10/06/2016 06h43 - Atualizado em 10/06/2016 10h00
Moradores de rua de SP dizem que guardas levam colchões e até calcinha
Prefeitura disse que colchões atrapalham pedestres.
Recolhimento de pertences pessoais, como cobertores, será apurado.
Paula Paiva PauloDo G1 São Paulo
No 1º dia de junho, Ana Paula de Jesus Souza, moradora de rua, teve sua carroça levada pela Guarda Civil Metropolitana (GCM). Dentro dela havia objetos pessoais e até exames médicos. No dia seguinte foi a vez de sua calcinha ser levada. “Tomei banho, coloquei minha calcinha ali no pezinho de goiaba, escondidinha, para não ficar exposta, né, e eles pegaram minha calcinha e levaram, acredita?”.
O relato da mulher de 37 anos é semelhante ao de outros moradores em situação de rua. A reportagem conversou com seis, de diferentes lugares da cidade, que afirmaram já ter passado por isso.
Ana Paula levou seu caso até o Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral da Rua. Ele pagou uma taxa de R$ 19,20 para a Subprefeitura da Mooca e conseguiu recuperar a carroça. No entanto, sem os pertences que estavam dentro. Além de roupas, panelas e alimentos, estavam radiografias que ela tinha feito para tentar conseguir a aposentadoria no INSS, já que tem artrose na coluna e nas pernas.
Procurada pelo
G1, a Prefeitura disse que “as ações de cuidados com a cidade não podem justificar o recolhimento de bens e pertences pessoais, como documentos, cartões, medicamentos, mochilas, roupas, cobertores e instrumentos de trabalho". "Tais condutas serão apuradas e as devidas sanções administrativas serão aplicadas aos seus autores."
Conseguir recuperar a carroça foi exceção. “De dez anos que eu tenho de rua, eles já levaram mais de 20 vezes minhas coisas. Assim de levar tudo, deixar só a roupa do corpo”, contou Ana Paula. Segundo o padre, a devolução só aconteceu “por pressão política”.
Wallace da Silva e Júlio dos Santos já tiveram os pertences levados (Foto: Paula Paiva Paulo/G1)
Júlio César dos Santos, de 25 anos, mora embaixo do Viaduto Bresser. Há um mês, perdeu tudo o que tinha. “Levaram a bolsa inteira, camisetas, calça, meia, blusa de frio, colchão”. Também não foi sua primeira experiência com "o rapa". Segundo ele, suas coisas já foram levadas cinco vezes. “Se a bolsa tiver com documentos, eles já juntam tudo, jogam em cima do caminhão, deixa nem você pegar seus documentos.”
Colega de Júlio, Wallace da Silva, de 26 anos, é do interior do estado e está há sete meses na capital procurando emprego. Como ainda não conseguiu, mora na rua. Nesse pouco tempo já sentiu o efeito do “rapa”: perdeu colchão e coberta. Conseguiu outros, que foram inutilizados pelas fortes chuvas dos últimos dias. Os dois foram até a paróquia onde trabalha o padre Júlio e conseguiram dois sacos de dormir.
Padre Júlio Lancellotti, de boné preto e óculos, é da Pastoral da Rua e auxilia os moradores (Foto: Paula Paiva Paulo/G1)
“O 'rapa' é uma ação sistemática, contínua e permanente”, disse o padre Júlio, que acompanha essa situação há anos junto a diferentes administrações. “Nada mudou”, diz sobre a gestão Haddad. “O que a gente pode dizer hoje em dia é o seguinte, os moradores de rua são refugiados urbanos. Porque eles incomodam em todo lugar que eles vão.”
A apreensão é feita pela subprefeitura de cada região, com apoio da GCM. Segundo a Prefeitura, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social também atua na abordagem de moradores em situação de rua "com o encaminhamento para os abrigos municipais ou, até mesmo, ao Pronto Socorro, quando é percebida a necessidade de cuidados médicos”.
De acordo com o padre Júlio e com os relatos dos moradores, a violência na abordagem vem da GCM. “Vem quebrando tudo mesmo, pisando, chutando, não tá nem aí com nós”, disse o morador de rua Júlio. “Ela se chama Guarda Civil Metropoliana e de civil ela não tem nada”, disse o padre.
Outra reclamação dos moradores em relação ao tratamento recebido na hora da abordagem, é com o uso de água. “Acorda você com água na cara”, disse Roberto da Silva, de 47 anos, que vive na Praça Ramos de Azevedo, no Centro. Amaral Henrique Souza, de 35 anos, também se queixou. “Joga água na cara das pessoas e trata como lixo.”
'Dá tristeza, dá revolta, dá ira', disse o morador de rua Amaral Souza (Foto: Paula Paiva Paulo/G1)
Amaral Henrique Souza mora há cinco nas ruas do Centro de
São Paulo, e também disse que já perdeu colchão e documentos. “Dá tristeza, dá revolta, dá ira. O prefeito só quer fazer negócio de bicicleta para os ricos”.
A Prefeitura explicou que, quanto ao recolhimento de colchões, “a orientação é que não seja permitida a permanência desses objetos no espaço público, pois acabam atrapalhando a segurança do deslocamento de pedestres”.
Defensoria cobra Prefeitura
Para evitar a apreensão ilegal de pertences da população de rua, a Defensoria Pública estadual encaminhou à Prefeitura de São Paulo, em maio, a proposta de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que prevê “a criação de um protocolo de conduta para as atividades de limpeza, manutenção e recuperação de áreas públicas, bem como de devolução de bens eventualmente apreendidos”.
A Prefeitura ainda não enviou oficialmente nenhuma resposta para a Defensoria. Por causa disso, o órgão disse ao
G1 que os “os Defensores Públicos do Núcleo estudam as medidas judiciais cabíveis a serem adotadas, afim de garantir que pessoas em situação de rua não tenham seus pertences apreendidos”.
A Defensoria ainda disse que a apreensão acontece com mais frequência na região central da cidade, como Sé, Luz [Cracolândia], Anhangabaú, República e Praça 14 Bis. “Porém, trata-se de um problema antigo e que atinge toda a cidade”, informou o órgão.
http://g1.globo.com/sao-paulo/notic...ue-guardas-levam-colchoes-e-ate-calcinha.html
MP apura se houve omissão de gestão Haddad em mortes de moradores de rua
Inquérito investiga providências para evitar mortes; gestão diz que está à disposição para prestar esclarecimentos
PAULA FELIX, O ESTADO DE S. PAULO
15 Junho 2016 | 18h11
SÃO PAULO - A Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público Estadual (MPE) vai apurar se houve omissão da Prefeitura de São Paulo nas mortes de moradores de rua pelas baixas temperaturas. Segundo a Pastoral do Povo de Rua, que pertence à Igreja Católica, ao menos cinco pessoas morreram ao relento. A Prefeitura não confirma as mortes.
Um inquérito civil sobre a Operação Baixas Temperaturas, feita pela gestão municipal quando os termômetros ficam abaixo de 13°C, está sendo conduzido pela promotora Beatriz Helena Budin. O procedimento já existe desde 2014 e tem como objetivo acompanhar as atividades realizadas pela operação. “Os óbitos serão investigados em âmbito criminal. Entretanto, no inquérito civil, será apurado se a Prefeitura deixou de adotar as providências necessárias para evitá-las”, diz a promotora.
O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, defende a investigação. “A gente tem de ver essa questão de maneira humana. Não é ver quem vai dar o colchão e quem vai tirar, precisamos de respostas. Há uma responsabilidade (da Prefeitura) por omissão”, afirma.
A gestão municipal afirma que “está à disposição do Ministério Público para prestar todos os esclarecimentos” e que oferece 11.517 vagas em 79 centros de acolhida e 13 abrigos emergenciais. Disse ainda que cerca de 11 mil pessoas foram acolhidas nos últimos dias.
Queixas. Moradores de rua que dependem dos abrigos municipais relataram ao Estado diversos problemas nessas estruturas. Comida estragada, falta de limpeza nos banheiros, maus-tratos de funcionários e até furtos foram citados.
Anteontem, 65 pessoas dormiram no local; frio aumentou as doações e a solidariedade Foto: Nelson Antoine//Framephoto
“Muitos preferem dormir na rua porque são discriminados aqui. Já fui chamado de ‘noia’, mendigo. Tem gente que é agredida”, diz Roberval Araújo dos Santos, de 30 anos, que frequenta um centro de acolhida na Barra Funda. “Uma vez ganhei um tênis de marca, deixei no bagageiro do albergue e desapareceu”, conta.
Evandro Barbosa Gomes, de 49 anos, diz que as condições de higiene do local são péssimas. “No refeitório onde comemos há buracos no teto e os pombos fazem cocô em cima de nós e da comida. O banheiro tem urina e fezes no chão”, conta.
Elias Nilo de Freitas, de 50 anos, diz que alguns funcionários expulsam moradores que reclamam ou chegam fora do horário. “Aqui é melhor do que dormir na rua, mas a gente sofre preconceito, alguns funcionários nos tratam com grosseria.”
A Secretaria de Assistência Social afirma que os profissionais são constantemente capacitados para lidar com a população de rua, “o que não impede problemas pontuais”, que, quando acontecem, levam ao afastamento do funcionário envolvido. A secretaria diz ainda que já tomou providências para a troca de tela de proteção do refeitório e afirma que não recebeu denúncias de comida estragada. Diz também que todos os abrigos têm equipes de limpeza, mas que cabe também aos usuários a manutenção do ambiente limpo.
Doações. Com o frio e as mortes, a procura de auxílio e a solidariedade aumentaram. “Estamos tendo um bom fluxo, desde pessoas simples que trazem uma sacolinha até a Defesa Civil do Estado, que ofereceu cobertores e toalhas de banho”, diz o frei José Francisco de Cassia dos Santos, do Serviço Franciscano. A Igreja de São Francisco, no centro, liberou o pernoite na segunda, quando recebeu 46 pessoas. Nesta terça-feira, 14, 65 dormiram no local.
Morador de rua tem colchões e papelões retirados por GCM
IML. Procurado, o Instituto Médico-Legal (IML) da Capital esclareceu que, desde março, foram registrados 98 corpos de pessoas “desconhecidas ou não reclamadas” (provavelmente moradores de rua): 40 em março, 25 em abril, 27 em maio e 6 nos últimos 15 dias. Desses seis corpos, dois foram identificados pelo IML. Até agora, o laudo de um corpo não-identificado constatou morte por broncopneumonia.
Todos os casos, segundo a Secretaria da Segurança Pública, foram registrados como morte suspeita (a ser esclarecida) e estão sendo investigados pelos distritos da Água Fria, dos Jardins, do Belém, da Liberdade e de Santa Cecília. Por enquanto, foram identificados Adilson Roberto Justino e João Carlos Rodrigues.
Análise: ‘Falta bom senso para reconhecer que o outro é um ser humano’
Eulálio Figueira, professor e coordenador do Curso de Especialização em Ciência da Religião da PUC-SP
As últimas gestões abandonaram as pessoas que estão em situação de rua. Há mais a preocupação em fazer a “cidade limpa” do que em ter um cuidado com essa população, que está marginalizada e desatendida, excluída das políticas sociais e públicas. É necessário entender o morador de rua como morador de rua, que vive e pensa em um universo de referências que é diferente do cidadão que está ligado a um número de residência.
A questão dos animais, por exemplo, é clara, porque há uma relação de cumplicidade: o animal se sente protegido pelo morador de rua, e este pelo cachorro. Há uma relação de solidariedade. Não adianta ter o albergue se não pode levar o animal, é inegociável.
Outro ponto é que essa população vive um contexto diferente. Se a gente tem um horário, eles têm outros. Não adianta pegar as nossas regras e tentar que eles assumam isso. A questão de horário e espaço tem de ser pensada.
O problema da população de rua não é só estar na rua, mas estar desassistida. O fato de morar na rua não faz alguém não humano. Há quem viva nessas condições por perder a ligação com a família, pelo uso de entorpecentes ou porque optou por isso. O problema é não ter assistência de saúde, proteção, espaço e acesso ao que é básico para qualquer cidadão.
A grande questão é a falta de bom senso para reconhecer que o outro é um ser humano. A população não quer uma pessoa na sua porta, mas cabe ao cidadão exigir que o poder público tenha políticas e pense em articulações para cuidar dessas pessoas e mudar o seu modo de ver o morador de rua como uma ameaça.
Onde doar itens
Missão Belém (Rua Doutor Clementino, 608, Belém, zona leste)
Casa de Oração do Povo da Rua (Rua Djalma Dutra, 3, Luz, região central)
Paróquia São Miguel Arcanjo (Rua Taquari, 1.100, Mooca, zona leste)
Igreja São Francisco (Rua Riachuelo, centro)
Cáritas Arquidiocesana (Rua Major Diogo, 834, Bela Vista, centro de São Paulo)
Fraternidade O Caminho (Rua Djalma Dutra, 69, Luz)
Campanha do agasalho (
www.campanhadoagasalho.sp.gov.br/)
Anjos da Noite (Rua José Teixeira da Silva, 15, Parque das Paineiras, recolhimento aos sábados)
Anchietanum/Sefras (Rua Apinajés, 2.033, Sumarezinho, região oeste)
https://sao-paulo.estadao.com.br/no...dad-em-mortes-de-moradores-de-rua,10000057407