LastPlace.com
Anon997 atualizou a página pela última vez, apenas para se deparar com um aviso do governo sobre o fechamento do site. Aquele era o fim, definitivamente. O último fórum da Internet por desktop finalmente havia caído. Por dez anos, junto com diversos outros remanescentes, lutara para manter os pequenos portais de usuários livres, prezando pelo anonimato, comunicação textual e uso de nicknames ou pseudônimos. Lutaram, primeiramente, contra o advento e popularização das redes sociais, que começaram a engolir todo o conteúdo para dentro de suas comunidades. O segundo inimigo havia sido a migração das massas para os gadgets e smartphones, tornando a Internet por computador de mesa obsoleta e fazendo os sites se tornarem cada vez menos dependentes de textos e facilmente substituíveis por aplicativos. Seus colegas de resistência chamavam o fenômeno de emburrecimento da Internet, agora completamente banal e invasiva, rastreando seus usuários em cada detalhe de suas vidas e permitindo acesso para cada vez menos informação gratuita ou relevante.
Uma Internet domada, sem a liberdade que outrora a caracterizava, feita para joguinhos casuais, compra de conteúdo midiático (fosse músicas, filmes, jogos ou seriados), pequenos programas de ajuda cotidiana, propaganda e interação social, mas nada além. Primeiro, escrever textos se tornara obsoleto quando os 140 caracteres se tornaram uma tendência. Depois, o próprio uso dos 140 caracteres se tornou obsoleto com as ferramentas de compartilhamento de SMS e imagens, que acabaram sendo substituídas finalmente por aplicativos de vídeo e áudio, transformando a interação online dependente exatamente dos mesmos recursos da interação real. Há anos que Anon997 não se deparava com qualquer texto, fora dos sites da resistência, que tivesse mais do que dois parágrafos e que não descrevesse um serviço ou programa para celulares.
A dita “resistência” lutara contra essa tendência bravamente. Lutaram pelo anonimato, pelo livre conteúdo, pela pirataria, pela liberdade de expressão. Mas, ao que aparentava, não foram capazes o suficiente. Com a queda do LastPlace.com, o último site acessado pelos antigos navegadores de computadores de mesa, todos os seus esforços morriam. Ter um computador de mesa agora era, além de antiquado, inútil. Todos os outros serviços eram exclusivos de celulares e dos recentes módulos virtuais que, quando injetados no pulso do usuário, traziam as informações por luzes diretamente na pele.
Desligou a máquina antiga, vindo da última leva de computadores feita oito anos antes. Os ditos “computadores pessoais” não eram mais comercializados. Seu uso era limitado apenas às empresas, já que existia uma grande burocracia envolvida em sua posse. Anon997 encarou o quarto, nos fundos de um pequeno apartamento na parte média da cidade, e chorou baixo envolto pela solidão. Ele não tinha celular, smartphone, gadget ou módulo injetável. Lutara contra essas formas de comunicação por toda sua vida, junto com seus colegas. Mas lembrava do plano final, combinado uma semana antes, já prevendo a morte da Internet. Ele levantou da sua antiga cadeira, saiu do quarto com passos lentos e trancou a porta atrás de si. Guardaria seu computador como um guerreiro nobre que resistira bravamente até o último momento.
Ele se arrumou às pressas, abandonou do apartamento, desceu pelas escadas e saiu ansioso pela tarde fria e chuvosa. As calçadas estavam depredadas e sujas por falta de uso, mas as avenidas estavam limpas como nunca, com veículos de todas as formas e tamanhos passando em ritmo acelerado por cima das faixas fluorescentes que iluminavam o concreto. O sistema de trânsito atual era computadorizado e ninguém de fato conduzia: Apenas marcavam numa pequena tela sensível ao toque o destino e o carro criava sua rota por conta própria. Anon997 nunca tivera a oportunidade de dirigir, pois o último carro com volante (na época já um artigo de colecionador) fora tirado de linha antes que ele atingisse a maioridade. Entretanto, se sentia privilegiado por ser um dos poucos que ainda se dava ao trabalho de andar pela cidade, ao invés de passar o dia inteiro sentado em um veículo automático e se exercitar apenas nas academias gigantescas dos centros comerciais.
Encarou o gigantesco edifício ao qual ia, um bloco cúbico maciço e sem janelas, absolutamente tomado por gigantescas telas de publicidade que ocupavam todo o espaço de suas quatro paredes externas. Como em uma gigantesca caixa de propagandas que nunca apagava, o Centro Comercial era uma visão colossal e irritante, confusa em sua mistura de imagens e anúncios e intimidadora em sua geometria perfeccionista e seus vinte andares ocupando todo um quarteirão. Era um dos Centros de segunda linha, apenas destinado a abastecer as necessidades do bairro médio onde se localizava, mas mesmo assim era impressionante. Anon997 já se perdera ali diversas vezes na busca de produtos simples, sendo abordado em cada esquina de cada corredor por um vendedor diferente lhe convidando a entrar em sua loja e comprar alguma coisa. Quando mais novo, se deixava levar facilmente por essas influências e, mesmo que fosse ao Centro para comprar apenas uma coisa específica, costumava sair com um mínimo de vinte itens. Um lampejo de felicidade tomou-o ao se orgulhar por não ser mais tão manipulável, mas ainda se sentia melancólico pelo motivo de visitar o prédio naquele dia específico. E sua angústia aumentou ao perceber que um evento tão importante como o fim da Internet livre parecia ter sido completamente ignorado pelo resto do mundo. Todos pareciam simplesmente ter se esquecido da rede com o tempo. Ele não encontrou sequer uma notícia, em lugar nenhum, que fizesse menção ao fechamento do último site do mundo.
Entrou pela porta da frente com a cabeça baixa, encarando os próprios pés e ignorando todos ao seu redor tanto quanto o ignoravam, absortos em seus brinquedos tecnológicos. Procurou qualquer pessoa que não estivesse segurando um aparelho ou que não tivesse um módulo virtual injetado na pele, mas não achou ninguém. Ele era um dos únicos ainda puros daquele tipo de distrações e ainda irrastreáveis, mas isso mudaria quando saísse dali. Andou cerca de meia hora por entre uma infinidade de lojas e lojinhas, todas bastante similares, antes de achar o lugar que procurava. A pequena revendedora de telefones estava ligeiramente vazia, com pouco mais de quarenta pessoas entre suas prateleiras escolhendo seus novos aparatos.
Foi recebido por um vendedor sorridente que tinha módulos implantados no olho esquerdo, na lateral de sua cabeça raspada, no pescoço e em ambos os braços. Uma voz melodiosa e artificial, quase cantada e bastante feminina, saiu pela boca do homem. Anon997 reconheceu o tom, vindo de um pequeno sintetizador adicionado cirurgicamente ao fundo da garganta e com conexão direta ao cérebro para personalizar a fala.
—Olá, Senhor! Em quê poderia ajudá-lo? Gostaria de comprar alguma coisa?
Sorriu ao perceber a confusão na expressão do funcionário, que provavelmente tentara acessar uma conexão de preferências com qualquer aparelho que carregasse. Ele, no entanto, não carregava aparelho nenhum e graças a isso não existia como puxar seus dados como nome, idade e produtos preferenciais para acelerar o processo de atendimento. O vendedor não parecia estar habituado a atender consumidores desta forma, com tão poucas informações. Anon997 anunciou, com a voz rouca de pouco uso:
—Preciso comprar um celular. Um dos mais simples, esse será meu primeiro celular e não quero ficar perdendo tempo – O funcionário arregalou os olhos, surpreso com a notícia de que alguém com aparentes vinte anos nunca tivesse tido um celular. De qualquer forma, tentou responder de forma gentil, mesmo que gaguejando um pouco.
—Você nunca teve... – Ele se calou por um segundo, processando o que escutara e provavelmente esperando informações sobre o procedimento padrão serem anunciadas por seu módulo injetado no olho. Após alguns instantes, continuou sorridente – Para clientes de primeira viagem, oferecemos pacotes com módulo de pulso, smartphone de primeira linha e cadastro inicial na Socialitty, tudo isso por um preço muito camarada, amigão! Não deixe essa super chance passar! – Anon997 conseguia sentir o exagero na voz do vendedor, provavelmente lendo aquelas informações em algum protocolo normalmente usado para lidar com crianças que vinham comprar seu primeiro aparelho. Bufou e respondeu ligeiramente ranzinza, em especial por culpa da menção à gigante Socialitty, que odiava com todas as forças.
—Quero só o celular. Sem módulo, sem planos, sem cadastro na Socialitty... Só o celular, o modelo mais básico.
O vendedor engoliu seco. Anunciou com a voz ligeiramente trêmula se deixando passar, mesmo por trás do alterador artificial e desumano que utilizava:
—Senhor, apenas o celular, sem os planos, sem o módulo, sem o cadastro... Creio que apenas o celular saia por quase o triplo do preço e sem nenhuma das vantagens oferecidas pela Socialitty, como o gerador de amizades, os encontros de amor casual, os créditos por fama...
—Tudo bem, eu tenho bastante dinheiro. Só o celular, por favor. – Anon997 interrompeu. Estava se irritando, pois não conseguia suportar escutar aquela entonação horrorosa e artificial. O atendente encarou-o por alguns longos segundos, provavelmente julgando-o e tentando novamente entrar em contato com qualquer dispositivo rastreável, mas não conseguiu e terminou por aceitar sua incapacidade. Pediu por paciência e saiu deslizando apressado com seus tênis antiatrito para voltar meia hora depois com uma caixa empoeirada em mãos, contendo um celular antigo.
—Senhor, com qual cartão deseja pagar? – O vendedor anunciou e, contanto que sua voz passasse gigante empolgação, Anon997 conseguia perceber certa má-vontade no fundo do único olho biológico do homem.
—Com dinheiro mesmo, por favor – Disse, já sorrindo ao prever a reação que receberia. O atendente ficou absurdamente confuso, olhou para os lados e travou por alguns segundos encarando o vazio, provavelmente pesquisando por algum procedimento para aquela situação. Anon997 duvidava que o homem alguma vez em sua vida já tivesse visto o bom e velho dinheiro, cada vez mais em desuso. Deu as notas contadas na mão do funcionário, que as encarou confuso. Anon997 percebeu que o funcionário não sabia nem mesmo contar se o valor recebido era o correto e que precisara recorrer à calculadora de seu implante no pulso para conferir a quantia recebida.
—Obrigado pelo atendimento, filho. – Agradeceu. Sentiu certa pena do rapaz, agora mudo, recebendo protocolos por suas conexões e com uma expressão débil de absoluta dúvida. O vendedor estava demasiado ocupado demais para responder, aprendendo o que deveria fazer com as cédulas. Ficou para trás, parado na entrada do estabelecimento, olhando para o nada e balbuciando sozinho aquilo que lia numa tela que só ele podia enxergar.
Anon997 andou sozinho pelos corredores amontoados do Centro Comercial até encontrar um banco vago, sentou-se e encarou a caixa do celular que comprara. Era um modelo de três anos antes, praticamente uma relíquia e que não tinha conexão com muitos dos módulos implantados atuais. Usuários daquele aparelho já eram automaticamente banidos da Socialitty e de diversos outros serviços e isso, naquele tempo, era equivalente à uma excomunhão. O aparelho era quase que de todo inútil, mas serviria ao seu propósito ligeiro.
Ligou o celular, que ao primeiro toque já registrou sua impressão digital para tornar-se individual e impossível de ser usado por alguém mais. Em seguida, a impressão acessou os arquivos do governo para receber as informações de registro, tais como nome, ficha criminal, cidade natal e língua nativa. Mesmo sem que ele tivesse passado qualquer informação, o celular brilhou em sua tela o dizer “Olá, Charlie Wallperk” por um momento, mas fora o suficiente para ele suspirar entristecido. Todos os seus dados agora estavam fora dos privados bancos de informação governamental e, neste exato momento, eram repassados para milhares de empresas privadas associadas. Aquilo era tão doloroso para ele quanto havia sido a morte do LastPlace, pois confirmava sua derrota e sua entrada no mundo que sempre batalhara para nunca ingressar. De manhã, ele era um cidadão livre com um nickname de escolha própria, observando cauteloso por suas últimas horas de Internet. Agora, ele era um nome entre milhares em um banco de dados, pronto para ser consultado quando fosse necessário.
Ele pesquisou pela ferramenta de chat combinada, um aplicativo de texto de segunda linha e abandonado já há anos chamado ChatServicePack2023. O programa continuava online por um possível erro do governo, que ignorara sua existência talvez por culpa da irrelevância atual do aplicativo ou pela falência da empresa criadora. Charlie ficou apreensivo enquanto instalava-o, temendo a possibilidade de seu aparelho bloquear o uso, mas conseguiu acesso rapidamente. As atualizações de segurança aconteceriam apenas ao reiniciar o celular e, a partir de então, seria proibido de usar o chat de texto e obrigado a usar algum programa por vídeo. Entretanto, nenhum outro programa serviria às suas atuais necessidades.
Ele criou seu usuário com seu já combinado nickname de Anon997, entrou na sala feita no dia anterior pela resistência e aguardou cinco minutos antes de finalmente se deparar com outro deles online. Konradok, que digitou ferozmente, frase atrás de frase, aparentava estar excitado por finalmente achar outro dos membros da resistência. Eram, antes de o LastPlace cair, cerca de duzentos no total, os remanescentes da Internet e os últimos usuários de computadores pessoais, aqueles que não se perderam com a morte dos outros fóruns ou com o fim das ferramentas de pesquisa para navegadores de computador.
Konradok: cara, cara, cara, cara.
Konradok: finalmente cara, finalmente.
Konradok: eu esperei por horas, horas. cade o Nppu?
Konradok: ele é o dono dessa sala de texto e nao chegou
Konradok: quem vai bloquear o acesso no fim da vigília se ele nao chegar??
Konradok: cade todo mundo, alias?
Konradok: por que ngm mais apareceu ainda? combinamos tudo, tudo mesm.
Konradok: Anon997, o lastplace caiu, voce tem nocao disso??
Konradok: o que voce acha que vai acontecer?
Charlie demorou alguns segundos para digitar sua resposta, pois não estava acostumado aos pequenos botões virtuais de celulares sensíveis ao toque. Passara a vida toda escrevendo em seus antiquados teclados.
Anon997: so da pra esperar. nao posso desligar essa m**** de celular ou vou ter que comprar outro pra conseguir acessar esse programa. tenho que correr pra casa e colocar esse lixo pra carregar.
Anon997: me espera ai. lembra, sao nove horas de vigilia aqui contando do momento em que o LastPlace caiu.
Konradok não era exatamente um dos membros mais relevantes da resistência atualmente. Charlie tinha suas dúvidas até mesmo sobre de que forma o companheiro conseguira chegar até ali. Conhecia-o havia seis anos. Ao migrar para o LastPlace, Konradok trouxera junto consigo em torno de trinta membros de seu antigo fórum que fora retirado do ar pelo governo, o 55ban.org. Charlie não nutria grande carinho por nenhum dos membros retirantes, exceto Konradok. Alguns poucos chegaram a citar o LastPlace.com na Socialitty e ele tinha quase certeza de que essa era, muito provavelmente, uma das origens de seu rastreamento e, consequentemente, de sua queda. Além disso, os seguidores de Konradok costumavam criticar duramente o LastPlace.com comparando-o com seu antigo e morto 55ban, criando discussões e polêmicas acerca dos métodos, regras e organização do fórum. Ele considerou com um suspiro prolongado que, entretanto, nada mudaria o que já acontecera e era necessário reagrupar os sobreviventes. Muitos dos órfãos do antigo 55ban eram membros atuais da resistência e, mesmo que só por isso, eles tinham seu valor. Konradok não fizera muito após chegar e se rendera às casualidades das redes sociais e smartphones, participando muito pouco das atividades recentes do LastPlace, mas sua presença por si já atrairia pelo menos uma dezena de seus fieis seguidores. Quanto mais pessoas reunissem, melhor.
Andou para casa em passos apressados, apreensivo de que o celular desligasse e de que sua conexão com o chat de texto fosse quebrada. A volta pareceu demorar o triplo de tempo da ida, embora estivesse quase correndo pelas ruas. Agora que escurecia, os quarteirões começavam a se iluminar por culpa de milhares de propagandas que piscavam por cada canto, cobrindo cada pequeno espaço com uma tela diferente. Era uma confusão caótica de cores, sons e cheiros vindos de cada edifício, fosse ele comercial ou não. O pequeno prédio em que Charlie morava, entretanto, era agraciado com a escassez de anúncios. Na fachada não era possível contar mais do que vinte telas diferentes. Ele pegou sua chave no bolso e entrou pelos fundos, no antigo e enferrujado portão simples do prédio. Para entrar no pela entrada principal, bem como para usar o elevador social, era necessário acessar um perfil da Socialitty, coisa que ele não possuía.
Ele subiu para o apartamento pelas escadas, pulando os degraus até atingir o quinto andar. Ofegante, abriu a porta do apartamento, correu pela sala e foi diretamente ao pequeno quarto abafado dos fundos, destrancou-o, acendeu a luz e encarou seu antigo computador na mesa, solitário e desligado. Sentou-se na cadeira, conectou o teclado no celular e torceu por alguns segundos para que fosse reconhecido. Ficou extremamente satisfeito ao descobrir que sim, quase tão satisfeito quando ficou ao olhar novamente a sala de conversa de texto em que estavam aguardando e perceber que, além de Konradok, agora outros cinquenta membros da resistência estavam ali, incluindo Nppu, o dono do LastPlace e líder da resistência.
Anon997 digitou, entre os diversos companheiros, uma saudação humilde. Todos falavam sobre suas últimas experiências com o LastPlace e compartilhavam lembranças, experiências e ideias. Esboços da tentativa de abrir um novo site apareciam hora ou outra. Nppu permanecia em silêncio, fazendo apenas pequenos comentários quando lhe perguntavam algo. Anon997 pode reconhecer vários de seus maiores amigos ali, pessoas das quais ele nunca vira sequer o rosto, mas com quem conversava e partilhara informação e conteúdo pelos últimos dez anos. LulzVT, LittleLolive73, CPbedo, Teut40, Oladog, Erre, AnaoBrod32, AncientKraut, ConfrUTOr, entre outros, todos companheiros de uma árdua luta perdida.
O tempo se passou com as pequenas conversas até que, finalmente, suas nove horas de vigília acabaram. Ao final desse período, haviam reunido oitenta e dois membros dos duzentos que existiam no LastPlace. Entristecido, Anon997 percebeu que nunca mais veria qualquer um dos que não conseguiram acessar o ChatServicePack2023 naquela noite. Nppu trancou a sala de bate-papo onde estavam, impedindo que qualquer novo membro pudesse acessá-la. Logo após, calou todos os outros membros com seus privilégios de administrador, fazendo com que ninguém além dele pudesse digitar enquanto fosse de sua vontade. Com o silêncio acionado, começou, enfim, seu discurso:
Nppu: Gostaria de deixar aqui meus pêsames para os mais de cem membros com os quais perdemos contato hoje. Infelizmente, nunca mais saberemos de nenhum deles e nenhum novo membro será aceito posteriormente. Gostaria de deixar isso bem claro para que aqueles presentes que possuem perfis no Socialitty não percam seu tempo anunciando para ninguém a resistência. Ninguém mais será aceito, apenas lidem com isso.
Anon997 sabia exatamente a quem esse primeiro aviso se direcionava. A última dezena de membros, vinda para o LastPlace dois anos antes, bem como alguns dos seguidores de Konradok, costumavam anunciar o site na Socialitty e tinham conhecidos que sabiam acessar o último site do mundo também. Com a morte do LastPlace e o fim da vigília, muitos poderiam tentar fazer com que amigos ou membros perdidos aderissem ao grupo de bate-papo dos sobreviventes, apenas por curiosidade ou para conseguir status. O aviso de Nppu, contanto, impossibilitava esse tipo de conduta perigosa.
Nppu: Gostaria também de dar pêsames pela morte do LastPlace e, por consequência, da Internet por computador pessoal. Não pretendo fazer outro site e creio que, atualmente, seria impossível. O LastPlace contava com o último servidor não controlado do mundo e isso só era possível por culpa dos quinze anos do fórum. Atualmente, não consigo imaginar como poderia conseguir outro servidor para nos hospedar, bem como não consigo imaginar que ele sobreviveria mais do que um dia antes de ser tirado do ar pelo governo novamente. As leis que proíbem a Internet por desktop foram aceitas, colegas. Não existe mais esperança para a Internet.
Um clima fúnebre pareceu emanar do celular quando leu a última frase. Sentia um peso no peito e conseguia imaginar reações parecidas nos outros membros mudos, apenas esperando Nppu terminar seu discurso antes de se pronunciarem para defender a tentativa de abrir outro fórum. O líder do morto LastPlace demorava a digitar, mas fazia questão de escrever corretamente, inclusive utilizando pontuação. Seus textos eram sempre bastante conhecidos por sua comunidade e costumavam inspirar os membros do fórum morto, mas dificilmente ele conseguiria acalentar algum dos presentes em uma situação tão crítica quanto aquela.
Nppu: Esse não é fim de nosso grupo, entretanto. Creio que seja necessário que continuemos nossa resistência e luta, mas agora mudando de foco. Antes de tudo, gostaria de perguntar aos presentes: Quantos aqui possuem um módulo virtual implantável no corpo?
A sala foi tirada do mudo por alguns momentos. Cinco membros se pronunciaram, admitindo ter módulos presos em si, três deles seguidores de Konradok. A sala foi calada novamente logo após.
Nppu: Agradeço aos cinco pela sinceridade e por tudo que fizeram por nós até aqui, mas temo que não possam mais estar conosco. Sinto muito. Vocês terão minha eterna gratidão por terem mantido o LastPlace vivo até hoje, mas não podem participar do que pretendo começar agora. Obrigado e me desculpem, mesmo.
Os cinco proprietários de módulos virtuais injetáveis foram expulsos da sala por Nppu. Agora, eram setenta e sete sobreviventes. O discurso continuou:
Nppu: Essa sala de texto tem pouco tempo para nós. Tínhamos pouco menos de vinte quatro horas para decidir tudo antes do rastreamento e do fechamento desse serviço, agora creio que estejamos lidando com cerca de uma hora. Não acredito que algum dos cinco que acabei de expulsar não vá nos denunciar imediatamente. Gostaria de pedir que todos queimassem os seus aparelhos após essa sala cair. Preciso ser rápido e gostaria de deixar claro o que faremos daqui pra frente.
Nppu: Fomos por anos um grupo de resistência pela Internet, mas não apenas por ela. Nós lutamos pelos benefícios que essa rede nos trouxe até hoje e que, infelizmente, não nos trará mais. Lutamos pelo direito de escrever textos, o direito do anonimato, dos pseudônimos, do livre conteúdo. Lutamos pela simplicidade dos fóruns antigos, pelo direito ao uso das poderosas máquinas que os computadores são. Lutamos pelo fim da banalidade, contra a irrelevância, pela liberdade sexual e política, pelo fim do moralismo e da hipocrisia, contra a censura, contra a posse e segregação de ideias. Podemos continuar essa luta, mesmo sem o LastPlace.
Nppu: Eu tenho cerca de duzentos HDs comigo contendo tudo postado no LastPlace nos últimos quinze anos. Os filmes, músicas, livros, os textos que todos vocês escreveram lá nesse tempo, os programas que criamos juntos, os backups e arquivos de milhões de sites mortos que nós guardamos e restauramos, arquivei tudo. E sei que vocês devem ter muito conteúdo guardado também. Podemos continuar resistindo como era feito antigamente, da forma que nossos avós faziam, para proteger e divulgar todo esse conhecimento: Usando o mundo real.
Nppu: Por mais absurdo e desesperado que pareça, eu sei, é esse o rumo que pretendo tomar daqui pra frente. Gostaria que nos reuníssemos ao vivo, para conversamos e projetarmos formas de manter nossa comunidade. Tenho planos para nos manter unidos e, posteriormente, fazer nosso grupo voltar a crescer. Infelizmente, não poderei aceitar no nosso movimento qualquer um que possua módulos implantáveis, mas fora isso, qualquer um de vocês presentes que esteja disposto a abandonar seus aparatos tecnológicos é bem-vindo. Quero fazer isso do jeito antigo: Todos humanos, apenas humanos, sem as interferências e distrações desse mundo, sem as banalizações da mídia, sem os riscos de sermos expostos na Socialitty, apenas nós e todas as maravilhas da humanidade guardadas conosco.
Nppu: Eu sei que será difícil, mas eu tenho esperanças. Sei que praticamente nenhum de vocês mora próximo um do outro, mas teremos que fazer um esforço. Decidi qual será nossa cidade sede de acordo com o local que tinha mais membros ativos LastPlace, mas sei que ainda assim será difícil de nos reunirmos. Por isso darei o período de um mês para que possamos nos encontrar. Viajei para este lugar com antecedência e já montei nosso quartel aqui. Estou passando o endereço num arquivo para vocês, companheiros.
Anon997 abriu o arquivo e ficou surpreso ao ver que o local onde Nppu se encontrava ficava poucas quadras de distância, no quadrante mais pobre da cidade, em um armazém. Pensou em ir correndo para lá agora mesmo, mas decidiu esperar até que Nppu terminasse de contar o que gostaria.
Nppu: Esperarei por vocês nesse armazém por dois meses. Depois disso, mudaremos de localização. Organizaremos-nos frente a frente, conversando juntos, sem celulares ou módulos para nos rastrearem. Ficaremos juntos e cresceremos para defender o que queremos, protegendo o que é nosso. Estaremos no mundo, prontos para lutar com nossas mãos e armas, não com códigos ou programas de computador. Enxergaremos uns aos outros. Gritaremos juntos por nossos desejos numa voz só, ao mesmo tempo, com nossas diversas entonações naturais. Voltaremos às ruas, meus amigos. Anunciaremos ao mundo as maravilhas esquecidas e os faremos olhar novamente para nós e para suas cidades. Tiraremos suas atenções de seus brinquedinhos e faremos com que enxerguem para tudo que foi tirado deles e de nós. Honraremos a memória da grande rede e faremos sua história ser lembrada, não simplesmente afogada no mar de estupidez que assola a realidade de hoje. Nós conseguiremos, amigos. Eu sei que sim!
Nppu: Voltaremos às ruas, amigos!
Nppu: Voltaremos às ruas!
Nppu: Voltaremos
A sala caiu e um logotipo gigantesco da empresa fabricante do celular piscou na tela, anunciando uma atualização de emergência. Charlie ficou bastante surpreso em ver que demorara muito menos tempo do que aquela uma hora que Nppu havia previsto para que fossem rastreados.
Ele pegou um pouco de álcool na cozinha e embebedou o aparelho. Acendeu um fósforo e observou as chamas consumirem-no lentamente enquanto uma fumaça cinza enchia o quarto. O celular fez um último barulho agudo, alto e esganiçado de erro, quase uma ameaça selvagem ou um grito de desespero, e então desligou enquanto sua tela derretida se espalhava pelo chão.