Tempos atrás. uma galera daquela Anistia Internacional passou a frequentar esporadicamente a saída do prédio que trabalho, pedindo pro pessoal se inscrever num formulário de causas humanitárias, e eventualmente responder uma pesquisa. Coisa meio boba, em tempos aonde você pode se inscrever pelo seu celular e salvar a vida do principe da Nigéria que irá lhe recompensar com dois milhões de dólares (ah, que saudades do spam criativo!).
Vocês sabem que, á menos que esteja muito inspirado no dia, ou com vontades questionáveis de torturar sua habilidade social em manter conversas desinteressantes, você não vai voluntariamente parar pra esses caras.
Foi por isso que eu fui parado. Por uma garota que se revelaria um evento temporal singular.
Na primeira vez, eu estava esperando o fretado e ela veio falar comigo de maneira desconexa, mas havia algo na linguagem corporal dela que era diferente de todos esses seres humanos de colete que ficam enchendo o seu saco em qualquer rua perdida por aí, quando tudo que você quer fazer é qualquer coisa menos parar pra ouvir a ladainha deles.
Lembro que ela gaguejou e até se praguejou no meio da apresentação dela, no que eu educadamente disse que não tinha interesse e ela respondeu sem graça que eu poderia curtir a página deles. O diálogo se encerrou e eu fiquei esperando primeiro um obrigado formal, depois uma saudação de "tchau" qualquer, e quando a coisa estava ficando realmente desconfortável, eu me despedi com um boa tarde, enquanto ela ficou ali, parada, me olhando...de uma forma que não era pra ser. Não, era totalmente fora do contexto.
Na segunda vez, eu estava passando muito apressado pois estava indo para uma entrevista de emprego, uma oportunidade de melhor cargo em outra empresa, e ela me parou tocando meu ombro. Eu estava com a cabeça tão longe e focada no que eu ia falar na entrevista que a nossa conversa foi algo muito do caótico no começo, mas logo engatou para um momento memorável:
Ela ficou ali, com os olhos grandes e expressivos, como que magnetizada por mim. Ao mesmo tempo em que eu estava 100% no modo socialmente aceitável de economia de diálogo ("ok", "claro", "poxa, vejo sim", "que bacana"), comecei a bugar pela forma como ela me olhava - de novo. Eu não sou um cara bonito. Na real, tenho cara de mau. As pessoas acham que vou bater nelas.
Me livrei dela depois de cinco minutos meio constrangedores de small talk com esse final inesperado, mas aquele olhar me atravessando me marcou. É o mesmo olhar de algumas das mulheres que tive, dos momentos nos quais elas estavam fatalmente convencidas de que eu era o cara da vida delas - um erro bobo porém de proporções sentimentais catastróficas, elas descobririam mais tarde.
Mas aquela era uma estranha na rua. Como ela poderia me olhar daquela maneira? Aquilo não era um olhar pidão de alguém tentando te convencer de algo que nem ele acredita. Era um olhar de "me agarre e me beije logo, seu FDP".
Então houve o hoje. Era pra ser uma sexta bem feita. Aquela sensação no ar, desde cedo, como cheiro de pão saindo no forno, de que o dia vai ser leve e prazeroso como cafeína batendo no organismo.
Um encontro marcado com uma morena daquelas, em um bar daqueles, em uma noite daquelas. O trabalho corria sem novidades. A história parecia fadada á correr perante os meandros planejados pelo mortal que lhes confessa essa narrativa.
Então, ela desmarcou. Trabalho inadiável, ela disse. Eu entendo e desejo sorte, eu respondi. E foi sincero. "Posso beber por aí ou ir pra casa ver um filme, não tem problema".
Não era tão igual. Mas ainda era sexta.
A coisa degringolou um pouco mais, como um jogo de futebol 2-0 que logo virou 2-2 indo para os penaltis, quando uma m**** daquelas aconteceu ao final do expediente, e eu tive que ficar até mais tarde solucionando problemas que eu nem sei de onde surgiram.
Ali, já cansado, com a cara amarrotada e suada, eu joguei a tolha sem muita resistência. Resolver a m****, resolvi, mas e quem resolveria minha sexta frustrada? Meus planos hedonistas que todo mortal tem por direito ás sagradas portas do final de semana?
Certo de que minhas reclamações eram uma ode á futilidade, permaneci emburrado, porque bem, eu precisava ao menos manter a importância do luto do que não tive.
E foi ali, saindo do prédio, em uma noite malfadada, que a garota dos olhos grandes e expressivos, que cortavam através de mim, estava lá, e encerrou rapidamente com um rapaz para vir falar comigo.
Horário completamente diferente. Dia meio m**** como chiclete reutilizado. Mas, ela estava ali.
Primeiro, eu ri. Ri, com gosto, não como uma gargalhada fatal, não com uma risada de graça, mas ri de verdade, ri de gosto com essas peças engraçadas que a vida prega. Como se houvesse alguém ali por cima guiando certos acontecimentos, como se fosse tudo uma série da Netflix aonde você é um dos personagens principais.
Então, dessa vez, ela pegou na minha mão. E ficou passando o polegar pela minha palma. A mão era delicada e quente, enquanto os calos da minha pareciam quase lixar a dela. E quando me perguntou o nome, eu ri novamente. Porque não poderia ser. Eu lembrava dela. E ela me olhava do mesmo jeito embasbacado e sem explicação. E quando eu ri, pela terceira e última vez, ao perguntar minha idade, ela me disse que eu era novo demais pro formulário, mas, mostrando o crachá com o nome completo, que eu poderia - deveria - seguir ela nas redes sociais.
E então se seguiu todo aquele diálogo desconexo. De novo. Enquanto nossos olhares pareciam grudados e nossas mentes completamente distantes do que diziamos, como se ambos estivessem entrado no piloto automático só pra manter aquele contato querendo o mais mas ao mesmo tempo sem querer cruzar linha alguma.
Cansado e como sempre sem prestar atenção em nada além dos olhos - porra de olhos - eu me despedi e vazei. Foi só dois quilômetros depois, ali, com o vento esmurrando minha cara no alto da ponte estaiada, cruzando para o outro lado, que eu notei a diferença no discurso.
"Você pode me procurar nas redes sociais."
"Me procurar nas redes sociais."
"Me".
O nome dela?
Não lembro. Não sei. Ocupado demais com a mente no futuro no qual a gente se pegava num beco qualquer. Morreu naquele instante.
Junto com a morena, o bar, os meus sonhos idílicos e todas as outras oportunidades que ficam guardadas no fundo do meu baú de "quases", essa imensidão de tesouros abortados antes do concebimento mas que me marcam como filhos pra todo o sempre.
Dizem que o cavalo não passa selado duas vezes.
Eu vou apostar contra as possibilidades.