Comecemos pelo óbvio: a necessidade de um retorno a um tradicionalismo conservador. Qual o problema aqui? Diria que considerável. Primeiro que, da modernidade (Kant, etc) em diante, nós não podemos simplesmente confiar em um transcendente sistema valorativo (nós também somos responsáveis por ele). Não há qualquer simples retorno histórico a um estágio anterior - ele sempre acontece pela mediação do tempo presente.
Um exemplo? Observem Trump ou então Bolsonaro, ambos falando em nome de um sedimentado conservadorismo direitista, mas com um severo problema em comum: ambos são encharcados de cinismo no seu agir, e agem como perfeitos pós-modernos, ainda que a pretexto de um retorno conservador a valores morais fixos, e a tradições e costumes bem estabelecidos. O mesmo igualmente vale para os maiores fundamentalistas, cuja performance já é infectada pelo germe ao qual eles pretendem se opor - se tornam um misto de palhaços com loucos e cínicos numa egotrip pós-moderna. Os afetados e narcisistas tele-evangelistas de hoje em dia tornam isto exemplarmente claro.
Não é verdade que os conservadores atuais são os defensores da moralidade. Dostoiévski estava errado quando disse que "se Deus não existe, então tudo é permitido" (como sabia Lacan, é exatamente o contrário). Quando nos percebemos como os instrumentos da Vontade Divina, aí, sim, é que tudo é permitido, pois "se Deus é por nós, então quem será contra nós?", como já diria a conhecida frase. O fundamentalismo religioso não é a defesa da moralidade, mas da imoralidade sob o pretexto explícito e oficial da moralidade. Através de um obstinado conservadorismo radical podemos nos explodir como homem-bomba, linchar adversários políticos, defender tortura, estupro e o que não mais, etc e etc, pois estamos agindo por uma Causa Superior e que tudo pode, pois "os fins justificam os meios" (como tem sido revelado com Sérgio Moro, e a sua postura inconstitucional de parcialidade e perseguição política).
Outro ponto, é claro, é a ascenção de Bolsonaro. A esquerda erra quando se foca apenas na sua fascinação de ódio por Bolsonaro - ela precisa perguntar também (e anterior a tudo) onde diabos ela errou tanto para abrir espaço para tamanha regressão civilizatória em plena modernidade. O mesmo vale para a ascenção de Trump nos Estados Unidos. Ainda assim, convém esclarecer os mecanismos de ascenção utilizados.
Na Alemanha dos anos 20, o caos social reinava. A economia ia muito mal, havia a percepção também de uma crise moral, as pessoas estavam perdidas, humilhadas e desesperançosas, etc e etc, então, o que foi que Hitler fez? Algo muito simples, porém efetivo: criou uma narrativa, uma inebriante ficção de ódio e esperança que novamento encharcava de significado e patriotismo aquela então combalida Alemanha: uma conspiração judaica. Quase que do dia para a noite, tudo era culpa dos judeus. Todo o caos agora era propriamente ressignificado por um mesmo ponto de articulação, e quando entendemos onde estamos agora, também podemos vislumbrar aonde queremos chegar.
Se cria, deste modo, um supremo inimigo absoluto, a origem de todo o mal, a suprema culpa absoluta e, com ele, também a figura de um redentor, de um salvador da pátria, de um "messias". Ora, é impossível não fazer aqui a mesma correlação entre Bolsonaro e o PT (não, ele não é nazista, mas a lógica de operação é basicamente a mesma). Em plena recessão econômica, "degradação moral" e o escambau, o que foi que Bolsonaro ofereceu ao povo brasileiro? Sim, também uma enorme ficção narrativa: "o PT é o responsável por absolutamente tudo o que não presta" (e não somente a crise econômica e os escândalos de corrupção).
Com ele, nós "viraremos a nova Venezuela", eles disseram (ainda que uma década e meia de PT na presidência não nos tenha dado sinal algum neste sentido), sem falar de abominações ridículas como o "kit gay" (que jamais existiu senão na forma de um programa contra a homofobia, o que certamente não é a mesma coisa de "seremos todos gays!"), a "conspiração comunista do foro de São Paulo", como adora propalar o lunático, paranóico, astrólogo e teórico da conspiração Olavo de Carvalho, o "marxismo cultural gramsciano" (outra conhecida teoria conspiratória da extrema-direita), etc e etc.
Isto quer dizer que devemos passar pano para o PT? Não. De maneira nenhuma. Roubaram pra c***lho e merecem ser punidos com rigor. Mas também precisamos ir além e exigir a investigação de todos (incluindo FHC, o protegido de Sérgio Moro, e o festival de corrupção da chamada "privataria tucana" nos anos 90).