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Revisitando The Last of Us – Por que é um jogo tão especial?

Falken

Poetry & Games
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Atenção: Esta é uma análise do primeiro jogo, direcionada a quem já jogou, uma visão minha sobre os motivos que levaram The Last of Us ao sucesso que é. Se você nunca jogou o primeiro The Last of Us, recomendo que pule este review, você não precisa dele, apenas jogue esta obra-prima sem pensar duas vezes. Também é importante frisar que essa não é uma review tradicional, não vou focar muito em mecânicas e gameplay no geral, apenas no que pra mim torna o jogo o sucesso que é.



Escrevo isso no dia do lançamento de The Last of Us part 2, enquanto espero ansioso minha cópia chegar. Confesso que de início pensava que The Last of Us não precisava de uma continuação, mas tenho plena confiança nas pessoas que trabalham nele, pelo belíssimo trabalho que fizeram no primeiro, e tenho certeza que entregarão mais uma grande experiência que justificará sua existência. The Last of Us é único, e é sobre isso que quero divagar nessa análise.

Antes de começar a escrever esse texto, tentei inicialmente encontrar uma definição para o jogo. É um jogo de ação e sobrevivência com elementos de Stealth? É um jogo de zumbis? É um jogo sobre o fim da humanidade?

Entretanto, tudo isso me parece raso demais para descrever o jogo, é o tipo de definição que não consegue abranger de forma satisfatória o que uma obra como essa tem de fato a oferecer. Eu consigo tranquilamente atribuir esse tipo de definição a um jogo “médio” qualquer, mas nesse caso eu jamais conseguiria fazer justiça ao colocar um rótulo tão simples assim. Se algum amigo me perguntar o que é The Last of Us, no mínimo direi “Bom, é um jogo de ação, com zumbis e tals”. Ok, mas é mais o quê? O que é “The Last of Us” e por que é tão aclamado mundialmente?

O ápice da narrativa em videogames

Jogos com grande ênfase na história que está sendo contada não são novidade na indústria, os ditos jogos “cinematográficos” já são praticamente um padrão na indústria, portanto, The Last of Us não é inovador nesse aspecto, seu grande trunfo na verdade não está em o que ele faz e sim em como o faz.
É verdade que videogames estão cada vez mais próximos do que filmes entregam em termos de complexidade da história a ser contada, porém há ainda muitos obstáculos que distanciam a qualidade em que entregam essas histórias, seja por diferencias irremediáveis entre as mídias, seja por limitações gráficas, ou até mesmo por qualidade de dublagem e atuação.

Vou dar um exemplo.

Horizon Zero Dawn é um jogo incrível, que tem um enredo fantástico, criativo, com uma lore cheia de possibilidades e uma personagem com muita personalidade, mas o desenrolar dessa história raramente passa alguma emoção, alguma veracidade, e isso se dá principalmente por dois motivos:
  • As expressões faciais e as atuações de grande parte dos atores/dubladores não acompanham a qualidade gráfica do game, e falham em transmitir a emoção que certas cenas teriam, teoricamente, que passar.
  • A história não consegue se fundir tão bem com o gameplay, esse aspecto entra num senso comum da indústria onde parece que o jogo se divide em gameplay e cutscene, as duas coisas andam separadas. Um sentimento de “Vou ali pra ativar a cutscene e dar continuidade na história”, que me soa um tanto artificial, um tanto “padrãozinho demais”.
The Last of Us, lançado 4 anos antes, faz com maestria tudo o que Horizon e grande parte dos jogos AAA falham em fazer.
Eu joguei The Last of Us em meados de 2014, bem depois do game ter sacudido a indústria, e joguei com certa descrença de que realmente poderia ser tudo o que falam. Iniciei o jogo e logo no prólogo o jogo já me marcou pra sempre.
A morte de Sarah foi um grande acerto estrutural para o início da história que seria contada a partir dali, mas não só isso, a atuação e o trabalho dos dubladores naquela cena foram de uma qualidade que até então eu nunca havia visto fora da indústria cinematográfica. O desespero do Joel vendo sua filha baleada fez eu me sentir na pele dele, fez eu entender o que ele estava sentindo - e eu nem tenho filho - a agonia da Sarah, uma criança que mal teve tempo de entender o que estava acontecendo, chorando nos braços do pai sem conseguir emitir uma única palavra até sua morte, foi brutal e totalmente honesto para com o jogador, é uma cena que faz você entender as motivações e os sentimentos do personagem e esfrega na sua cara que tanto ele quanto o mundo em que vive nunca mais seriam o mesmo.
Até hoje eu me impressiono como o jogo conseguiu me passar tanta emoção, fez eu sentir tanto a perda de uma personagem em questão de minutos, foi um feito absurdo, e até então inédito pra mim em tantos anos de jogatina. A partir dali The Last of Us mostrou do que seria capaz durante toda sua campanha.

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Não vou me ater ao básico da história, que a essa altura todos vocês que estão lendo já conhecem, ao invés disso quero focar nas nuances dessa história, na forma que ela é contada.
Depois dos eventos do prólogo, vemos um Joel marcado pelo tempo, tanto em sua aparência quanto em sua personalidade, um homem que nunca souber lidar com sua perda, mesmo 20 anos depois, preferindo a maquiar com uma personalidade dura, se apoiar no esquecimento forçado e assim fugir do seu passado. É aqui que você começa a perceber o quão importante aquele prólogo foi, pois de uma maneira geral somos apresentado a um personagem e depois a suas motivações e/ou passado, enquanto The Last of Us segue o caminho contrário, fazendo com que automaticamente nos conectemos com o personagem, e essa conexão é extremamente importante para um jogo que almeja contar uma história marcante.
Joel então é apresentado a Ellie, uma garotinha que inicialmente para ele é apenas mais um de seus trabalhos como contrabandista, mas que ao longo do jogo se apresenta como peça fundamental para uma grande mudança na vida do mesmo. E aqui temos outro ponto chave do sucesso do game.


Gameplay que anda de mãos dadas com a história

Ao apresentar dois personagens desconhecidos um ao outro, a Naughty Dog permitiu que o player se conectasse e vivenciasse a formação do laço que se forma ao longo do jogo. Você na pele de Joel, se apega a Ellie quase que ao mesmo tempo, e de uma forma tão natural que é difícil não se envolver emocionalmente, é difícil não querer proteger a Ellie tanto quanto o Joel, é difícil não se sentir imerso nesse mundo e nessa relação entre os dois.
Videogames tem uma vantagem sobre o cinema quando o assunto é contar histórias, mas raramente a aproveita: O tempo de duração.
Enquanto um jogo tem em média 20 horas de duração, um filme tem no máximo 3 pra contar sua história. Deixado a diferença de técnicas entre as duas mídias de lado, isso é uma grande vantagem subutilizada nos videogames, uma boa parte falha em atingir um envolvimento nessas 20 horas, ou demora algumas horas com momentos aqui e ali, enquanto The Last of Us consegue entregar isso em questão de minutos sem deixar de lado o gameplay.
Conforme eu disse no começo do texto, Jogos normalmente “separam” a história contada de seu gameplay. No geral há um sentimento de que as cutscenes são o único meio de contar a história, e que o gameplay serve para que você chegue até elas e descubra o que acontece a seguir. The Last of Us consegue quebrar isso de maneira extremamente inteligente usando textos bem escritos, personagens bem construídos e dublagens incríveis, mas DURANTE o gameplay.
É comum que durante o gameplay, haja diálogos extremamente dinâmicos entre Joel e Ellie. Nos momentos de luta, quando você arrebenta um inimigo na porrada você escuta um “oh my god, joel” de Ellie, ou muitas vezes ela grita seu nome em desespero quando é agarrada por um inimigo, até aqui não temos nada extraordinário, mas o jogo dá um passo adiante e durante as andanças do jogo, é comum ter diálogos opcionais (não confundir com diálogos de escolhas, como The Witcher) que dão um panorama interessante sobre a personalidade de cada um, além é claro, dos diálogos que acontecem sem a necessidade de um prompt.

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Nunca esqueço de um momento em que Ellie aprende a assobiar, e ela fica extremamente feliz, enquanto Joel apenas resmunga irônico que será mais uma coisa que “deixará ele louco”. Pode parecer bobo, mas é algo que humaniza os personagens, pois eu facilmente posso imaginar uma criança real tendo aquela reação, e são em momentos como esse que vemos que apesar de ter passado por tanta coisa, Ellie ainda é uma criança e, como tal, tem seus momentos de simplicidade e inocência. E quem não se lembra do icônico momento em que ela vê uma girafa pela primeira vez? A reação dela, maravilhada, como se aquele momento tão singelo fosse a coisa mais incrível que poderia acontecer a ela – e talvez de fato fosse, naquele contexto - é simplesmente tocante, ela tem a reação que se espera de uma criança real, e tudo isso acontece com você no controle, tendo um somente um comando simples para interagir com aquele momento, e esse comando simples faz toda a diferença, pois você sente que está no personagem, você é Joel naquele momento, e essa imersão do momento não seria possível em uma cutscene tradicional.

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Tudo isso não são apenas coisas esporádicas, há vários destes momentos no game, vários diálogos opcionais que em sua grande maioria dão sempre uma profundidade a mais, por mais simples que sejam. Essa humanização dos personagens em meio ao gameplay faz com que o mesmo ande de mãos dadas com a história e a trajetória dos personagens; o jogo quer te contar uma história com começo meio e fim definidos, mas quer te incluir nela, fazer com que você sinta o que os personagens sentem e isso faz toda a diferença.
Tudo isso é envolto em um pacing agradável, que intercala momentos de extrema tensão, com momentos de calmaria, aonde você pode admirar os incríveis ambientes criados fielmente a partir da premissa “O que acontecria com o mundo se nós não ivessemos nele?”; explorar os cenários muito bem construídos para renovar seus suprimentos e descobrir coletáveis que enriquece a lore daquele mundo desolado.


Cordyceps e os “Zumbis”

Mesmo em seu aspecto mais fantasioso, os “zumbis”, The Last of Us encontrou uma forma criativa e “pé no chão”, para somar ao realismo daquele mundo. Aqui temos, ao invés do vírus tradicional, um fungo chamado Cordyceps, que existe no mundo real, e possui mais de 400 espécies, sendo todas elas parasitas. Em sua maioria, as vítimas são insetos e artrópodes, como formigas e aranhas, mas eles também podem parasitar até outros fungos. A principal característica do Cordyceps é que ele repõe o tecido do seu hospedeiro, criando um aspecto de cogumelo, e pode controlar o comportamento do animal.
Após alguns dias, a infecção mata o hospedeiro e o utiliza para espalhar esporos (Te lembra alguma coisa?)

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Isso traz um aspecto realista visualmente falando, com cada estágio tendo características bem específicas, com o fungo cada vez mais visível. Falando especificamente de um: Os Clickers.
O som que eles emitem, sua aparência, o fato deles serem cegos, mas sensíveis a barulho, além de sua letalidade, tudo isso junto faz com que tenhamos um inimigo mortal, que dá uma dinâmica ao gameplay e um toque de terror ao ambiente.

340

E o Gameplay em si?

The last of Us não entrega nada que já não vimos antes; seus elementos de stealth são extremamente básicos, porém o gunplay e as lutas corpo a corpo são competentes e viscerais. Joel é um cara bruto e disposto a qualquer coisa para sobreviver, e isso transparece nas lutas, tendo diversas animações de execuções diferentes, e um peso excelente aos comandos. A parte de exploração é um dos pontos altos do jogo, pois por ser um jogo aonde os recursos são escassos, procurar itens para se manter é extremamente prazeroso.
O maior ponto negativo do jogo está na IA dos inimigos humanos, especialmente no que diz respeito ao seu parceiro, já que eles o ignoram completamente mesmo que passe na frente, quebrando a imersão do jogo quando isso acontece. Eu entendo que talvez essa seja uma decisão para o seu parceiro não atrapalhar e frustrar o jogador, mas poderiam ao menos fazer com o que a IA nunca se expusesse aos inimigos, por exemplo.

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Uma trilha sonora tocante

Uma boa trilha sonora é fundamental para ajudar a passar qualquer tipo de sentimento, e aqui ela é parte fundamental da experiência como um todo, quase um personagem extra do jogo. A Naughty dog contratou um músico argentino chamado Gustavo Santaolalla, que já ganhou diversos prêmios na indústria cinemetográfica, inclusive dois Oscars por melhor trilha sonora original (Babel, O Segredo de Brokeback mountain), e este seria seu primeiro trabalho em um Videogame. Foi uma decisão incrivelmente acertada.

A começar pelo tema do jogo, uma música que usa apenas um instrumento chamado Ronroco, uma espécia de Bandolin misturado com cavaquinho (é o mais próximo que posso chegar de descrevê-lo hahah) e tem um som meio doce e melancólico, que na minha opinião passa exatamente o tom do jogo, no geral. É uma música marcante, que hoje já faz parte do seleto grupo de músicas que ficam na cabeça dos players através dos anos.
Mas não é só ela que dá o tom do jogo, todas as melodias sempre tocam exatamente no momento certo para dar o feeling que o momento quer passar, seja ele drama, ação, terror, etc. Foi um trabalho magnífico, que toca o coração e contribui ainda mais pra toda a experiencia.




Tons de Cinza

The Last of Us não é uma história sobre o apocalipse ou sobre a busca pela salvação da humanidade, ela é, em sua essência, uma história sobre nosso comportamento e todas as nuances que vem com ele, e talvez, acho que se eu fosse resumir tudo, acredito que seria isso que faz de The Last of Us algo tão especial. Não há super heróis ou personagens estereotipados, apenas pessoas com qualidades, defeitos, medos, angústias, traumas... o jogo pega tudo isso e retrata em um mundo pós-apocaliptico, de forma quase perfeita.
Todos os personagens agregam ao que o jogo quer passar ao jogador, todos tem um papel fundamental, algo a passar, e por mais curta que seja sua participação na jornada de Ellie e Joel, todos nos ensinam algo, nos mostra uma lado que nós, no conforto do nosso mundo atual, nem sabemos que temos.
The Last of Us nos faz questionar nossa própria natureza, nossa própria moral. Tem uma cena que Ellie acha um diário do nosso tempo, em que uma garota escreve sobre qual roupa vai combinar, sobre o namoradinho da escola e coisas assim, e então Ellie ao ler aquilo questiona: “Nossa, era com isso que as garotas nessa época se preocupavam? Roupas e garotos? Que estranho”, e sim, parando pra pensar, o quão trivial é tudo isso? O quão imersos estamos em nossas superficialidades a ponto de às vezes nem perceber o que realmente importa?

E então temos o final do jogo, onde Joel descobre, que a operação que possivelmente poderia salvar a humanidade com uma vacina, acabaria por matar Ellie. E então ele, já tomado por um amor que ele havia perdido há 20 anos atrás, decide salvá-la, comprometendo toda a humanidade. O jogo termina exatamente como um espelho ao seu início, com Joel segurando uma garotinha em seus braços, mas dessa vez não estava disposto a deixar acontecer o mesmo que aconteceu com sua filha.

Após Ellie acordar, ele mente para ela, dizendo que a cura era impossível e Ellie o faz jurar que está dizendo a verdade.
Foi uma decisão egoísta? Faríamos o mesmo se fosse alguém que amamos? Joel é um herói ou um vilão? O que você faria?
Toda essa filosofia por trás, capaz de deixar o jogar atônito e pensativo enquanto os créditos rolam, é que faz com que percebemos o quão única aquela jornada foi, e todo esse sentimento, toda essa filosofia e todos esses tons de cinza, é que fazem com que The Last of Us seja... The Last of Us.

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“Não importa o que aconteça, você tem que continuar achando algo pelo qual lutar” - Joel


Esses são meus pensamentos acerca de The Last of Us, quase que uma singela homenagem pra um dos meus jogos favoritos de todos os tempos. Espero que ele tenha sido uma grande experiência pra você também, que leu até aqui. Que a continuação faça jus a esse legado.

 
Ultima Edição:

Ulisses Seventy Eight

Ei mãe, 500 pontos!
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Atenção: Esta é uma análise do primeiro jogo, direcionada a quem já jogou, uma visão minha sobre os motivos que levaram The Last of Us ao sucesso que é. Se você nunca jogou o primeiro The Last of Us, recomendo que pule este review, você não precisa dele, apenas jogue esta obra-prima sem pensar duas vezes. Também é importante frisar que essa não é uma review tradicional, não vou focar muito em mecânicas e gameplay no geral, apenas no que pra mim torna o jogo o sucesso que é.



Escrevo isso no dia do lançamento de The Last of Us part 2, enquanto espero ansioso minha cópia chegar. Confesso que de início pensava que The Last of Us não precisava de uma continuação, mas tenho plena confiança nas pessoas que trabalham nele, pelo belíssimo trabalho que fizeram no primeiro, e tenho certeza que entregarão mais uma grande experiência que justificará sua existência. The Last of Us é único, e é sobre isso que quero divagar nessa análise.

Antes de começar a escrever esse texto, tentei inicialmente encontrar uma definição para o jogo. É um jogo de ação e sobrevivência com elementos de Stealth? É um jogo de zumbis? É um jogo sobre o fim da humanidade?

Entretanto, tudo isso me parece raso demais para descrever o jogo, é o tipo de definição que não consegue abranger de forma satisfatória o que uma obra como essa tem de fato a oferecer. Eu consigo tranquilamente atribuir esse tipo de definição a um jogo “médio” qualquer, mas nesse caso eu jamais conseguiria fazer justiça ao colocar um rótulo tão simples assim. Se algum amigo me perguntar o que é The Last of Us, no mínimo direi “Bom, é um jogo de ação, com zumbis e tals”. Ok, mas é mais o quê? O que é “The Last of Us” e por que é tão aclamado mundialmente?

O ápice da narrativa em videogames

Jogos com grande ênfase na história que está sendo contada não são novidade na indústria, os ditos jogos “cinematográficos” já são praticamente um padrão na indústria, portanto, The Last of Us não é inovador nesse aspecto, seu grande trunfo na verdade não está em o que ele faz e sim em como o faz.
É verdade que videogames estão cada vez mais próximos do que filmes entregam em termos de complexidade da história a ser contada, porém há ainda muitos obstáculos que distanciam a qualidade em que entregam essas histórias, seja por diferencias irremediáveis entre as mídias, seja por limitações gráficas, ou até mesmo por qualidade de dublagem e atuação.

Vou dar um exemplo.

Horizon Zero Dawn é um jogo incrível, que tem um enredo fantástico, criativo, com uma lore cheia de possibilidades e uma personagem com muita personalidade, mas o desenrolar dessa história raramente passa alguma emoção, alguma veracidade, e isso se dá principalmente por dois motivos:
  • As expressões faciais e as atuações de grande parte dos atores/dubladores não acompanham a qualidade gráfica do game, e falham em transmitir a emoção que certas cenas teriam, teoricamente, que passar.
  • A história não consegue se fundir tão bem com o gameplay, esse aspecto entra num senso comum da indústria onde parece que o jogo se divide em gameplay e cutscene, as duas coisas andam separadas. Um sentimento de “Vou ali pra ativar a cutscene e dar continuidade na história”, que me soa um tanto artificial, um tanto “padrãozinho demais”.
The Last of Us, lançado 4 anos antes, faz com maestria tudo o que Horizon e grande parte dos jogos AAA falham em fazer.
Eu joguei The Last of Us em meados de 2014, bem depois do game ter sacudido a indústria, e joguei com certa descrença de que realmente poderia ser tudo o que falam. Iniciei o jogo e logo no prólogo o jogo já me marcou pra sempre.
A morte de Sarah foi um grande acerto estrutural para o início da história que seria contada a partir dali, mas não só isso, a atuação e o trabalho dos dubladores naquela cena foram de uma qualidade que até então eu nunca havia visto fora da indústria cinematográfica. O desespero do Joel vendo sua filha baleada fez eu me sentir na pele dele, fez eu entender o que ele estava sentindo - e eu nem tenho filho - a agonia da Sarah, uma criança que mal teve tempo de entender o que estava acontecendo, chorando nos braços do pai sem conseguir emitir uma única palavra até sua morte, foi brutal e totalmente honesto para com o jogador, é uma cena que faz você entender as motivações e os sentimentos do personagem e esfrega na sua cara que tanto ele quanto o mundo em que vive nunca mais seriam o mesmo.
Até hoje eu me impressiono como o jogo conseguiu me passar tanta emoção, fez eu sentir tanto a perda de uma personagem em questão de minutos, foi um feito absurdo, e até então inédito pra mim em tantos anos de jogatina. A partir dali The Last of Us mostrou do que seria capaz durante toda sua campanha.

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Não vou me ater ao básico da história, que a essa altura todos vocês que estão lendo já conhecem, ao invés disso quero focar nas nuances dessa história, na forma que ela é contada.
Depois dos eventos do prólogo, vemos um Joel marcado pelo tempo, tanto em sua aparência quanto em sua personalidade, um homem que nunca souber lidar com sua perda, mesmo 20 anos depois, preferindo a maquiar com uma personalidade dura, se apoiar no esquecimento forçado e assim fugir do seu passado. É aqui que você começa a perceber o quão importante aquele prólogo foi, pois de uma maneira geral somos apresentado a um personagem e depois a suas motivações e/ou passado, enquanto The Last of Us segue o caminho contrário, fazendo com que automaticamente nos conectemos com o personagem, e essa conexão é extremamente importante para um jogo que almeja contar uma história marcante.
Joel então é apresentado a Ellie, uma garotinha que inicialmente para ele é apenas mais um de seus trabalhos como contrabandista, mas que ao longo do jogo se apresenta como peça fundamental para uma grande mudança na vida do mesmo. E aqui temos outro ponto chave do sucesso do game.


Gameplay que anda de mãos dadas com a história

Ao apresentar dois personagens desconhecidos um ao outro, a Naughty Dog permitiu que o player se conectasse e vivenciasse a formação do laço que se forma ao longo do jogo. Você na pele de Joel, se apega a Ellie quase que ao mesmo tempo, e de uma forma tão natural que é difícil não se envolver emocionalmente, é difícil não querer proteger a Ellie tanto quanto o Joel, é difícil não se sentir imerso nesse mundo e nessa relação entre os dois.
Videogames tem uma vantagem sobre o cinema quando o assunto é contar histórias, mas raramente a aproveita: O tempo de duração.
Enquanto um jogo tem em média 20 horas de duração, um filme tem no máximo 3 pra contar sua história. Deixado a diferença de técnicas entre as duas mídias de lado, isso é uma grande vantagem subutilizada nos videogames, uma boa parte falha em atingir um envolvimento nessas 20 horas, ou demora algumas horas com momentos aqui e ali, enquanto The Last of Us consegue entregar isso em questão de minutos sem deixar de lado o gameplay.
Conforme eu disse no começo do texto, Jogos normalmente “separam” a história contada de seu gameplay. No geral há um sentimento de que as cutscenes são o único meio de contar a história, e que o gameplay serve para que você chegue até elas e descubra o que acontece a seguir. The Last of Us consegue quebrar isso de maneira extremamente inteligente usando textos bem escritos, personagens bem construídos e dublagens incríveis, mas DURANTE o gameplay.
É comum que durante o gameplay, haja diálogos extremamente dinâmicos entre Joel e Ellie. Nos momentos de luta, quando você arrebenta um inimigo na porrada você escuta um “oh my god, joel” de Ellie, ou muitas vezes ela grita seu nome em desespero quando é agarrada por um inimigo, até aqui não temos nada extraordinário, mas o jogo dá um passo adiante e durante as andanças do jogo, é comum ter diálogos opcionais (não confundir com diálogos de escolhas, como The Witcher) que dão um panorama interessante sobre a personalidade de cada um, além é claro, dos diálogos que acontecem sem a necessidade de um prompt.

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Nunca esqueço de um momento em que Ellie aprende a assobiar, e ela fica extremamente feliz, enquanto Joel apenas resmunga irônico que será mais uma coisa que “deixará ele louco”. Pode parecer bobo, mas é algo que humaniza os personagens, pois eu facilmente posso imaginar uma criança real tendo aquela reação, e são em momentos como esse que vemos que apesar de ter passado por tanta coisa, Ellie ainda é uma criança e, como tal, tem seus momentos de simplicidade e inocência. E quem não se lembra do icônico momento em que ela vê uma girafa pela primeira vez? A reação dela, maravilhada, como se aquele momento tão singelo fosse a coisa mais incrível que poderia acontecer a ela – e talvez de fato fosse, naquele contexto - é simplesmente tocante, ela tem a reação que se espera de uma criança real, e tudo isso acontece com você no controle, tendo um somente um comando simples para interagir com aquele momento, e esse comando simples faz toda a diferença, pois você sente que está no personagem, você é Joel naquele momento, e essa imersão do momento não seria possível em uma cutscene tradicional.

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Tudo isso não são apenas coisas esporádicas, há vários destes momentos no game, vários diálogos opcionais que em sua grande maioria dão sempre uma profundidade a mais, por mais simples que sejam. Essa humanização dos personagens em meio ao gameplay faz com que o mesmo ande de mãos dadas com a história e a trajetória dos personagens; o jogo quer te contar uma história com começo meio e fim definidos, mas quer te incluir nela, fazer com que você sinta o que os personagens sentem e isso faz toda a diferença.
Tudo isso é envolto em um pacing agradável, que intercala momentos de extrema tensão, com momentos de calmaria, aonde você pode admirar os incríveis ambientes criados fielmente a partir da premissa “O que acontecria com o mundo se nós não ivessemos nele?”; explorar os cenários muito bem construídos para renovar seus suprimentos e descobrir coletáveis que enriquece a lore daquele mundo desolado.


Cordyceps e os “Zumbis”

Mesmo em seu aspecto mais fantasioso, os “zumbis”, The Last of Us encontrou uma forma criativa e “pé no chão”, para somar ao realismo daquele mundo. Aqui temos, ao invés do vírus tradicional, um fungo chamado Cordyceps, que existe no mundo real, e possui mais de 400 espécies, sendo todas elas parasitas. Em sua maioria, as vítimas são insetos e artrópodes, como formigas e aranhas, mas eles também podem parasitar até outros fungos. A principal característica do Cordyceps é que ele repõe o tecido do seu hospedeiro, criando um aspecto de cogumelo, e pode controlar o comportamento do animal.
Após alguns dias, a infecção mata o hospedeiro e o utiliza para espalhar esporos (Te lembra alguma coisa?)

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Isso traz um aspecto realista visualmente falando, com cada estágio tendo características bem específicas, com o fungo cada vez mais visível. Falando especificamente de um: Os Clickers.
O som que eles emitem, sua aparência, o fato deles serem cegos, mas sensíveis a barulho, além de sua letalidade, tudo isso junto faz com que tenhamos um inimigo mortal, que dá uma dinâmica ao gameplay e um toque de terror ao ambiente.

340

E o Gameplay em si?

The last of Us não entrega nada que já não vimos antes; seus elementos de stealth são extremamente básicos, porém o gunplay e as lutas corpo a corpo são competentes e viscerais. Joel é um cara bruto e disposto a qualquer coisa para sobreviver, e isso transparece nas lutas, tendo diversas animações de execuções diferentes, e um peso excelente aos comandos. A parte de exploração é um dos pontos altos do jogo, pois por ser um jogo aonde os recursos são escassos, procurar itens para se manter é extremamente prazeroso.
O maior ponto negativo do jogo está na IA dos inimigos humanos, especialmente no que diz respeito ao seu parceiro, já que eles o ignoram completamente mesmo que passe na frente, quebrando a imersão do jogo quando isso acontece. Eu entendo que talvez essa seja uma decisão para o seu parceiro não atrapalhar e frustrar o jogador, mas poderiam ao menos fazer com o que a IA nunca se expusesse aos inimigos, por exemplo.

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Uma trilha sonora tocante

Uma boa trilha sonora é fundamental para ajudar a passar qualquer tipo de sentimento, e aqui ela é parte fundamental da experiência como um todo, quase um personagem extra do jogo. A Naughty dog contratou um músico argentino chamado Gustavo Santaolalla, que já ganhou diversos prêmios na indústria cinemetográfica, inclusive dois Oscars por melhor trilha sonora original (Babel, O Segredo de Brokeback mountain), e este seria seu primeiro trabalho em um Videogame. Foi uma decisão incrivelmente acertada.

A começar pelo tema do jogo, uma música que usa apenas um instrumento chamado Ronroco, uma espécia de Bandolin misturado com cavaquinho (é o mais próximo que posso chegar de descrevê-lo hahah) e tem um som meio doce e melancólico, que na minha opinião passa exatamente o tom do jogo, no geral. É uma música marcante, que hoje já faz parte do seleto grupo de músicas que ficam na cabeça dos players através dos anos.
Mas não é só ela que dá o tom do jogo, todas as melodias sempre tocam exatamente no momento certo para dar o feeling que o momento quer passar, seja ele drama, ação, terror, etc. Foi um trabalho magnífico, que toca o coração e contribui ainda mais pra toda a experiencia.




Tons de Cinza

The Last of Us não é uma história sobre o apocalipse ou sobre a busca pela salvação da humanidade, ela é, em sua essência, uma história sobre nosso comportamento e todas as nuances que vem com ele, e talvez, acho que se eu fosse resumir tudo, acredito que seria isso que faz de The Last of Us algo tão especial. Não há super heróis ou personagens estereotipados, apenas pessoas com qualidades, defeitos, medos, angústias, traumas... o jogo pega tudo isso e retrata em um mundo pós-apocaliptico, de forma quase perfeita.
Todos os personagens agregam ao que o jogo quer passar ao jogador, todos tem um papel fundamental, algo a passar, e por mais curta que seja sua participação na jornada de Ellie e Joel, todos nos ensinam algo, nos mostra uma lado que nós, no conforto do nosso mundo atual, nem sabemos que temos.
The Last of Us nos faz questionar nossa própria natureza, nossa própria moral. Tem uma cena que Ellie acha um diário do nosso tempo, em que uma garota escreve sobre qual roupa vai combinar, sobre o namoradinho da escola e coisas assim, e então Ellie ao ler aquilo questiona: “Nossa, era com isso que as garotas nessa época se preocupavam? Roupas e garotos? Que estranho”, e sim, parando pra pensar, o quão trivial é tudo isso? O quão imersos estamos em nossas superficialidades a ponto de às vezes nem perceber o que realmente importa?

E então temos o final do jogo, onde Joel descobre, que a operação que possivelmente poderia salvar a humanidade com uma vacina, acabaria por matar Ellie. E então ele, já tomado por um amor que ele havia perdido há 20 anos atrás, decide salvá-la, comprometendo toda a humanidade. O jogo termina exatamente como um espelho ao seu início, com Joel segurando uma garotinha em seus braços, mas dessa vez não estava disposto a deixar acontecer o mesmo que aconteceu com sua filha.

Após Ellie acordar, ele mente para ela, dizendo que a cura era impossível e Ellie o faz jurar que está dizendo a verdade.
Foi uma decisão egoísta? Faríamos o mesmo se fosse alguém que amamos? Joel é um herói ou um vilão? O que você faria?
Toda essa filosofia por trás, capaz de deixar o jogar atônito e pensativo enquanto os créditos rolam, é que faz com que percebemos o quão única aquela jornada foi, e todo esse sentimento, toda essa filosofia e todos esses tons de cinza, é que fazem com que The Last of Us seja... The Last of Us.

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“Não importa o que aconteça, você tem que continuar achando algo pelo qual lutar” - Joel


Esses são meus pensamentos acerca de The Last of Us, quase que uma singela homenagem pra um dos meus jogos favoritos de todos os tempos. Espero que ele tenha sido uma grande experiência pra você também, que leu até aqui. Que a continuação faça jus a esse legado.


Dos atuais um dos meus preferidos. Muitas horas depois de vivenciar umas cenas eu ficava atordoado com o desenrolar da história. Terminei com lágrimas banhando meu rosto e um sorriso nos lábios. Além do início em que chorei junto com o Joel, a cena dos irmãos foi muito forte a ponto de eu desligar o console e respirar, para poder voltar a jogar depois de dias.
Jogo fabuloso.
 
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