qualquer Exército, onde as pessoas começam na patente mais baixa e vão subindo na carreira, ao longo de décadas. Inicialmente, a pessoa inicia num pequeno colégio no interior. Depois, coordena uma fábrica. Em seguida, pode se transformar em prefeito de uma pequena cidade. Depois, vice-governador. Depois, chefe de alguma associação de representação de produtores de automóveis. Em seguida, governador. Assim, vai subindo até fazer parte do órgão mais elevado do partido, que é o Politburo. O presidente é selecionado, então, entre os membros do Politburo. O mesmo acontece com o primeiro-ministro. Então, quando falamos do processo pelo qual o presidente da China é escolhido, estamos falando essencialmente do processo de como o secretário-geral do Partido Comunista é escolhido. Há uma fusão entre Estado e partido, mas não existe Estado sem partido na China. Ou seja, o partido é o órgão central do Estado chinês.
Qual o tamanho do Partido Comunista e quem pode fazer parte dele ?
OLIVER STUENKEL - O Partido Comunista tem uma importância muito grande não só no sistema político, mas também no sistema social da China. Ele tem 88 milhões de membros. Na sociedade chinesa, o partido tem uma legitimidade enorme. Por incrível que pareça para nós, o Partido Comunista é visto por eles não apenas como um membro da família de todos os chineses, mas também como chefe da família. Ou seja, o partido tem uma função social muito importante. Ele está muito presente na vida diária das pessoas. É um sistema comunista-leninista clássico que, na linguagem oficial, se chama centralismo democrático.
Vale a pena destacar que, dentro da estrutura do partido, os debates são relativamente francos, embora seja difícil acompanhar isso estando fora.
O que faz desse sistema um sistema não democrático ?
OLIVER STUENKEL - Não existem outros partidos. É preciso ser membro de um partido só. Qualquer pessoa que articule o desejo de um sistema multipartidário corre o risco de ser preso, de sofrer punição, na China. É um clássico sistema de partido único. De certa maneira existe um monopólio do poder. Esse é um partido que, na sua própria visão, nunca deixará o poder. Há muitas classificações diferentes no mundo acadêmico do que seja uma democracia, sobre quais são os elementos mais importantes de um sistema democrático, mas a definição mais curta é que a democracia existe num país no qual governos perdem eleições e saem do poder, onde a oposição pode assumir o poder depois de uma eleição.
Esse mecanismo não existe na China. Lá, o Partido Comunista governa desde 1949 e, desde então, não houve nenhum outro partido no poder. Qualquer ascensão de um partido além do Partido Comunista seria visto como um desafio existencial ao sistema político porque há uma fusão completa entre partido e Estado. Para dar um exemplo: o prefeito de Xangai não é a pessoa que de fato toma as decisões mais importantes. Elas são tomadas pelo chefe do Partido Comunista da cidade de Xangai, que pode até ser, em alguns casos, o prefeito também. Mas, se não for, o prefeito acaba cumprindo acima de tudo uma função cerimonial.
Como é possível que um país governado pelo Partido Comunista seja uma potência comercial do mundo capitalista ?
OLIVER STUENKEL - Esse é a grande questão que esse partido gera no mundo. O Partido Comunista {chinês} é uma das instituições mais peculiares do mundo. Ao longo de décadas, muitos analistas que dedicaram suas vidas a estudar esse partido fizeram previsões de que essa instituição não poderia se adaptar às profundas mudanças pelas quais a China tem passado. Mas, se você pensa no que a China era quando o Partido Comunista assumiu o poder {em 1949} e no que o país se converteu depois, você vê que é um partido que se adapta completamente e que sobrevive às mais profundas transformações da sociedade chinesa.
A China era um país agrário, totalitário, com perseguição, que, agora, transformou-se numa super-potência capitalista. O país passou por enormes transformações. Antigamente, empresários não podiam fazer parte do partido. Hoje, isso é comum. Então, o partido abriu-se, adaptou-se e, com isso, conseguiu manter-se no centro desse sistema político e econômico.
Há uma frase famosa do Partido Comunista da China que é: "a prática é o único critério da verdade". Isso quer dizer basicamente o seguinte: "a gente faz o que funciona". Ou seja, apesar de toda a linguagem sobre ideologia etc., o que tem marcado o sistema político atual chinês é o pragmatismo extremo. Isso explica porque a China consegue se adaptar a essa nova realidade.
Quando a gente viaja pela China, vê pessoas com carros de luxo, carros caros, vemos na China a existência de uma sociedade extremamente consumista. Entretanto, a estrutura política chinesa, ainda mantém uma característica que é, acima de tudo, comunista. Então, esse é um país que, por um lado, tem esse elemento capitalista, de consumo, o que marca muito fortemente a cultura chinesa hoje, mas, por outro lado, se {Vladimir} Lênin {líder comunista que comandou a União Soviética no início do século 20} estivesse vivo hoje ele reconheceria o Partido Comunista da China imediatamente como uma instituição que se orienta pelos princípios articulados por ele.
Qual a influência do 19º Congresso do Partido Comunista para o mundo e para o Brasil ?
OLIVER STUENKEL - Esse 19º Congresso foi o mais importante em décadas. Na China, o presidente tem dois mandatos de cinco anos cada um. Cada presidente costuma ficar dois mandatos seguidos. O atual presidente, Xi Jinping, cumpriu o primeiro. Vai para o segundo. Ele é diferente dos presidentes anteriores. Ele conseguiu concentrar o poder de uma maneira que poucos outros, antes, na história chinesa, conseguiram. Talvez, os únicos que conseguiram isso foram Mao {Tsé-Tung, fundador do comunismo chinês} e Deng Xiaoping {líder comunista que governou de 1978 a 1992}, que foi quem abriu a China para o capitalismo.
Xi Jinping tem essa personalidade do líder que concentra muito poder. Isso coincide com o momento no qual a China se converte na principal potência do mundo. Com isso, vem uma série de privilégios, mas também muitos desafios. O país foi transformado num país mais assertivo e confiante, mas, ao mesmo tempo, com profundos desafios à legitimidade do Partido Comunista. É um país rico, com pessoas que estão cada vez mais querendo participar do processo político, pessoas que querem direitos que vão além da prosperidade. Então, há muitos desafios.
O atual presidente foi responsável pela adoção da política mais repressiva das últimas décadas. Os direitos políticos são muito mais limitados hoje na China do que eram dez anos atrás. Nós costumamos pensar que nossa época é decisiva para o futuro, mas muito indica que muito do futuro da China e do futuro da ordem global depende da capacidade de Xi Jinping se aproveitar deste Congresso para consolidar seu poder. Há muitas pessoas dizendo, inclusive, que ele não tem a intenção de deixar o poder daqui a cinco anos. Ele planejaria se transformar numa das pessoas mais poderosas na história moderna para guiar esse processo perigoso pelo qual a China passa neste momento de se tornar âncora principal da ordem internacional, algo novo e que traz uma série de desafios, que nenhum governo chinês tinha encarado antes.
Nós vemos isso ao redor do mundo: não tem mais solução para a crise na Venezuela sem a China, onde os chineses são os principais investidores. Não tem mais saída para as mudanças climáticas sem a China. De repente, o mundo inteiro precisa da China. Então, há muita coisa dependendo desse Congresso {o país vem tentando fortalecer um mercado consumidor e criar um mercado investidor interno para balancear a importância do comércio internacional, por exemplo, enquanto fala em fortalecer o socialismo}. A China preenche o vácuo de poder deixado pelos EUA. Diante disso, nenhum país do mundo tem a possibilidade de não acompanhar de perto o que está acontecendo na China.