Flango Chines
Bam-bam-bam
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Ler esse livro está sendo uma das melhores coisas que resolvi fazer nos últimos meses.
O livro é uma transcrição de 6 palestras dadas por Mises em 1958.
A leitura é super simples e didática, e o livro é até curto.
Dividirei cada capítulo em spoilers para facilitar a visualização.
Recomendo bastante os capítulos 1 e 3.
Mas todos são igualmente esclarecedores.
Quem quiser, pode baixar o lívros em vários formatos daqui:
http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=16
O livro é uma transcrição de 6 palestras dadas por Mises em 1958.
A leitura é super simples e didática, e o livro é até curto.
Dividirei cada capítulo em spoilers para facilitar a visualização.
Recomendo bastante os capítulos 1 e 3.
Mas todos são igualmente esclarecedores.
Quem quiser, pode baixar o lívros em vários formatos daqui:
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Certas expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteiramente
equivocadas. Assim, atribuem-se a capitães de indústria e
a grandes empresários de nossos dias epítetos como “o rei do chocolate”,
“o rei do algodão” ou “o rei do automóvel”. Ao usar essas
expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma diferença
entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de
outrora. Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do
chocolate absolutamente não rege, ele serve. Não reina sobre um
território conquistado, independente do mercado, independente de
seus compradores. O rei do chocolate – ou do aço, ou do automóvel,
ou qualquer outro rei da indústria contemporânea – depende
da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.
Esse “rei” precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os
consumidores: perderá seu “reino” assim que já não tiver condições
de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo
que o oferecido por seus concorrentes.
Duzentos anos atrás, antes do advento do capitalismo, o status
social de um homem permanecia inalterado do princípio ao fim de
sua existência: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava.
Se nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico – lorde ou duque
–, manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava,
pelo resto dos seus dias.
No tocante à manufatura, as primitivas indústrias de beneficiamento
da época existiam quase exclusivamente em proveito dos
ricos. A grande maioria do povo (90% ou mais da população europeia)
trabalhava na terra e não tinha contato com as indústrias
de beneficiamento, voltadas para a cidade. Esse rígido sistema da
sociedade feudal imperou, por muitos séculos, nas mais desenvolvidas
regiões da Europa.
Contudo, a população rural se expandiu e passou a haver um excesso
de gente no campo. Os membros dessa população excedente,
sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupação. Também não
lhes era possível trabalhar nas indústrias de beneficiamento, cujo
acesso lhes era vedado pelos reis das cidades. O número desses
“párias” crescia incessantemente, sem que todavia ninguém soubesse
o que fazer com eles. Eram, no pleno sentido da palavra,
“proletários”, e ao governo só restava interná-los em asilos ou casas
de correção. Em algumas regiões da Europa, sobretudo nos
Países Baixos e na Inglaterra, essa população tornou-se tão numerosa
que, no século XVIII, constituía uma verdadeira ameaça à
preservação do sistema social vigente.
Hoje, ao discutir questões análogas em lugares como a Índia ou
outros países em desenvolvimento, não devemos esquecer que, na
Inglaterra do século XVIII, as condições eram muito piores. Naquele
tempo, a Inglaterra tinha uma população de seis ou sete milhões
de habitantes, dos quais mais de um milhão – provavelmente
dois – não passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor
nada proporcionava. As medidas a tomar com relação a esses deserdados
constituíam um dos maiores problemas da Inglaterra.
Outro sério problema era a falta de matérias-primas. Os ingleses
eram obrigados a enfrentar a seguinte questão: que faremos,
no futuro, quando nossas florestas já não nos derem a madeira de
que necessitamos para nossas indústrias e para aquecer nossas casas?
Para as classes governantes, era uma situação desesperadora.
Os estadistas não sabiam o que fazer e as autoridades em geral não
tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condições.
Foi dessa grave situação social que emergiram os começos do
capitalismo moderno. Dentre aqueles párias, aqueles miseráveis,
surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer
pequenos negócios, capazes de produzir alguma coisa. Foi uma
inovação. Esses inovadores não produziam artigos caros, acessíveis
apenas às classes mais altas: produziam bens mais baratos, que
pudessem satisfazer as necessidades de todos. E foi essa a origem
do capitalismo tal como hoje funciona. Foi o começo da produção
em massa – princípio básico da indústria capitalista. Enquanto
as antigas indústrias de beneficiamento funcionavam a serviço da
gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente
para corresponder às demandas dessas classes privilegiadas, as novas
indústrias capitalistas começaram a produzir artigos acessíveis
a toda a população. Era a produção em massa, para satisfazer às
necessidades das massas.
Este é o princípio fundamental do capitalismo tal como existe
hoje em todos os países onde há um sistema de produção em massa
extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos
mais fanáticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas,
produzem quase exclusivamente para suprir a carência das massas.
As empresas dedicadas à fabricação de artigos de luxo, para uso apenas
dos abastados, jamais têm condições de alcançar a magnitude
das grandes empresas. E, hoje, os empregados das grandes fábricas
são, eles próprios, os maiores consumidores dos produtos que nelas
se fabricam. Esta é a diferença básica entre os princípios capitalistas
de produção e os princípios feudalistas de épocas anteriores.
Quando se pressupõe ou se afirma a existência de uma diferença
entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande
empresa, incorre-se em grave erro. Nas grandes lojas dos Estados
Unidos, ouvimos o slogan: “O cliente tem sempre razão.” E esse
cliente é o mesmo homem que produz, na fábrica, os artigos à venda
naqueles estabelecimentos. Os que pensam que a grande empresa
detém um enorme poder também se equivocam, uma vez que a empresa
de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos
que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia
seu poder e sua influência se perdesse seus clientes.
Há cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos
os países capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram
por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam impossível
a concorrência. Alegava-se que, na área dos transportes,
o capitalismo já havia atingido um estágio no qual se destruira a si
mesmo, pois que eliminara a concorrência. O que se descurava era
o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de
oferecer à população um meio de transporte melhor que qualquer
outro. Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma dessas
grandes estradas de ferro, através da implantação de uma nova
ferrovia paralela à anterior, porquanto a primeira era suficiente para
atender às necessidades do momento. Mas outros concorrentes não
tardaram a aparecer. A livre concorrência não significa que se possa
prosperar pela simples imitação ou cópia exata do que já foi feito por
alguém. A liberdade de imprensa não significa o direito de copiar
o que outra pessoa escreveu, e assim alcançar o sucesso a que o verdadeiro
autor fez jus por suas obras. Significa o direito de escrever
outra coisa. A liberdade de concorrência no tocante às ferrovias,
por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para
fazer alguma coisa que desafie as ferrovias já existentes e as coloque
em situação muito precária de competitividade.
Nos Estados Unidos, a concorrência que se estabeleceu através
dos ônibus, automóveis, caminhões e aviões impôs às estradas de
ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz respeito
ao transporte de passageiros.
O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada homem
tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu cliente.
E, num tempo relativamente curto, esse método, esse princípio,
transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem
precedentes da população mundial.
Na Inglaterra do século XVIII, o território só podia dar sustento
a seis milhões de pessoas, num baixíssimo padrão de vida. Hoje,
mais de cinquenta milhões de pessoas aí desfrutam de um padrão de
vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no século
XVIII. E o padrão de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmente
mais alto ainda, não tivessem os ingleses dissipado boa parte de
sua energia no que, sob diversos pontos de vista, não foram mais
que “aventuras” políticas e militares evitáveis.
Estes são os fatos acerca do capitalismo. Assim, se um inglês –
ou, no tocante a esta questão, qualquer homem de qualquer país do
mundo – afirmar hoje aos amigos ser contrário ao capitalismo, há
uma esplêndida contestação a lhe fazer: “Sabe que a população deste
planeta é hoje dez vezes maior que nos períodos precedentes ao
capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padrão
de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do
capitalismo? E como você pode ter certeza de que, se não fosse o
capitalismo, você estaria integrando a décima parte da população
sobrevivente? Sua mera existência é uma prova do êxito do capitalismo,
seja qual for o valor que você atribua à própria vida.”
Não obstante todos os seus benefícios, o capitalismo foi furiosamente
atacado e criticado. É preciso compreender a origem dessa
aversão. É fato que o ódio ao capitalismo nasceu não entre o povo,
não entre os próprios trabalhadores, mas em meio à aristocracia
fundiária – a pequena nobreza da Inglaterra e da Europa continental.
Culpavam o capitalismo por algo que não lhes era muito agradável:
no início do século XIX, os salários mais altos pagos pelas
indústrias aos seus trabalhadores forçaram a aristocracia agrária
a pagar salários igualmente altos aos seus trabalhadores agrícolas.
A aristocracia atacava a indústria criticando o padrão de vida das
massas trabalhadoras.
Obviamente, do nosso ponto de vista, o padrão de vida dos trabalhadores
era extremamente baixo. Mas, se as condições de vida
nos primórdios do capitalismo eram absolutamente escandalosas,
não era porque as recém-criadas indústrias capitalistas estivessem
prejudicando os trabalhadores: as pessoas contratadas pelas fábricas
já subsistiam antes em condições praticamente subumanas.
A velha história, repetida centenas de vezes, de que as fábricas
empregavam mulheres e crianças que, antes de trabalharem nessas
fábricas, viviam em condições satisfatórias, é um dos maiores
embustes da história. As mães que trabalhavam nas fábricas não
tinham o que cozinhar: não abandonavam seus lares e suas cozinhas
para se dirigir às fábricas – corriam a elas porque não tinham
cozinhas e, ainda que as tivessem, não tinham comida para nelas
cozinharem. E as crianças não provinham de um ambiente confortável:
estavam famintas, estavam morrendo. E todo o tão falado
e indescritível horror do capitalismo primitivo pode ser refutado
por uma única estatística: precisamente nesses anos de expansão do
capitalismo na Inglaterra, no chamado período da Revolução Industrial
inglesa, entre 1760 e 1830, a população do país dobrou, o
que significa que centenas de milhares de crianças – que em outros
tempos teriam morrido – sobreviveram e cresceram, tornando-se
homens e mulheres.
Não há dúvida de que as condições gerais de vida em épocas
anteriores eram muito insatisfatórias. Foi o comércio capitalista
que as melhorou. Foram justamente aquelas primeiras fábricas que
passaram a suprir, direta ou indiretamente, as necessidades de seus
trabalhadores, através da exportação de manufaturados e da importação
de alimentos e matérias-primas de outros países. Mais uma
vez, os primeiros historiadores do capitalismo falsearam – é difícil
usar uma palavra mais branda – a história.
Há uma anedota – provavelmente inventada – que se costuma
contar a respeito de Benjamin Franklin: em visita a um cotonifício
na Inglaterra, Ben Franklin ouviu do proprietário cheio de
orgulho: “Veja, temos aqui tecidos de algodão para a Hungria.”
Olhando à sua volta e constatando que os trabalhadores estavam
em andrajos, Franklin perguntou: “E por que não produz também
para os seus empregados?”
Mas as exportações de que falava o dono do cotonifício realmente
significavam que ele de fato produzia para os próprios empregados,
visto que a Inglaterra tinha de importar toda a sua matériaprima.
Não possuía nenhum algodão, como também ocorria com a
Europa continental. A Inglaterra atravessava uma fase de escassez
de alimentos: era necessária sua importação da Polônia, da Rússia,
da Hungria. Assim, as exportações – como as de tecidos – se constituíam
no pagamento de importações de alimentos necessários à
sobrevivência da população inglesa. Muitos exemplos da história
dessa época revelarão a atitude da pequena nobreza e da aristocracia
com relação aos trabalhadores. Quero citar apenas dois. Um é o
famoso sistema inglês do seed and land. Por tal sistema, o governo
inglês pagava a todos os trabalhadores que não chegavam a receber
um salário mínimo (oficialmente fixado) a diferença entre o que recebiam
e esse mínimo. Isso poupava à aristocracia fundiária o dissabor
de pagar salários mais altos. A pequena nobreza continuaria
pagando o tradicionalmente baixo salário agrícola, suplementado
pelo governo. Evitava-se, assim, que os trabalhadores abandonassem
as atividades rurais em busca de emprego nas fábricas urbanas.
Oitenta anos depois, após a expansão do capitalismo da Inglaterra
para a Europa continental, mais uma vez verificou-se a reação
da aristocracia rural contra o novo sistema de produção. Na
Alemanha, os aristocratas prussianos – tendo perdido muitos trabalhadores
para as indústrias capitalistas, que ofereciam melhor
remuneração – cunharam uma expressão especial para designar o
problema: “fuga do campo” – Landflucht. Discutiu-se, então, no
parlamento alemão, que tipo de medida se poderia tomar contra
aquele mal – e tratava-se indiscutivelmente de um mal, do ponto
de vista da aristocracia rural. O príncipe Bismarck, o famoso
chanceler do Reich alemão, disse um dia num discurso: “Encontrei
em Berlim um homem que havia trabalhado em minhas terras.
Perguntei-lhe: ‘Por que deixou minhas terras? Por que deixou
o campo? Por que vive agora em Berlim?’”
E, segundo Bismarck, o homem respondeu: “Na aldeia não se
tem, como aqui em Berlim, um Biergarten tão lindo, onde nos podemos
sentar; tomar cerveja e ouvir música.” Esta é, sem dúvida, uma
estória contada do ponto de vista do príncipe Bismarck, o empregador.
Não seria o ponto de vista de todos os seus empregados. Estes
acorriam à indústria porque ela lhes pagava salários mais altos e
elevava seu padrão de vida a níveis sem precedentes.
Hoje, nos países capitalistas, há relativamente pouca diferença
entre a vida básica das chamadas classes mais altas e a das mais baixas:
ambas têm alimento, roupas e abrigo. Mas no século XVIII, e
nos que o precederam, o que distinguia o homem da classe média
do da classe baixa era o fato de o primeiro ter sapatos, e o segundo,
não. Hoje, nos Estados Unidos, a diferença entre um rico e um
pobre reduz-se muitas vezes à diferença entre um Cadillac e um
Chevrolet. O Chevrolet pode ser de segunda mão, mas presta a seu
dono basicamente os mesmos serviços que o Cadillac poderia prestar,
uma vez que também está apto a se deslocar de um local a outro.
Mais de 50% da população dos Estados Unidos vivem em casas e
apartamentos próprios.
As investidas contra o capitalismo – especialmente no que se refere
aos padrões salariais mais altos – tiveram por origem a falsa
suposição de que os salários são, em última análise, pagos por pessoas
diferentes daquelas que trabalham nas fábricas. Certamente,
nada impede que economistas e estudantes de teorias econômicas
tracem uma distinção entre trabalhador e consumidor. Mas o fato é
que todo consumidor tem de ganhar, de uma maneira ou de outra, o
dinheiro que gasta, e a imensa maioria dos consumidores é constituída
precisamente por aquelas mesmas pessoas que trabalham como
empregados nas empresas produtoras dos bens que consomem.
No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas
diferentes das que ganham os salários: são essas mesmas pessoas
que os manipulam. Não é a companhia cinematográfica de
Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga
é o público que compra ingresso nas bilheterias dos cinemas. E não
é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências
de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para
a luta. A partir da distinção entre empregado e empregador, traçase,
no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na
vida real. Nesta, empregador e empregado são, em última análise,
uma só e a mesma pessoa.
Em muitos países há quem considere injusto que um homem
obrigado a sustentar uma família numerosa receba o mesmo salário
que outro, responsável apenas pela própria manutenção. No
entanto, o problema é não questionar se é ao empresário ou não
que cabe assumir a responsabilidade pelo tamanho da família de
um trabalhador.
A pergunta que deve ser feita neste caso é: você, como indivíduo,
se disporia a pagar mais por alguma coisa, digamos, um pão,
se for informado de que o homem que o fabricou tem seis filhos?
Uma pessoa honesta por certo responderia negativamente, dizendo:
“Em princípio, sim. Mas na prática tenderia a comprar o pão
feito por um homem sem filho nenhum.” O fato é que o empregador
a quem os compradores não pagam o suficiente para que
ele possa pagar seus empregados se vê na impossibilidade de levar
adiante seus negócios.
O “capitalismo” foi assim batizado não por um simpatizante do
sistema, mas por alguém que o tinha na conta do pior de todos os
sistemas históricos, da mais grave calamidade que jamais se abatera
sobre a humanidade. Esse homem foi Karl Marx. Não há razão,
contudo, para rejeitar a designação proposta por Marx, uma vez que
ela indica claramente a origem dos grandes progressos sociais ocasionados
pelo capitalismo. Esses progressos são fruto da acumulação
do capital; baseiam-se no fato de que as pessoas, por via de
regra, não consomem tudo o que produzem e no fato de que elas
poupam – e investem – parte desse montante.
Reina um grande equívoco em torno desse problema. Ao longo
destas seis palestras, terei oportunidade de abordar os principais
mal-entendidos em voga, relacionados com a acumulação do capital,
com o uso do capital e com os benefícios universais auferidos a
partir desse uso. Tratarei do capitalismo particularmente em minhas
palestras dedicadas ao investimento externo e a esse problema
extremamente crítico da política atual que é a inflação. Todos
sabem, é claro, que a inflação não existe só neste país. Constitui
hoje um problema em todas as partes do mundo. O que muitas
vezes não se compreende a respeito do capitalismo é o seguinte:
poupança significa benefícios para todos os que desejam produzir
ou receber salários.
Quando alguém acumula certa quantidade de dinheiro – mil
dólares, digamos – e confia esses dólares, em vez de gastá-los, a
uma empresa de poupança ou a uma companhia de seguros, transfere
esse dinheiro para um empresário, um homem de negócios, o
que vai permitir que esse empresário possa expandir suas atividades
e investir num projeto, que na véspera ainda era inviável, por
falta do capital necessário. Que fará então o empresário com o
capital recém-obtido? Certamente a primeira coisa que fará, o primeiro
uso que dará a esse capital suplementar será a contratação
de trabalhadores e a compra de matérias-primas – o que promoverá,
por sua vez, o surgimento de uma demanda adicional de trabalhadores
e matérias-primas, bem como uma tendência à elevação
dos salários e dos preços dessas matérias-primas. Muito antes que
o poupador ou o empresário tenham obtido algum lucro em tudo
isso, o trabalhador desempregado, o produtor de matérias-primas,
o agricultor e o assalariado já estarão participando dos benefícios
das poupanças adicionais.
O que o empresário virá ou não a ganhar com o projeto depende
das condições futuras do mercado e de seu talento para prevê-las
corretamente. Mas os trabalhadores, assim como os produtores de
matéria-prima, auferem as vantagens de imediato. Muito se falou,
trinta ou quarenta anos atrás, sobre a “política salarial” – como a
denominavam – de Henry Ford. Uma das maiores façanhas do Sr.
Ford consistia em pagar salários mais altos que os oferecidos pelas
demais indústrias ou fábricas. Sua política salarial foi descrita
como uma “invenção”. Não se pode, no entanto, dizer que essa
nova política “inventada” seja simplesmente um fruto da liberalidade
do Sr. Ford. Um novo ramo industrial – ou uma nova fábrica
num ramo já existente – precisa atrair trabalhadores de outros empregos,
de outras regiões do país e até de outros países. E não há
outra maneira de fazê-lo senão através do pagamento de salários
mais altos aos trabalhadores. Foi o que ocorreu nos primórdios do
capitalismo, e é o que ocorre até hoje.
Na Grã-Bretanha, quando os fabricantes começaram a produzir
artigos de algodão, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores
mais do que estes ganhavam antes. É verdade que grande porcentagem
desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma antes.
Estavam, então, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes
fosse oferecida. Mas, pouco tempo depois, com a crescente acumulação
do capital e a implantação de um número cada vez maior
de novas empresas, os salários se elevaram, e como consequência
houve aquele aumento sem precedentes da população inglesa, ao
qual já me referi. A reiterada caracterização depreciativa do capi23
talismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e
os pobres mais pobres é equivocada do começo ao fim. A tese de
Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressuposto
de que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que
o povo estava ficando mais miserável, o que finalmente redundaria
na concentração de toda a riqueza de um país em umas poucas
mãos, ou mesmo nas de um homem só. Como consequência, as
massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam
os bens dos opulentos proprietários.
Segundo essa doutrina de Marx, é impossível, no sistema capitalista,
qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melhoria
das condições dos trabalhadores. Em 1865, falando perante a
Associação Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx
afirmou que a crença de que os sindicatos poderiam promover melhores
condições para a população trabalhadora era “absolutamente
errônea”. Qualificou a política sindical voltada para a reivindicação
de melhores salários e menor número de horas de trabalho de
conservadora – era este, evidentemente, o termo mais desabonador
a que Marx podia recorrer. Sugeriu que os sindicatos adotassem
uma nova meta revolucionária: a “completa abolição do sistema de
salários”, e a substituição do sistema de propriedade privada pelo
“socialismo” – a posse dos meios de produção pelo governo.
Se consideramos a história do mundo – e em especial a história
da Inglaterra a partir de 1865 – verificaremos que Marx estava errado
sob todos os aspectos. Não há um só país capitalista em que as
condições do povo não tenham melhorado de maneira inédita. Todos
esses progressos ocorridos nos últimos oitenta ou noventa anos
produziram-se a despeito dos prognósticos de Karl Marx: os socialistas
de orientação marxista acreditavam que as condições dos trabalhadores
jamais poderiam melhorar. Adotavam uma falsa teoria, a
famosa “lei de ferro dos salários”. Segundo esta lei, no capitalismo,
os salários de um trabalhador não excederiam a soma que lhe fosse
estritamente necessária para manter-se vivo a serviço da empresa.
Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os
padrões salariais dos trabalhadores sobem, com a elevação dos salá-
rios, a um nível superior ao necessário para a subsistência, eles terão
mais filhos. Esses filhos, ao ingressarem na força de trabalho, engrossarão
o número de trabalhadores até o ponto em que os padrões
salariais cairão, rebaixando novamente os salários dos trabalhadores
a um nível mínimo necessário para a subsistência – àquele nível
mínimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extinção da
população trabalhadora.
Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve
um conceito de trabalhador idêntico ao adotado – justificadamente
– pelos biólogos que estudam a vida dos animais. Dos camundongos,
por exemplo. Se colocarmos maior quantidade de alimento à
disposição de organismos animais, ou de micróbios, maior número
deles sobreviverá. Se a restringirmos, restringiremos o número
dos sobreviventes. Mas com o homem é diferente. Mesmo o trabalhador
– ainda que os marxistas não o admitam – tem carências
humanas outras que as de alimento e de reprodução de sua espécie.
Um aumento dos salários reais resulta não só num aumento da população;
resulta também, e antes de tudo, numa melhoria do padrão
de vida média. É por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e
nos Estados Unidos, um padrão de vida superior ao das nações em
desenvolvimento, às da África, por exemplo. Devemos compreender,
contudo, que esse padrão de vida mais elevado fundamenta-se
na disponibilidade de capital. Isso explica a diferença entre as
condições reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na
Índia. Neste país foram introduzidos – ao menos em certa medida
– modernos métodos de combate a doenças contagiosas, cujo efeito
foi um aumento inaudito da população. No entanto, como esse
crescimento populacional não foi acompanhado de um aumento
correspondente do montante de capital investido no país, o resultado
foi um agravamento da miséria. Quanto mais se eleva o capital
investido por indivíduo, mais próspero se torna o país.
Mas é preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocorrem
milagres. Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o
chamado milagre econômico alemão – a recuperação da Alemanha
depois de sua derrota e destruição na Segunda Guerra Mundial.
Mas não houve milagre. Houve tão somente a aplicação
25
dos princípios da economia do livre mercado, dos métodos do capitalismo,
embora essa aplicação não tenha sido completa em todos
os pontos. Todo país pode experimentar o mesmo “milagre” de
recuperação econômica, embora eu deva insistir em que esta não
é fruto de milagre: é fruto da adoção de políticas econômicas sólidas,
pois que é delas que resulta.
equivocadas. Assim, atribuem-se a capitães de indústria e
a grandes empresários de nossos dias epítetos como “o rei do chocolate”,
“o rei do algodão” ou “o rei do automóvel”. Ao usar essas
expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma diferença
entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de
outrora. Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do
chocolate absolutamente não rege, ele serve. Não reina sobre um
território conquistado, independente do mercado, independente de
seus compradores. O rei do chocolate – ou do aço, ou do automóvel,
ou qualquer outro rei da indústria contemporânea – depende
da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.
Esse “rei” precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os
consumidores: perderá seu “reino” assim que já não tiver condições
de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo
que o oferecido por seus concorrentes.
Duzentos anos atrás, antes do advento do capitalismo, o status
social de um homem permanecia inalterado do princípio ao fim de
sua existência: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava.
Se nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico – lorde ou duque
–, manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava,
pelo resto dos seus dias.
No tocante à manufatura, as primitivas indústrias de beneficiamento
da época existiam quase exclusivamente em proveito dos
ricos. A grande maioria do povo (90% ou mais da população europeia)
trabalhava na terra e não tinha contato com as indústrias
de beneficiamento, voltadas para a cidade. Esse rígido sistema da
sociedade feudal imperou, por muitos séculos, nas mais desenvolvidas
regiões da Europa.
Contudo, a população rural se expandiu e passou a haver um excesso
de gente no campo. Os membros dessa população excedente,
sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupação. Também não
lhes era possível trabalhar nas indústrias de beneficiamento, cujo
acesso lhes era vedado pelos reis das cidades. O número desses
“párias” crescia incessantemente, sem que todavia ninguém soubesse
o que fazer com eles. Eram, no pleno sentido da palavra,
“proletários”, e ao governo só restava interná-los em asilos ou casas
de correção. Em algumas regiões da Europa, sobretudo nos
Países Baixos e na Inglaterra, essa população tornou-se tão numerosa
que, no século XVIII, constituía uma verdadeira ameaça à
preservação do sistema social vigente.
Hoje, ao discutir questões análogas em lugares como a Índia ou
outros países em desenvolvimento, não devemos esquecer que, na
Inglaterra do século XVIII, as condições eram muito piores. Naquele
tempo, a Inglaterra tinha uma população de seis ou sete milhões
de habitantes, dos quais mais de um milhão – provavelmente
dois – não passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor
nada proporcionava. As medidas a tomar com relação a esses deserdados
constituíam um dos maiores problemas da Inglaterra.
Outro sério problema era a falta de matérias-primas. Os ingleses
eram obrigados a enfrentar a seguinte questão: que faremos,
no futuro, quando nossas florestas já não nos derem a madeira de
que necessitamos para nossas indústrias e para aquecer nossas casas?
Para as classes governantes, era uma situação desesperadora.
Os estadistas não sabiam o que fazer e as autoridades em geral não
tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condições.
Foi dessa grave situação social que emergiram os começos do
capitalismo moderno. Dentre aqueles párias, aqueles miseráveis,
surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer
pequenos negócios, capazes de produzir alguma coisa. Foi uma
inovação. Esses inovadores não produziam artigos caros, acessíveis
apenas às classes mais altas: produziam bens mais baratos, que
pudessem satisfazer as necessidades de todos. E foi essa a origem
do capitalismo tal como hoje funciona. Foi o começo da produção
em massa – princípio básico da indústria capitalista. Enquanto
as antigas indústrias de beneficiamento funcionavam a serviço da
gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente
para corresponder às demandas dessas classes privilegiadas, as novas
indústrias capitalistas começaram a produzir artigos acessíveis
a toda a população. Era a produção em massa, para satisfazer às
necessidades das massas.
Este é o princípio fundamental do capitalismo tal como existe
hoje em todos os países onde há um sistema de produção em massa
extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos
mais fanáticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas,
produzem quase exclusivamente para suprir a carência das massas.
As empresas dedicadas à fabricação de artigos de luxo, para uso apenas
dos abastados, jamais têm condições de alcançar a magnitude
das grandes empresas. E, hoje, os empregados das grandes fábricas
são, eles próprios, os maiores consumidores dos produtos que nelas
se fabricam. Esta é a diferença básica entre os princípios capitalistas
de produção e os princípios feudalistas de épocas anteriores.
Quando se pressupõe ou se afirma a existência de uma diferença
entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande
empresa, incorre-se em grave erro. Nas grandes lojas dos Estados
Unidos, ouvimos o slogan: “O cliente tem sempre razão.” E esse
cliente é o mesmo homem que produz, na fábrica, os artigos à venda
naqueles estabelecimentos. Os que pensam que a grande empresa
detém um enorme poder também se equivocam, uma vez que a empresa
de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos
que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia
seu poder e sua influência se perdesse seus clientes.
Há cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos
os países capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram
por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam impossível
a concorrência. Alegava-se que, na área dos transportes,
o capitalismo já havia atingido um estágio no qual se destruira a si
mesmo, pois que eliminara a concorrência. O que se descurava era
o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de
oferecer à população um meio de transporte melhor que qualquer
outro. Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma dessas
grandes estradas de ferro, através da implantação de uma nova
ferrovia paralela à anterior, porquanto a primeira era suficiente para
atender às necessidades do momento. Mas outros concorrentes não
tardaram a aparecer. A livre concorrência não significa que se possa
prosperar pela simples imitação ou cópia exata do que já foi feito por
alguém. A liberdade de imprensa não significa o direito de copiar
o que outra pessoa escreveu, e assim alcançar o sucesso a que o verdadeiro
autor fez jus por suas obras. Significa o direito de escrever
outra coisa. A liberdade de concorrência no tocante às ferrovias,
por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para
fazer alguma coisa que desafie as ferrovias já existentes e as coloque
em situação muito precária de competitividade.
Nos Estados Unidos, a concorrência que se estabeleceu através
dos ônibus, automóveis, caminhões e aviões impôs às estradas de
ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz respeito
ao transporte de passageiros.
O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada homem
tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu cliente.
E, num tempo relativamente curto, esse método, esse princípio,
transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem
precedentes da população mundial.
Na Inglaterra do século XVIII, o território só podia dar sustento
a seis milhões de pessoas, num baixíssimo padrão de vida. Hoje,
mais de cinquenta milhões de pessoas aí desfrutam de um padrão de
vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no século
XVIII. E o padrão de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmente
mais alto ainda, não tivessem os ingleses dissipado boa parte de
sua energia no que, sob diversos pontos de vista, não foram mais
que “aventuras” políticas e militares evitáveis.
Estes são os fatos acerca do capitalismo. Assim, se um inglês –
ou, no tocante a esta questão, qualquer homem de qualquer país do
mundo – afirmar hoje aos amigos ser contrário ao capitalismo, há
uma esplêndida contestação a lhe fazer: “Sabe que a população deste
planeta é hoje dez vezes maior que nos períodos precedentes ao
capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padrão
de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do
capitalismo? E como você pode ter certeza de que, se não fosse o
capitalismo, você estaria integrando a décima parte da população
sobrevivente? Sua mera existência é uma prova do êxito do capitalismo,
seja qual for o valor que você atribua à própria vida.”
Não obstante todos os seus benefícios, o capitalismo foi furiosamente
atacado e criticado. É preciso compreender a origem dessa
aversão. É fato que o ódio ao capitalismo nasceu não entre o povo,
não entre os próprios trabalhadores, mas em meio à aristocracia
fundiária – a pequena nobreza da Inglaterra e da Europa continental.
Culpavam o capitalismo por algo que não lhes era muito agradável:
no início do século XIX, os salários mais altos pagos pelas
indústrias aos seus trabalhadores forçaram a aristocracia agrária
a pagar salários igualmente altos aos seus trabalhadores agrícolas.
A aristocracia atacava a indústria criticando o padrão de vida das
massas trabalhadoras.
Obviamente, do nosso ponto de vista, o padrão de vida dos trabalhadores
era extremamente baixo. Mas, se as condições de vida
nos primórdios do capitalismo eram absolutamente escandalosas,
não era porque as recém-criadas indústrias capitalistas estivessem
prejudicando os trabalhadores: as pessoas contratadas pelas fábricas
já subsistiam antes em condições praticamente subumanas.
A velha história, repetida centenas de vezes, de que as fábricas
empregavam mulheres e crianças que, antes de trabalharem nessas
fábricas, viviam em condições satisfatórias, é um dos maiores
embustes da história. As mães que trabalhavam nas fábricas não
tinham o que cozinhar: não abandonavam seus lares e suas cozinhas
para se dirigir às fábricas – corriam a elas porque não tinham
cozinhas e, ainda que as tivessem, não tinham comida para nelas
cozinharem. E as crianças não provinham de um ambiente confortável:
estavam famintas, estavam morrendo. E todo o tão falado
e indescritível horror do capitalismo primitivo pode ser refutado
por uma única estatística: precisamente nesses anos de expansão do
capitalismo na Inglaterra, no chamado período da Revolução Industrial
inglesa, entre 1760 e 1830, a população do país dobrou, o
que significa que centenas de milhares de crianças – que em outros
tempos teriam morrido – sobreviveram e cresceram, tornando-se
homens e mulheres.
Não há dúvida de que as condições gerais de vida em épocas
anteriores eram muito insatisfatórias. Foi o comércio capitalista
que as melhorou. Foram justamente aquelas primeiras fábricas que
passaram a suprir, direta ou indiretamente, as necessidades de seus
trabalhadores, através da exportação de manufaturados e da importação
de alimentos e matérias-primas de outros países. Mais uma
vez, os primeiros historiadores do capitalismo falsearam – é difícil
usar uma palavra mais branda – a história.
Há uma anedota – provavelmente inventada – que se costuma
contar a respeito de Benjamin Franklin: em visita a um cotonifício
na Inglaterra, Ben Franklin ouviu do proprietário cheio de
orgulho: “Veja, temos aqui tecidos de algodão para a Hungria.”
Olhando à sua volta e constatando que os trabalhadores estavam
em andrajos, Franklin perguntou: “E por que não produz também
para os seus empregados?”
Mas as exportações de que falava o dono do cotonifício realmente
significavam que ele de fato produzia para os próprios empregados,
visto que a Inglaterra tinha de importar toda a sua matériaprima.
Não possuía nenhum algodão, como também ocorria com a
Europa continental. A Inglaterra atravessava uma fase de escassez
de alimentos: era necessária sua importação da Polônia, da Rússia,
da Hungria. Assim, as exportações – como as de tecidos – se constituíam
no pagamento de importações de alimentos necessários à
sobrevivência da população inglesa. Muitos exemplos da história
dessa época revelarão a atitude da pequena nobreza e da aristocracia
com relação aos trabalhadores. Quero citar apenas dois. Um é o
famoso sistema inglês do seed and land. Por tal sistema, o governo
inglês pagava a todos os trabalhadores que não chegavam a receber
um salário mínimo (oficialmente fixado) a diferença entre o que recebiam
e esse mínimo. Isso poupava à aristocracia fundiária o dissabor
de pagar salários mais altos. A pequena nobreza continuaria
pagando o tradicionalmente baixo salário agrícola, suplementado
pelo governo. Evitava-se, assim, que os trabalhadores abandonassem
as atividades rurais em busca de emprego nas fábricas urbanas.
Oitenta anos depois, após a expansão do capitalismo da Inglaterra
para a Europa continental, mais uma vez verificou-se a reação
da aristocracia rural contra o novo sistema de produção. Na
Alemanha, os aristocratas prussianos – tendo perdido muitos trabalhadores
para as indústrias capitalistas, que ofereciam melhor
remuneração – cunharam uma expressão especial para designar o
problema: “fuga do campo” – Landflucht. Discutiu-se, então, no
parlamento alemão, que tipo de medida se poderia tomar contra
aquele mal – e tratava-se indiscutivelmente de um mal, do ponto
de vista da aristocracia rural. O príncipe Bismarck, o famoso
chanceler do Reich alemão, disse um dia num discurso: “Encontrei
em Berlim um homem que havia trabalhado em minhas terras.
Perguntei-lhe: ‘Por que deixou minhas terras? Por que deixou
o campo? Por que vive agora em Berlim?’”
E, segundo Bismarck, o homem respondeu: “Na aldeia não se
tem, como aqui em Berlim, um Biergarten tão lindo, onde nos podemos
sentar; tomar cerveja e ouvir música.” Esta é, sem dúvida, uma
estória contada do ponto de vista do príncipe Bismarck, o empregador.
Não seria o ponto de vista de todos os seus empregados. Estes
acorriam à indústria porque ela lhes pagava salários mais altos e
elevava seu padrão de vida a níveis sem precedentes.
Hoje, nos países capitalistas, há relativamente pouca diferença
entre a vida básica das chamadas classes mais altas e a das mais baixas:
ambas têm alimento, roupas e abrigo. Mas no século XVIII, e
nos que o precederam, o que distinguia o homem da classe média
do da classe baixa era o fato de o primeiro ter sapatos, e o segundo,
não. Hoje, nos Estados Unidos, a diferença entre um rico e um
pobre reduz-se muitas vezes à diferença entre um Cadillac e um
Chevrolet. O Chevrolet pode ser de segunda mão, mas presta a seu
dono basicamente os mesmos serviços que o Cadillac poderia prestar,
uma vez que também está apto a se deslocar de um local a outro.
Mais de 50% da população dos Estados Unidos vivem em casas e
apartamentos próprios.
As investidas contra o capitalismo – especialmente no que se refere
aos padrões salariais mais altos – tiveram por origem a falsa
suposição de que os salários são, em última análise, pagos por pessoas
diferentes daquelas que trabalham nas fábricas. Certamente,
nada impede que economistas e estudantes de teorias econômicas
tracem uma distinção entre trabalhador e consumidor. Mas o fato é
que todo consumidor tem de ganhar, de uma maneira ou de outra, o
dinheiro que gasta, e a imensa maioria dos consumidores é constituída
precisamente por aquelas mesmas pessoas que trabalham como
empregados nas empresas produtoras dos bens que consomem.
No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas
diferentes das que ganham os salários: são essas mesmas pessoas
que os manipulam. Não é a companhia cinematográfica de
Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga
é o público que compra ingresso nas bilheterias dos cinemas. E não
é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências
de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para
a luta. A partir da distinção entre empregado e empregador, traçase,
no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na
vida real. Nesta, empregador e empregado são, em última análise,
uma só e a mesma pessoa.
Em muitos países há quem considere injusto que um homem
obrigado a sustentar uma família numerosa receba o mesmo salário
que outro, responsável apenas pela própria manutenção. No
entanto, o problema é não questionar se é ao empresário ou não
que cabe assumir a responsabilidade pelo tamanho da família de
um trabalhador.
A pergunta que deve ser feita neste caso é: você, como indivíduo,
se disporia a pagar mais por alguma coisa, digamos, um pão,
se for informado de que o homem que o fabricou tem seis filhos?
Uma pessoa honesta por certo responderia negativamente, dizendo:
“Em princípio, sim. Mas na prática tenderia a comprar o pão
feito por um homem sem filho nenhum.” O fato é que o empregador
a quem os compradores não pagam o suficiente para que
ele possa pagar seus empregados se vê na impossibilidade de levar
adiante seus negócios.
O “capitalismo” foi assim batizado não por um simpatizante do
sistema, mas por alguém que o tinha na conta do pior de todos os
sistemas históricos, da mais grave calamidade que jamais se abatera
sobre a humanidade. Esse homem foi Karl Marx. Não há razão,
contudo, para rejeitar a designação proposta por Marx, uma vez que
ela indica claramente a origem dos grandes progressos sociais ocasionados
pelo capitalismo. Esses progressos são fruto da acumulação
do capital; baseiam-se no fato de que as pessoas, por via de
regra, não consomem tudo o que produzem e no fato de que elas
poupam – e investem – parte desse montante.
Reina um grande equívoco em torno desse problema. Ao longo
destas seis palestras, terei oportunidade de abordar os principais
mal-entendidos em voga, relacionados com a acumulação do capital,
com o uso do capital e com os benefícios universais auferidos a
partir desse uso. Tratarei do capitalismo particularmente em minhas
palestras dedicadas ao investimento externo e a esse problema
extremamente crítico da política atual que é a inflação. Todos
sabem, é claro, que a inflação não existe só neste país. Constitui
hoje um problema em todas as partes do mundo. O que muitas
vezes não se compreende a respeito do capitalismo é o seguinte:
poupança significa benefícios para todos os que desejam produzir
ou receber salários.
Quando alguém acumula certa quantidade de dinheiro – mil
dólares, digamos – e confia esses dólares, em vez de gastá-los, a
uma empresa de poupança ou a uma companhia de seguros, transfere
esse dinheiro para um empresário, um homem de negócios, o
que vai permitir que esse empresário possa expandir suas atividades
e investir num projeto, que na véspera ainda era inviável, por
falta do capital necessário. Que fará então o empresário com o
capital recém-obtido? Certamente a primeira coisa que fará, o primeiro
uso que dará a esse capital suplementar será a contratação
de trabalhadores e a compra de matérias-primas – o que promoverá,
por sua vez, o surgimento de uma demanda adicional de trabalhadores
e matérias-primas, bem como uma tendência à elevação
dos salários e dos preços dessas matérias-primas. Muito antes que
o poupador ou o empresário tenham obtido algum lucro em tudo
isso, o trabalhador desempregado, o produtor de matérias-primas,
o agricultor e o assalariado já estarão participando dos benefícios
das poupanças adicionais.
O que o empresário virá ou não a ganhar com o projeto depende
das condições futuras do mercado e de seu talento para prevê-las
corretamente. Mas os trabalhadores, assim como os produtores de
matéria-prima, auferem as vantagens de imediato. Muito se falou,
trinta ou quarenta anos atrás, sobre a “política salarial” – como a
denominavam – de Henry Ford. Uma das maiores façanhas do Sr.
Ford consistia em pagar salários mais altos que os oferecidos pelas
demais indústrias ou fábricas. Sua política salarial foi descrita
como uma “invenção”. Não se pode, no entanto, dizer que essa
nova política “inventada” seja simplesmente um fruto da liberalidade
do Sr. Ford. Um novo ramo industrial – ou uma nova fábrica
num ramo já existente – precisa atrair trabalhadores de outros empregos,
de outras regiões do país e até de outros países. E não há
outra maneira de fazê-lo senão através do pagamento de salários
mais altos aos trabalhadores. Foi o que ocorreu nos primórdios do
capitalismo, e é o que ocorre até hoje.
Na Grã-Bretanha, quando os fabricantes começaram a produzir
artigos de algodão, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores
mais do que estes ganhavam antes. É verdade que grande porcentagem
desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma antes.
Estavam, então, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes
fosse oferecida. Mas, pouco tempo depois, com a crescente acumulação
do capital e a implantação de um número cada vez maior
de novas empresas, os salários se elevaram, e como consequência
houve aquele aumento sem precedentes da população inglesa, ao
qual já me referi. A reiterada caracterização depreciativa do capi23
talismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e
os pobres mais pobres é equivocada do começo ao fim. A tese de
Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressuposto
de que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que
o povo estava ficando mais miserável, o que finalmente redundaria
na concentração de toda a riqueza de um país em umas poucas
mãos, ou mesmo nas de um homem só. Como consequência, as
massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam
os bens dos opulentos proprietários.
Segundo essa doutrina de Marx, é impossível, no sistema capitalista,
qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melhoria
das condições dos trabalhadores. Em 1865, falando perante a
Associação Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx
afirmou que a crença de que os sindicatos poderiam promover melhores
condições para a população trabalhadora era “absolutamente
errônea”. Qualificou a política sindical voltada para a reivindicação
de melhores salários e menor número de horas de trabalho de
conservadora – era este, evidentemente, o termo mais desabonador
a que Marx podia recorrer. Sugeriu que os sindicatos adotassem
uma nova meta revolucionária: a “completa abolição do sistema de
salários”, e a substituição do sistema de propriedade privada pelo
“socialismo” – a posse dos meios de produção pelo governo.
Se consideramos a história do mundo – e em especial a história
da Inglaterra a partir de 1865 – verificaremos que Marx estava errado
sob todos os aspectos. Não há um só país capitalista em que as
condições do povo não tenham melhorado de maneira inédita. Todos
esses progressos ocorridos nos últimos oitenta ou noventa anos
produziram-se a despeito dos prognósticos de Karl Marx: os socialistas
de orientação marxista acreditavam que as condições dos trabalhadores
jamais poderiam melhorar. Adotavam uma falsa teoria, a
famosa “lei de ferro dos salários”. Segundo esta lei, no capitalismo,
os salários de um trabalhador não excederiam a soma que lhe fosse
estritamente necessária para manter-se vivo a serviço da empresa.
Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os
padrões salariais dos trabalhadores sobem, com a elevação dos salá-
rios, a um nível superior ao necessário para a subsistência, eles terão
mais filhos. Esses filhos, ao ingressarem na força de trabalho, engrossarão
o número de trabalhadores até o ponto em que os padrões
salariais cairão, rebaixando novamente os salários dos trabalhadores
a um nível mínimo necessário para a subsistência – àquele nível
mínimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extinção da
população trabalhadora.
Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve
um conceito de trabalhador idêntico ao adotado – justificadamente
– pelos biólogos que estudam a vida dos animais. Dos camundongos,
por exemplo. Se colocarmos maior quantidade de alimento à
disposição de organismos animais, ou de micróbios, maior número
deles sobreviverá. Se a restringirmos, restringiremos o número
dos sobreviventes. Mas com o homem é diferente. Mesmo o trabalhador
– ainda que os marxistas não o admitam – tem carências
humanas outras que as de alimento e de reprodução de sua espécie.
Um aumento dos salários reais resulta não só num aumento da população;
resulta também, e antes de tudo, numa melhoria do padrão
de vida média. É por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e
nos Estados Unidos, um padrão de vida superior ao das nações em
desenvolvimento, às da África, por exemplo. Devemos compreender,
contudo, que esse padrão de vida mais elevado fundamenta-se
na disponibilidade de capital. Isso explica a diferença entre as
condições reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na
Índia. Neste país foram introduzidos – ao menos em certa medida
– modernos métodos de combate a doenças contagiosas, cujo efeito
foi um aumento inaudito da população. No entanto, como esse
crescimento populacional não foi acompanhado de um aumento
correspondente do montante de capital investido no país, o resultado
foi um agravamento da miséria. Quanto mais se eleva o capital
investido por indivíduo, mais próspero se torna o país.
Mas é preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocorrem
milagres. Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o
chamado milagre econômico alemão – a recuperação da Alemanha
depois de sua derrota e destruição na Segunda Guerra Mundial.
Mas não houve milagre. Houve tão somente a aplicação
25
dos princípios da economia do livre mercado, dos métodos do capitalismo,
embora essa aplicação não tenha sido completa em todos
os pontos. Todo país pode experimentar o mesmo “milagre” de
recuperação econômica, embora eu deva insistir em que esta não
é fruto de milagre: é fruto da adoção de políticas econômicas sólidas,
pois que é delas que resulta.
Estou em Buenos Aires a convite do Centro de Difusión de la
Economia Libre. Que vem a ser economia livre? Que significa esse
sistema de liberdade econômica? A resposta é simples: é a economia
de mercado, é o sistema em que a cooperação dos indivíduos na
divisão social do trabalho se realiza pelo mercado. E esse mercado
não é um lugar: é um processo, é a forma pela qual, ao vender e comprar,
ao produzir e consumir, as pessoas estão contribuindo para o
funcionamento global da sociedade.
Quando falamos desse sistema de organização econômica – a
economia de mercado – empregamos a expressão “liberdade econômica”.
Frequentemente as pessoas se equivocam quanto ao seu
significado, supondo que liberdade econômica seja algo inteiramente
dissociado de outras liberdades, e que estas outras liberdades
– que reputam mais importantes – possam ser preservadas
mesmo na ausência de liberdade econômica. Mas liberdade econômica
significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem
o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da
sociedade. A pessoa tem o direito de escolher sua carreira, tem
liberdade para fazer o que quer.
É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje
tantos atribuem à palavra. O que queremos dizer é antes que, através
da liberdade econômica, o homem é libertado das condições
naturais. Nada há, na natureza, que possa ser chamado de liberdade;
há apenas a regularidade das leis naturais, a que o homem
é obrigado a obedecer para alcançar qualquer coisa. Quando se
trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o significado
exclusivo de liberdade na sociedade. Não obstante, muitos
consideram que as liberdades sociais são independentes umas das
outras. Os que hoje se intitulam “liberais” têm reivindicado programas
que são exatamente o oposto das políticas que os liberais
do século XIX defendiam em seus programas liberais. Os pretensos
liberais de nossos dias sustentam a ideia muito difundida de
que as liberdades de expressão, de pensamento, de imprensa, de
culto, de encarceramento sem julgamento podem, todas elas, ser
preservadas mesmo na ausência do que se conhece como liberdade
econômica. Não se dão conta de que, num sistema desprovido de
mercado, em que o governo determina tudo, todas essas outras liberdades
são ilusórias, ainda que postas em forma de lei e inscritas
na constituição.
Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Se for dono
de todas as máquinas impressoras, o governo determinará o que
deve e o que não deve ser impresso. Nesse caso, a possibilidade de
se publicar qualquer tipo de crítica às ideias oficiais torna-se praticamente
nula. A liberdade de imprensa desaparece. E o mesmo se
aplica a todas as demais liberdades.
Quando há economia de mercado, o indivíduo tem a liberdade
de escolher qualquer carreira que deseje seguir, de escolher seu
próprio modo de inserção na sociedade. Num sistema socialista é
diferente: as carreiras são decididas por decreto do governo. Este
pode ordenar às pessoas que não lhe sejam gratas, àquelas cuja presença
não lhe pareça conveniente em determinadas regiões, que se
mudem para outras regiões e outros lugares. E sempre há como justificar
e explicar semelhante procedimento: declara-se que o plano
governamental exige a presença desse eminente cidadão a cinco mil
milhas de distância do local onde ele estava sendo ou poderia ser
incômodo aos detentores do poder.
É verdade que a liberdade possível numa economia de mercado
não é uma liberdade perfeita no sentido metafísico. Mas a liberdade
perfeita não existe. É só no âmbito da sociedade que a liberdade
tem algum significado. Os pensadores que desenvolveram, no século
XVIII, a ideia da “lei natural” – sobretudo Jean-Jacques Rousseau
– acreditavam que um dia, num passado remoto, os homens haviam
desfrutado de algo chamado liberdade “natural”. Mas nesses tempos
remotos os homens não eram livres – estavam à mercê de todos
os que fossem mais fortes que eles mesmos. As famosas palavras de
Rousseau: “O homem nasceu livre e se encontra acorrentado em
toda parte”, talvez soem bem, mas na verdade o homem não nasceu
livre. Nasceu como uma frágil criança de peito. Sem a proteção dos
pais, sem a proteção proporcionada a esses pais pela sociedade, não
teria podido sobreviver.
Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto
dos demais como estes dependem dele. A sociedade, quando regida
pela economia de mercado, pelas condições da economia livre, apresenta
uma situação em que todos prestam serviços aos seus concidadãos
e são, em contrapartida, por eles servidos. Acredita-se, que
existem na economia de mercado chefões que não dependem da boa
vontade e do apoio dos demais cidadãos. Os capitães de indústria,
os homens de negócios, os empresários seriam os verdadeiros chefões
do sistema econômico. Mas isso é uma ilusão. Quem manda no
sistema econômico são os consumidores. Se estes deixam de prestigiar
um ramo de atividades, os empresários deste ramo são compelidos
ou a abandonar sua eminente posição no sistema econômico, ou
a ajustar suas ações aos desejos e às ordens dos consumidores.
Uma das mais notórias divulgadoras do comunismo foi Beatrice
Potter, nome de solteira de Lady Passfield (tambem muito conhecida
por conta de seu marido Sidney Webb). Essa senhora, filha
de um rico empresário, trabalhou quando jovem como secretária
do pai. Em suas memórias, ela escreve: “Nos negócios de meu pai,
todos tinham de obedecer às ordens dadas por ele, o chefe. Só a ele
competia dar ordens, e a ele ninguém dava ordem alguma.” Esta é
uma visão muito acanhada. Seu pai recebia ordens: dos consumidores,
dos compradores. Lamentavelmente, ela não foi capaz de
perceber essas ordens; não foi capaz de perceber o que ocorre numa
economia de mercado, exclusivamente voltada que estava para as
ordens expedidas dentro dos escritórios ou da fábrica do pai.
Diante de todos os problemas econômicos, devemos ter em
mente as palavras que o grande economista francês Frédéric Bas-
tiat usou como título de um de seus brilhantes ensaios: “Ce quon
voit et ce qu’on ne voit pas” (“O que se vê e o que não se vê”). Para
compreender como funciona um sistema econômico, temos de levar
em conta não só o que pode ser visto, mas também o que não
pode ser diretamente percebido. Por exemplo, uma ordem dada
por um chefe a um contínuo pode ser ouvida por aqueles que estejam
na mesma sala. O que não se pode ouvir são as ordens dadas
ao chefe por seus clientes.
O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última instância,
são os consumidores. Não é o estado, é o povo que é soberano.
Prova disto é o fato de que lhe assiste o direito de ser tolo.
Este é o privilégio do soberano. Assiste-lhe o direito de cometer
erros: ninguém o pode impedir de cometê-los, embora, obviamente,
deva pagar por eles. Quando afirmamos que o consumidor é
supremo ou soberano, não estamos afirmando que está livre de
erros, que sempre sabe o que melhor lhe conviria. Muitas vezes
os consumidores compram ou consomem artigos que não deviam
comprar ou consumir. Mas a ideia de que uma forma capitalista
de governo pode impedir, através de um controle sobre o que as
pessoas consomem, que elas se prejudiquem, é falsa. A visão do
governo como uma autoridade paternal, um guardião de todos, é
própria dos adeptos do socialismo.
Nos Estados Unidos, o governo empreendeu certa feita, há alguns
anos, uma experiência que foi qualificada de “nobre”. Essa
“nobre experiência” consistiu numa lei que declarava ilegal o consumo
de bebidas tóxicas. Não há dúvida de que muita gente se
prejudica ao beber conhaque e whisky em excesso. Algumas autoridades
nos Estados Unidos são contrárias até mesmo ao fumo.
Certamente há muitas pessoas que fumam demais, não obstante o
fato de que não fumar seria melhor para elas. Isso suscita um problema
que transcende em muito a discussão econômica: põe a nu
o verdadeiro significado da liberdade. Se admitirmos que é bom
impedir que as pessoas se prejudiquem bebendo ou fumando em
excesso, haverá quem pergunte: “Será que o corpo é tudo? Não seria
a mente do homem muito mais importante? Não seria a mente
do homem o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado humano?”
Se dermos ao governo o direito de determinar o que o corpo hu31
mano deve consumir, de determinar se alguém deve ou não fumar,
deve ou não beber, nada poderemos replicar a quem afirme: “Mais
importante ainda que o corpo é a mente, é a alma, e o homem
se prejudica muito mais ao ler maus livros, ouvir música ruim e
assistir a maus filmes. É, pois, dever do governo impedir que se
cometam esses erros.” E, como todos sabem, por centenas de anos
os governos e as autoridades acreditaram que esse era de fato o seu
dever. Nem isso aconteceu apenas em épocas remotas. Não faz
muito tempo, houve na Alemanha um governo que considerava
seu dever discriminar as boas e as más pinturas – boas e más, é
claro, do ponto de vista de um homem que, na juventude, fora
reprovado no exame de admissão à Academia de Arte, em Viena:
era o bom e o mau segundo a ótica de um pintor de cartão-postal.
E tornou-se ilegal expressar concepções sobre arte e pintura que
divergissem daquelas do Führer supremo.
A partir do momento em que começamos a admitir que é
dever do governo controlar o consumo de álcool do cidadão, que
podemos responder a quem afirme ser o controle dos livros e das
ideias muito mais importante? Liberdade significa realmente liberdade
para errar. Isso precisa ser bem compreendido. Podemos
ser extremamente críticos com relação ao modo como nossos
concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos
considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa
sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras
de manifestar suas opiniões sobre como seus concidadãos
deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros;
escrever artigos; fazer conferências. Podem até fazer pregações
nas esquinas, se quiserem – e faz-se isso, em muitos países. Mas
ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los
de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer
que as pessoas tenham a liberdade de fazê-las.
É essa a diferença entre escravidão e liberdade. O escravo é
obrigado a fazer o que seu superior lhe ordena que faça, enquanto o
cidadão livre – e é isso que significa liberdade – tem a possibilidade
de escolher seu próprio modo de vida. Sem dúvida esse sistema capitalista
pode ser – e é de fato – mal usado por alguns. É certamente
possível fazer coisas que não deveriam ser feitas. Mas se tais coisas
contam com a aprovação da maioria do povo, uma voz discordante
terá sempre algum meio de tentar mudar as ideias de seus concidadãos.
Pode tentar persuadi-los, convencê-los, mas não pode tentar
constrangê-los pela força, pela força policial do governo.
Na economia de mercado, todos prestam serviços aos seus
concidadãos ao prestarem serviços a si mesmos. Era isso o que
tinham em mente os pensadores liberais do século XVIII, quando
falavam da harmonia dos interesses – corretamente compreendidos
– de todos os grupos e indivíduos que constituem a população.
E foi a essa doutrina da harmonia de interesses que os
socialistas se opuseram. Falaram de um “conflito inconciliável
de interesses” entre vários grupos.
Que significa isso? Quando Karl Marx – no primeiro capítulo
do Manifesto Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou
seu movimento socialista – sustentou a existência de um conflito
inconciliável entre as classes, só pode evocar, como ilustração
à sua tese, exemplos tomados das condições da sociedade précapitalista.
Nos estágios pré-capitalistas, a sociedade se dividia
em grupos hereditários de status, na Índia denominados “castas”.
Numa sociedade de status, um homem não nascia, por exemplo,
cidadão francês; nascia na condição de membro da aristocracia
francesa, ou da burguesia francesa, ou do campesinato francês.
Durante a maior parte da Idade Média, era simplesmente um
servo. E a servidão, na França, ainda não havia sido inteiramente
extinta mesmo depois da Revolução Americana. Em outras
regiões da Europa, a sua extinção ocorreu ainda mais tarde. Mas
a pior forma de servidão – forma que continuou existindo mesmo
depois da abolição da escravatura – era a que tinha lugar nas
colônias inglesas. O indivíduo herdava seu status dos país e o
conservava por toda a vida. Transferia-o aos filhos. Cada grupo
tinha privilégios e desvantagens. Os de status mais elevado tinham
apenas privilégios, os de status inferior, só desvantagens. E
não restava ao homem nenhum outro meio de escapar às desvantagens
legais impostas por seu status senão a luta política contra
as outras classes. Nessas condições, pode-se dizer que havia “um
conflito inconciliável de interesses entre senhores de escravos
e escravos”, porque o interesse dos escravos era livrar-se da es33
cravidão, da qualidade de escravos. E sua liberdade significava,
para os seus proprietários, uma perda. Assim sendo, não há dúvida
de que tinha de existir forçosamente um conflito inconciliável
de interesses entre os membros das várias classes.
Não devemos esquecer que nesses períodos – em que as sociedades
de status predominaram na Europa, bem como nas colônias que
os europeus fundaram posteriormente na América – as pessoas não
se consideravam ligadas de nenhuma forma especial às demais classes
de sua própria nação; sentiam-se muito mais solidárias com os
membros de suas classes nos outros países. Um aristocrata francês
não tinha os franceses das classes inferiores na conta de seus concidadãos:
a seus olhos, eles não eram mais que a ralé, que não lhes
agradava. Seus iguais eram os aristocratas dos demais países – os da
Itália, Inglaterra e Alemanha, por exemplo.
O efeito mais visível desse estado de coisas era o fato de os aristocratas
de toda a Europa falarem a mesma língua, o francês, idioma
não compreendido, fora da França, pelos demais grupos da população.
As classes médias – a burguesia – tinham sua própria língua,
enquanto as classes baixas – o campesinato – usavam dialetos locais,
muitas vezes não compreendidos por outros grupos da população.
O mesmo se passava com relação aos trajes. Quem viajasse de um
país para outro em 1750 constataria que as classes mais elevadas,
os aristocratas, se vestiam em geral de maneira idêntica em toda a
Europa; e que as classes baixas usavam roupas diferentes. Vendo
alguém na rua, era possível perceber de imediato – pelo modo como
se vestia – a sua classe, o seu status.
É difícil avaliar o quanto essa situação era diversa da atual. Se
venho dos Estados Unidos para a Argentina e vejo um homem na
rua, não posso dizer qual é seu status. Concluo apenas que é um
cidadão argentino, não pertencente a nenhum grupo sujeito a restrições
legais. Isto é algo que o capitalismo nos trouxe. Sem dúvida há
também diferenças entre as pessoas no capitalismo. Há diferenças
em relação à riqueza; diferenças estas que os marxistas, equivocadamente,
consideram equivalentes àquelas antigas que separavam os
homens na sociedade de status.
Numa sociedade capitalista, as diferenças entre os cidadãos
não são como as que se verificam numa sociedade de status. Na
Idade Média – e mesmo bem depois, em muitos países – uma família
podia ser aristocrata e possuidora de grande fortuna, podia
ser uma família de duques, ao longo de séculos e séculos, fossem
quais fossem suas qualidades, talentos, caráter ou moralidade. Já
nas modernas condições capitalistas, verifica-se o que foi tecnicamente
denominado pelos sociólogos de “mobilidade social”.
O princípio segundo o qual a mobilidade social opera, nas palavras
do sociólogo e economista italiano Vilfredo Pareto, é o da
“circulation des élites” (“circulação das elites”). Isso significa que
haverá sempre no topo da escada social pessoas ricas, politicamente
importantes, mas essas pessoas – essas elites – estão em
contínua mudança.
Isto se aplica perfeitamente a uma sociedade capitalista. Não
se aplicaria a uma sociedade pré-capitalista de status. As famílias
consideradas as grandes famílias aristocráticas da Europa permanecem
as mesmas até hoje, ou melhor, são formadas hoje pelos
descendentes de famílias que constituíam a nata na Europa, há
oito, dez ou mais séculos. Os Capetos de Bourbon – que por um
longo período dominaram a Argentina – já eram uma casa real
desde o século X. Reinavam sobre o território hoje chamado
Ile-de-France, ampliando seu reino a cada geração. Mas numa
sociedade capitalista há uma continua mobilidade – pobres que
enriquecem e descendentes de gente rica que perdem a fortuna e
se tornam pobres.
Vi hoje, numa livraria de uma rua do centro de Buenos Aires,
a biografia de um homem que viveu na Europa do século XIX, e
que foi tão eminente, tão importante, tão representativo dos altos
negócios europeus naquela época, que até hoje, aqui neste país tão
distante da Europa, encontram-se à venda exemplares da história
de sua vida. Tive a oportunidade de conhecer o neto desse homem.
Tem o mesmo nome do avô e conserva o direito de usar o título
nobiliário que este – que começou a vida como ferreiro – recebeu oitenta
anos atrás. Hoje esse seu neto é um fotógrafo pobre na cidade
de Nova York. Outras pessoas, pobres à época em que o avô desse
fotógrafo se tornou um dos maiores industriais da Europa, são hoje
capitães de indústria. Todos são livres para mudar seu status, é isso
que distingue o sistema de status do sistema capitalista de liberdade
econômica, em que as pessoas só podem culpar a si mesmas se não
chegam a alcançar a posição que almejam.
O mais famoso industrial do século XX continua sendo Henry
Ford. Ele começou com umas poucas centenas de dólares
emprestados por amigos e, em muito pouco tempo, implantou
um dos mais importantes empreendimentos de grande vulto do
mundo. E podemos encontrar centenas de casos semelhantes todos
os dias. Diariamente o New York Times publica longas notas
sobre pessoas que faleceram. Lendo essas biografias, podemos
deparar, por exemplo, com o nome de um eminente empresário
que tenha iniciado a vida como vendedor de jornais nas esquinas
de Nova York. Ou com outro que tenha iniciado como contínuo
e, por ocasião de sua morte, era o presidente da mesma instituição
bancária onde começara no mais baixo degrau da hierarquia.
Evidentemente, nem todos conseguem alcançar tais posições.
Nem todos querem alcançá-las. Há pessoas mais interessadas em
outras coisas: para elas, no entanto, há hoje certos caminhos que
não estavam abertos nos tempos da sociedade feudal, na época da
sociedade de status.
O sistema socialista, contudo, proíbe essa liberdade fundamental
que é a escolha da própria carreira. Nas condições socialistas há
uma única autoridade econômica, e esta detém o poder de determinar
todas as questões atinentes à produção. Um dos traços característicos
de nossos dias é o uso de muitos nomes para designar uma
mesma coisa. Um sinônimo de socialismo e comunismo é “planejamento”.
Quando falam de “planejamento”, as pessoas se referem,
evidentemente, a um planejamento central, o que significa um plano
único, feito pelo governo – um plano que impede todo planejamento
feito por outra pessoa.
Uma senhora inglesa – que é também membro da Câmara Alta
– escreveu um livro intitulado Plan or no Plan, obra muito bem
recebida no mundo inteiro. Que significa o título desse livro? Ao
falar de “plano” a autora se refere unicamente ao tipo de planeja-
mento concebido por Lenin, Stálin e seus sucessores, o tipo que
determina todas as atividades de todo o povo de uma nação. Por
conseguinte, essa senhora só leva em conta o planejamento central,
que exclui todos os planos pessoais que os indivíduos possam
ter. Assim sendo, seu título, Plan or no Plan, revela-se um logro,
uma burla: a alternativa não está em plano central versus nenhum
plano. Na verdade, a escolha está entre o planejamento total feito
por uma autoridade governamental central e a liberdade de cada
indivíduo para traçar os próprios planos, fazer o próprio planejamento.
O indivíduo planeja sua vida todos os dias, alterando seus
planos diários sempre que queira.
O homem livre planeja diariamente, segundo suas necessidades.
Dizia, ontem, por exemplo: “Planejo trabalhar pelo resto dos
meus dias em Córdoba.” Agora, informado de que as condições
em Buenos Aires estão melhores, muda seus planos e diz: “Em vez
de trabalhar em Córdoba, quero ir para Buenos Aires.” É isso que
significa liberdade. Pode ser que ele esteja enganado, pode ser que
essa ida para Buenos Aires se revele um erro. Talvez as condições
lhe tivessem sido mais propicias em Córdoba, mas ele foi o autor
dos próprios planos.
Submetido ao planejamento governamental, o homem é como
um soldado num exército. Não cabe a um soldado o direito de escolher
sua guarnição, a praça onde servirá. Cabe-lhe cumprir ordens.
E o sistema socialista – como o sabiam e admitiam Karl Marx, Lenin
e todos os líderes socialistas – consiste na transposição do regime
militar a todo o sistema de produção. Marx falou de “exércitos
industriais” e Lenin impôs “a organização de tudo – o correio, as
manufaturas e os demais ramos industriais – segundo o modelo do
exército”. Portanto, no sistema socialista, tudo depende da sabedoria,
dos talentos e dos dons daqueles que constituem a autoridade
suprema. O que o ditador supremo – ou seu comitê – não sabe, não
é levado em conta. Mas o conhecimento acumulado pela humanidade
em sua longa história não é algo que uma só pessoa possa deter.
Acumulamos, ao longo dos séculos, um volume tão incomensurável
de conhecimentos científicos e tecnológicos, que se torna humanamente
impossível a um indivíduo o domínio de todo esse cabedal,
por extremamente bem-dotado que ele seja.
Acresce que os homens são diferentes, desiguais. E sempre o
serão. Alguns são mais dotados em determinado aspecto, menos
em outro. E há os que têm o dom de descobrir novos caminhos,
de mudar os rumos do conhecimento. Nas sociedades capitalistas,
o progresso tecnológico e econômico é promovido por esses
homens. Quando alguém tem uma ideia, procura encontrar
algumas outras pessoas argutas o suficiente para perceberem o
valor de seu achado. Alguns capitalistas que ousam perscrutar o
futuro, que se dão conta das possíveis consequências dessa ideia,
começarão a pô-la em prática. Outros, a princípio, poderão dizer:
“são uns loucos”, mas deixarão de dizê-lo quando constatarem
que o empreendimento que qualificavam de absurdo ou
loucura está florescendo, e que toda gente está feliz por comprar
seus produtos.
No sistema marxista, por outro lado, o corpo governamental
supremo deve primeiro ser convencido do valor de uma ideia
antes que ela possa ser levada adiante. Isso pode ser algo muito
difícil, uma vez que o grupo detentor do comando – ou o ditador
supremo em pessoa – tem o poder de decidir. E se essas pessoas
– por razões de indolência, senilidade, falta de inteligência ou
de instrução – forem incapazes de compreender o significado da
nova ideia, o novo projeto não será executado. Podemos evocar
exemplos da história militar. Napoleão era indubitavelmente
um gênio em questões militares; não obstante, viu-se certa feita
diante de um grave problema. Sua incapacidade para resolvê-lo
culminou na sua derrota e no subsequente exílio na solidão de
Santa Helena. O problema de Napoleão podia-se resumir a uma
pergunta: “Como conquistar a Inglaterra?”. Para fazê-lo, precisava
de uma esquadra capaz de cruzar o canal da Mancha. Houve,
então, pessoas que lhe garantiram conhecer um meio seguro de
levar a cabo aquela travessia; estas pessoas, numa época de embarcações
a vela, traziam a nova ideia de barcos movidos a vapor.
Mas Napoleão não compreendeu sua proposta.
Depois, houve o famoso Generalstab da Alemanha. Antes da
Primeira Guerra Mundial, o estado-maior alemão era universalmente
considerado insuperável em ciência militar. Reputação análoga
tinha o estado-maior do general Foch, na França. Mas nem os
alemães nem os franceses – que, sob o comando do general Foch,
derrotaram posteriormente os alemães – perceberam a importância
da aviação para fins militares. O estado-maior alemão declarava: “A
aviação é um mero divertimento; voar é bom para os desocupados.
Do ponto de vista militar, só zepelins têm importância”. E os franceses
eram da mesma opinião.
Mais tarde, no intervalo entre as duas Guerras Mundiais, nos
Estados Unidos, um general se convenceu de que a aviação seria de
extrema importância na guerra que se aproximava. Mas todos os
peritos do país pensavam o contrário. Ele não conseguiu convencêlos.
Sempre que tentamos convencer um grupo de pessoas que não
depende diretamente da solução de um problema, o fracasso é certo.
Isso se aplica também aos problemas não econômicos.
Muitos pintores, poetas, escritores e compositores já se queixaram
de que o público não reconhecia sua obra, o que os obrigava a
permanecerem na pobreza. Não há dúvida de que o público pode
ter julgado mal; mas, quando promulgam que “o governo deve
subsidiar os grandes artistas, pintores e escritores”, esses artistas
estão completamente errados. A quem deveria o governo confiar
a tarefa de decidir se determinado estreante é ou não, de fato, um
grande pintor? Teria de se valer da apreciação dos críticos e dos
professores de história da arte, que, sempre voltados para o passado,
até hoje deram raras mostras de talento no que tange à descoberta
de novos gênios. Essa é a grande diferença entre um sistema
de “planejamento” e um sistema em que é dado a cada um planejar
e agir por conta própria.
É verdade, obviamente, que grandes pintores e grandes escritores
suportaram, muitas vezes, situações de extrema penúria. Podem
ter tido êxito em sua arte, mas nem sempre em ganhar dinheiro.
Van Gogh foi por certo um grande pintor. Teve de sofrer agruras
insuportáveis e acabou por se suicidar, aos 37 anos de idade. Em
toda a sua existência, vendeu apenas uma tela, comprada por um
primo. Afora essa única venda, viveu do dinheiro do irmão, que,
apesar de não ser artista nem pintor, compreendia as necessidades
de um pintor. Hoje, não se compra um Van Gogh por menos de cem
ou duzentos mil dólares.
No sistema socialista, o destino de Van Gogh poderia ter sido
diverso. Algum funcionário do governo teria perguntado a alguns
pintores famosos (a quem Van Gogh seguramente nem sequer teria
considerado artistas) se aquele jovem, um tanto louco, ou completamente
louco, era de fato um pintor que valesse a pena subsidiar.
E com toda certeza eles teriam respondido: “Não, não é um pintor;
não é um artista; não passa de uma criatura que desperdiça tinta”, e
o teriam enviado a trabalhar numa indústria de laticínios, ou para
um hospício. Todo esse entusiasmo pelo socialismo manifestado
pelas novas gerações de pintores, poetas, músicos, jornalistas, atores,
baseia-se, portanto, numa ilusão.
Refiro-me a isso porque esses grupos estão entre os mais fanáticos
defensores da concepção socialista. Quando se trata de escolher
entre o socialismo e o capitalismo como sistema econômico,
o problema é um tanto diferente. Os teóricos do socialismo
jamais suspeitaram que a indústria moderna – juntamente com
todos os processos do moderno mundo dos negócios – se basearia
no cálculo. Os engenheiros não são, de maneira alguma, os únicos
a planejarem com base em cálculos; também os empresários
são obrigados a fazê-lo. E os cálculos do homem de negócios se
baseiam todos no fato de que, na economia de mercado, os preços
em dinheiro dos bens não só informam o consumidor, como
fornecem ao negociante informações de importância vital sobre
os fatores de produção, porquanto o mercado tem por função primordial
determinar não só o custo da última parte do processo de
produção, mas também o dos passos intermediários. O sistema
de mercado é indissociável do fato de que há uma divisão mentalmente
calculada do trabalho entre os vários empresários que
disputam entre si os fatores de produção – as matérias-primas, as
máquinas, os instrumentos – e o fator humano de produção, ou
seja, os salários pagos à mão-de-obra. Esse tipo de cálculo que
o empresário realiza não pode ser feito se ele não tem os preços
fornecidos pelo mercado.
No instante mesmo em que se abolir o mercado – e é o que
os socialistas gostariam de fazer – ficariam inutilizados todos os
cômputos e cálculos feitos pelos engenheiros e tecnólogos. Os
tecnólogos podem continuar fornecendo grande número de pro-
jetos que, do ponto de vista das ciências naturais, podem ser todos
igualmente exequíveis, mas são os cálculos baseados no mercado
– realizados pelo homem de negócios – que são indispensáveis
para se determinar qual desses projetos é o mais vantajoso do
ponto de vista econômico.
O problema de que estou tratando é a questão fundamental do
cálculo econômico capitalista em contraposição ao que se passa no
socialismo. O fato é que o cálculo econômico – e por conseguinte
todo planejamento tecnológico – só é possível quando existem
preços em dinheiro, não só para bens de consumo, como para os
fatores de produção. Isso significa que é preciso haver um mercado
para todas as matérias-primas, todos os artigos semi-acabados,
todos os instrumentos e máquinas, e todos os tipos de trabalho e de
serviço humanos. Quando se descobriu esse fato, os socialistas não
souberam reagir adequadamente. Por 150 anos tinham afirmado:
“Todos os males do mundo advêm da existência de mercados e de
preços de mercado. Queremos abolir o mercado e, com ele, é claro,
a economia de mercado, substituindo-a por um sistema sem preços
e sem mercados”. Queriam abolir o que Marx chamou de “caráter
de mercadoria” das mercadorias e do trabalho.
Confrontados com esse novo problema, os teóricos do socialismo,
sem resposta, acabaram por concluir: “não aboliremos o mercado
por completo; faremos de conta que existe um mercado, como
as crianças, quando brincam de escolinha.” A questão é que, todos
sabem, as crianças quando brincam de escolinha não aprendem coisa
alguma. É só uma brincadeira, uma simulação, e se pode “simular”
muitas coisas. Este é um problema muito difícil e complexo, e
para analisá-lo em toda a sua amplitude seria necessário um pouco
mais de tempo do que o que tenho aqui. Explanei-o em detalhes
em meus escritos. Em seis palestras, não posso empreender uma
análise de todos os seus aspectos. Assim sendo, quero sugerir-lhes,
caso estejam interessados no problema básico de impossibilidade
do cálculo e do planejamento no socialismo, a leitura de meu livro
Ação Humana, encontrável em espanhol em excelente tradução.
Mas leiam também outros livros, como o do economista norueguês
Trygue Hoff, que escreveu sobre o cálculo econômico. E,
se não quiserem ser unilaterais, recomendo a leitura do livro socialista
mais respeitado sobre o assunto, da autoria do eminente
economista polonês Oscar Lange, que foi por algum tempo professor
numa universidade americana, tornou-se depois embaixador
da Polônia, voltando, posteriormente, para o seu país. Provavelmente
me perguntarão: “E a Rússia? Como enfrentam os russos
esse problema?” Nesse caso, a questão muda de figura. Os russos
gerem seu sistema socialista no âmbito de um mundo em que
existem preços para todos os fatores de produção, para todas as
matérias-primas, para tudo. Por conseguinte, podem utilizar, em
seu planejamento, os preços do mercado mundial. E, visto que
há certas diferenças entre as condições reinantes na Rússia e as
reinantes nos Estados Unidos, frequentemente o resultado é que,
para os russos, parece justificável e aconselhável – de seu ponto
de vista econômico – algo que, para os americanos, absolutamente
não se justificaria economicamente.
A “experiência soviética” – ou “experimento”, como foi chamada
– não prova coisa alguma. Nada revela sobre o problema
fundamental do socialismo, o problema do cálculo. Mas teríamos
razões para caracterizá-la como “experiência”? Não creio que, no
campo da ação humana e da economia, possamos ter algo que se
assemelhe a um experimento científico. Não se pode fazer experimentos
de laboratório no campo da ação humana, porque um experimento
científico requer a réplica de um mesmo procedimento
sob diversas condições, ou a manutenção das mesmas condições
acompanhada da criação de talvez um único fator. Por exemplo, se
injetarmos num animal canceroso um medicamento experimental,
o resultado pode ser o desaparecimento do câncer. Poderemos
testar isso com vários animais da mesma raça, portadores da mesma
doença. Se tratarmos parte deles com o novo método e não
tratarmos outros, poderemos comparar os resultados. Ora, nada
disso é viável no campo da ação humana. Não há experimentos de
laboratório nesse plano.
A chamada “experiência” soviética mostra tão somente que o padrão
de vida na Rússia Soviética é incomparavelmente inferior ao
padrão alcançado pelo país mundialmente reputado o paradigma do
capitalismo: os Estados Unidos.
Se dissermos isto a um socialista, ele certamente contestará: “As
coisas na Rússia estão correndo maravilhosamente bem.” E nós responderemos:
“Podem estar maravilhosas, mas o padrão de vida é,
em média, muito baixo.” Então ele retrucará: “Sim, mas lembre o
quanto os russos sofreram com os czares, e a terrível guerra que
tivemos de enfrentar.”
Não quero discutir se esta é ou não uma explicação correta, mas
quando se nega que as condições tenham sido as mesmas, nega-se ao
mesmo tempo que tenha havido uma experiência. O que se deveria
afirmar – e seria muito mais correto – é: “O socialismo na Rússia
não ocasionou, em média, uma melhoria das condições do homem
comparável à melhoria de condições verificada, no mesmo período,
nos Estados Unidos.”
Nos Estados Unidos, quase toda semana tem-se notícia de
um novo invento, de um aperfeiçoamento. Muitos aperfeiçoamentos
foram gerados no mundo empresarial, porque milhares e
milhares de industriais estão empenhados, noite e dia, em descobrir
algum novo produto que satisfaça o consumidor, ou seja de
produção menos dispendiosa, ou seja melhor e menos oneroso
que os produtos já existentes. Não é o altruísmo que os move;
é seu desejo de ganhar dinheiro. E o efeito foi que o padrão de
vida se elevou, nos Estados Unidos, a níveis quase miraculosos
quando confrontados às condições reinantes há cinquenta ou
cem anos atrás. Mas na Rússia Soviética, onde esse sistema não
vigora, não se verifica um desenvolvimento comparável. Assim,
os que nos recomendam a adoção do sistema soviético estão inteiramente
equivocados.
Há mais uma coisa a ser mencionada. O consumidor americano,
o indivíduo, é tanto um comprador como um patrão. Ao
sair de uma loja nos Estados Unidos, é comum vermos um cartaz
com os seguintes dizeres: “Gratos pela preferência. Volte sempre”.
Mas ao entrarmos numa loja de um país totalitário – seja a
Rússia de hoje, seja a Alemanha de Hitler –, o gerente nos dirá:
“Agradeça ao grande líder, que lhe está proporcionando isso.”
Nos países socialistas, ao invés de ser o vendedor, é o comprador
que deve ficar agradecido. Não é o cidadão quem manda; quem
manda é o Comitê Central, o Gabinete Central. Estes comitês, os
líderes, os ditadores, são supremos; ao povo cabe simplesmente
obedecer-lhes.
Economia Libre. Que vem a ser economia livre? Que significa esse
sistema de liberdade econômica? A resposta é simples: é a economia
de mercado, é o sistema em que a cooperação dos indivíduos na
divisão social do trabalho se realiza pelo mercado. E esse mercado
não é um lugar: é um processo, é a forma pela qual, ao vender e comprar,
ao produzir e consumir, as pessoas estão contribuindo para o
funcionamento global da sociedade.
Quando falamos desse sistema de organização econômica – a
economia de mercado – empregamos a expressão “liberdade econômica”.
Frequentemente as pessoas se equivocam quanto ao seu
significado, supondo que liberdade econômica seja algo inteiramente
dissociado de outras liberdades, e que estas outras liberdades
– que reputam mais importantes – possam ser preservadas
mesmo na ausência de liberdade econômica. Mas liberdade econômica
significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem
o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da
sociedade. A pessoa tem o direito de escolher sua carreira, tem
liberdade para fazer o que quer.
É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje
tantos atribuem à palavra. O que queremos dizer é antes que, através
da liberdade econômica, o homem é libertado das condições
naturais. Nada há, na natureza, que possa ser chamado de liberdade;
há apenas a regularidade das leis naturais, a que o homem
é obrigado a obedecer para alcançar qualquer coisa. Quando se
trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o significado
exclusivo de liberdade na sociedade. Não obstante, muitos
consideram que as liberdades sociais são independentes umas das
outras. Os que hoje se intitulam “liberais” têm reivindicado programas
que são exatamente o oposto das políticas que os liberais
do século XIX defendiam em seus programas liberais. Os pretensos
liberais de nossos dias sustentam a ideia muito difundida de
que as liberdades de expressão, de pensamento, de imprensa, de
culto, de encarceramento sem julgamento podem, todas elas, ser
preservadas mesmo na ausência do que se conhece como liberdade
econômica. Não se dão conta de que, num sistema desprovido de
mercado, em que o governo determina tudo, todas essas outras liberdades
são ilusórias, ainda que postas em forma de lei e inscritas
na constituição.
Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Se for dono
de todas as máquinas impressoras, o governo determinará o que
deve e o que não deve ser impresso. Nesse caso, a possibilidade de
se publicar qualquer tipo de crítica às ideias oficiais torna-se praticamente
nula. A liberdade de imprensa desaparece. E o mesmo se
aplica a todas as demais liberdades.
Quando há economia de mercado, o indivíduo tem a liberdade
de escolher qualquer carreira que deseje seguir, de escolher seu
próprio modo de inserção na sociedade. Num sistema socialista é
diferente: as carreiras são decididas por decreto do governo. Este
pode ordenar às pessoas que não lhe sejam gratas, àquelas cuja presença
não lhe pareça conveniente em determinadas regiões, que se
mudem para outras regiões e outros lugares. E sempre há como justificar
e explicar semelhante procedimento: declara-se que o plano
governamental exige a presença desse eminente cidadão a cinco mil
milhas de distância do local onde ele estava sendo ou poderia ser
incômodo aos detentores do poder.
É verdade que a liberdade possível numa economia de mercado
não é uma liberdade perfeita no sentido metafísico. Mas a liberdade
perfeita não existe. É só no âmbito da sociedade que a liberdade
tem algum significado. Os pensadores que desenvolveram, no século
XVIII, a ideia da “lei natural” – sobretudo Jean-Jacques Rousseau
– acreditavam que um dia, num passado remoto, os homens haviam
desfrutado de algo chamado liberdade “natural”. Mas nesses tempos
remotos os homens não eram livres – estavam à mercê de todos
os que fossem mais fortes que eles mesmos. As famosas palavras de
Rousseau: “O homem nasceu livre e se encontra acorrentado em
toda parte”, talvez soem bem, mas na verdade o homem não nasceu
livre. Nasceu como uma frágil criança de peito. Sem a proteção dos
pais, sem a proteção proporcionada a esses pais pela sociedade, não
teria podido sobreviver.
Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto
dos demais como estes dependem dele. A sociedade, quando regida
pela economia de mercado, pelas condições da economia livre, apresenta
uma situação em que todos prestam serviços aos seus concidadãos
e são, em contrapartida, por eles servidos. Acredita-se, que
existem na economia de mercado chefões que não dependem da boa
vontade e do apoio dos demais cidadãos. Os capitães de indústria,
os homens de negócios, os empresários seriam os verdadeiros chefões
do sistema econômico. Mas isso é uma ilusão. Quem manda no
sistema econômico são os consumidores. Se estes deixam de prestigiar
um ramo de atividades, os empresários deste ramo são compelidos
ou a abandonar sua eminente posição no sistema econômico, ou
a ajustar suas ações aos desejos e às ordens dos consumidores.
Uma das mais notórias divulgadoras do comunismo foi Beatrice
Potter, nome de solteira de Lady Passfield (tambem muito conhecida
por conta de seu marido Sidney Webb). Essa senhora, filha
de um rico empresário, trabalhou quando jovem como secretária
do pai. Em suas memórias, ela escreve: “Nos negócios de meu pai,
todos tinham de obedecer às ordens dadas por ele, o chefe. Só a ele
competia dar ordens, e a ele ninguém dava ordem alguma.” Esta é
uma visão muito acanhada. Seu pai recebia ordens: dos consumidores,
dos compradores. Lamentavelmente, ela não foi capaz de
perceber essas ordens; não foi capaz de perceber o que ocorre numa
economia de mercado, exclusivamente voltada que estava para as
ordens expedidas dentro dos escritórios ou da fábrica do pai.
Diante de todos os problemas econômicos, devemos ter em
mente as palavras que o grande economista francês Frédéric Bas-
tiat usou como título de um de seus brilhantes ensaios: “Ce quon
voit et ce qu’on ne voit pas” (“O que se vê e o que não se vê”). Para
compreender como funciona um sistema econômico, temos de levar
em conta não só o que pode ser visto, mas também o que não
pode ser diretamente percebido. Por exemplo, uma ordem dada
por um chefe a um contínuo pode ser ouvida por aqueles que estejam
na mesma sala. O que não se pode ouvir são as ordens dadas
ao chefe por seus clientes.
O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última instância,
são os consumidores. Não é o estado, é o povo que é soberano.
Prova disto é o fato de que lhe assiste o direito de ser tolo.
Este é o privilégio do soberano. Assiste-lhe o direito de cometer
erros: ninguém o pode impedir de cometê-los, embora, obviamente,
deva pagar por eles. Quando afirmamos que o consumidor é
supremo ou soberano, não estamos afirmando que está livre de
erros, que sempre sabe o que melhor lhe conviria. Muitas vezes
os consumidores compram ou consomem artigos que não deviam
comprar ou consumir. Mas a ideia de que uma forma capitalista
de governo pode impedir, através de um controle sobre o que as
pessoas consomem, que elas se prejudiquem, é falsa. A visão do
governo como uma autoridade paternal, um guardião de todos, é
própria dos adeptos do socialismo.
Nos Estados Unidos, o governo empreendeu certa feita, há alguns
anos, uma experiência que foi qualificada de “nobre”. Essa
“nobre experiência” consistiu numa lei que declarava ilegal o consumo
de bebidas tóxicas. Não há dúvida de que muita gente se
prejudica ao beber conhaque e whisky em excesso. Algumas autoridades
nos Estados Unidos são contrárias até mesmo ao fumo.
Certamente há muitas pessoas que fumam demais, não obstante o
fato de que não fumar seria melhor para elas. Isso suscita um problema
que transcende em muito a discussão econômica: põe a nu
o verdadeiro significado da liberdade. Se admitirmos que é bom
impedir que as pessoas se prejudiquem bebendo ou fumando em
excesso, haverá quem pergunte: “Será que o corpo é tudo? Não seria
a mente do homem muito mais importante? Não seria a mente
do homem o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado humano?”
Se dermos ao governo o direito de determinar o que o corpo hu31
mano deve consumir, de determinar se alguém deve ou não fumar,
deve ou não beber, nada poderemos replicar a quem afirme: “Mais
importante ainda que o corpo é a mente, é a alma, e o homem
se prejudica muito mais ao ler maus livros, ouvir música ruim e
assistir a maus filmes. É, pois, dever do governo impedir que se
cometam esses erros.” E, como todos sabem, por centenas de anos
os governos e as autoridades acreditaram que esse era de fato o seu
dever. Nem isso aconteceu apenas em épocas remotas. Não faz
muito tempo, houve na Alemanha um governo que considerava
seu dever discriminar as boas e as más pinturas – boas e más, é
claro, do ponto de vista de um homem que, na juventude, fora
reprovado no exame de admissão à Academia de Arte, em Viena:
era o bom e o mau segundo a ótica de um pintor de cartão-postal.
E tornou-se ilegal expressar concepções sobre arte e pintura que
divergissem daquelas do Führer supremo.
A partir do momento em que começamos a admitir que é
dever do governo controlar o consumo de álcool do cidadão, que
podemos responder a quem afirme ser o controle dos livros e das
ideias muito mais importante? Liberdade significa realmente liberdade
para errar. Isso precisa ser bem compreendido. Podemos
ser extremamente críticos com relação ao modo como nossos
concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos
considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa
sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras
de manifestar suas opiniões sobre como seus concidadãos
deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros;
escrever artigos; fazer conferências. Podem até fazer pregações
nas esquinas, se quiserem – e faz-se isso, em muitos países. Mas
ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los
de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer
que as pessoas tenham a liberdade de fazê-las.
É essa a diferença entre escravidão e liberdade. O escravo é
obrigado a fazer o que seu superior lhe ordena que faça, enquanto o
cidadão livre – e é isso que significa liberdade – tem a possibilidade
de escolher seu próprio modo de vida. Sem dúvida esse sistema capitalista
pode ser – e é de fato – mal usado por alguns. É certamente
possível fazer coisas que não deveriam ser feitas. Mas se tais coisas
contam com a aprovação da maioria do povo, uma voz discordante
terá sempre algum meio de tentar mudar as ideias de seus concidadãos.
Pode tentar persuadi-los, convencê-los, mas não pode tentar
constrangê-los pela força, pela força policial do governo.
Na economia de mercado, todos prestam serviços aos seus
concidadãos ao prestarem serviços a si mesmos. Era isso o que
tinham em mente os pensadores liberais do século XVIII, quando
falavam da harmonia dos interesses – corretamente compreendidos
– de todos os grupos e indivíduos que constituem a população.
E foi a essa doutrina da harmonia de interesses que os
socialistas se opuseram. Falaram de um “conflito inconciliável
de interesses” entre vários grupos.
Que significa isso? Quando Karl Marx – no primeiro capítulo
do Manifesto Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou
seu movimento socialista – sustentou a existência de um conflito
inconciliável entre as classes, só pode evocar, como ilustração
à sua tese, exemplos tomados das condições da sociedade précapitalista.
Nos estágios pré-capitalistas, a sociedade se dividia
em grupos hereditários de status, na Índia denominados “castas”.
Numa sociedade de status, um homem não nascia, por exemplo,
cidadão francês; nascia na condição de membro da aristocracia
francesa, ou da burguesia francesa, ou do campesinato francês.
Durante a maior parte da Idade Média, era simplesmente um
servo. E a servidão, na França, ainda não havia sido inteiramente
extinta mesmo depois da Revolução Americana. Em outras
regiões da Europa, a sua extinção ocorreu ainda mais tarde. Mas
a pior forma de servidão – forma que continuou existindo mesmo
depois da abolição da escravatura – era a que tinha lugar nas
colônias inglesas. O indivíduo herdava seu status dos país e o
conservava por toda a vida. Transferia-o aos filhos. Cada grupo
tinha privilégios e desvantagens. Os de status mais elevado tinham
apenas privilégios, os de status inferior, só desvantagens. E
não restava ao homem nenhum outro meio de escapar às desvantagens
legais impostas por seu status senão a luta política contra
as outras classes. Nessas condições, pode-se dizer que havia “um
conflito inconciliável de interesses entre senhores de escravos
e escravos”, porque o interesse dos escravos era livrar-se da es33
cravidão, da qualidade de escravos. E sua liberdade significava,
para os seus proprietários, uma perda. Assim sendo, não há dúvida
de que tinha de existir forçosamente um conflito inconciliável
de interesses entre os membros das várias classes.
Não devemos esquecer que nesses períodos – em que as sociedades
de status predominaram na Europa, bem como nas colônias que
os europeus fundaram posteriormente na América – as pessoas não
se consideravam ligadas de nenhuma forma especial às demais classes
de sua própria nação; sentiam-se muito mais solidárias com os
membros de suas classes nos outros países. Um aristocrata francês
não tinha os franceses das classes inferiores na conta de seus concidadãos:
a seus olhos, eles não eram mais que a ralé, que não lhes
agradava. Seus iguais eram os aristocratas dos demais países – os da
Itália, Inglaterra e Alemanha, por exemplo.
O efeito mais visível desse estado de coisas era o fato de os aristocratas
de toda a Europa falarem a mesma língua, o francês, idioma
não compreendido, fora da França, pelos demais grupos da população.
As classes médias – a burguesia – tinham sua própria língua,
enquanto as classes baixas – o campesinato – usavam dialetos locais,
muitas vezes não compreendidos por outros grupos da população.
O mesmo se passava com relação aos trajes. Quem viajasse de um
país para outro em 1750 constataria que as classes mais elevadas,
os aristocratas, se vestiam em geral de maneira idêntica em toda a
Europa; e que as classes baixas usavam roupas diferentes. Vendo
alguém na rua, era possível perceber de imediato – pelo modo como
se vestia – a sua classe, o seu status.
É difícil avaliar o quanto essa situação era diversa da atual. Se
venho dos Estados Unidos para a Argentina e vejo um homem na
rua, não posso dizer qual é seu status. Concluo apenas que é um
cidadão argentino, não pertencente a nenhum grupo sujeito a restrições
legais. Isto é algo que o capitalismo nos trouxe. Sem dúvida há
também diferenças entre as pessoas no capitalismo. Há diferenças
em relação à riqueza; diferenças estas que os marxistas, equivocadamente,
consideram equivalentes àquelas antigas que separavam os
homens na sociedade de status.
Numa sociedade capitalista, as diferenças entre os cidadãos
não são como as que se verificam numa sociedade de status. Na
Idade Média – e mesmo bem depois, em muitos países – uma família
podia ser aristocrata e possuidora de grande fortuna, podia
ser uma família de duques, ao longo de séculos e séculos, fossem
quais fossem suas qualidades, talentos, caráter ou moralidade. Já
nas modernas condições capitalistas, verifica-se o que foi tecnicamente
denominado pelos sociólogos de “mobilidade social”.
O princípio segundo o qual a mobilidade social opera, nas palavras
do sociólogo e economista italiano Vilfredo Pareto, é o da
“circulation des élites” (“circulação das elites”). Isso significa que
haverá sempre no topo da escada social pessoas ricas, politicamente
importantes, mas essas pessoas – essas elites – estão em
contínua mudança.
Isto se aplica perfeitamente a uma sociedade capitalista. Não
se aplicaria a uma sociedade pré-capitalista de status. As famílias
consideradas as grandes famílias aristocráticas da Europa permanecem
as mesmas até hoje, ou melhor, são formadas hoje pelos
descendentes de famílias que constituíam a nata na Europa, há
oito, dez ou mais séculos. Os Capetos de Bourbon – que por um
longo período dominaram a Argentina – já eram uma casa real
desde o século X. Reinavam sobre o território hoje chamado
Ile-de-France, ampliando seu reino a cada geração. Mas numa
sociedade capitalista há uma continua mobilidade – pobres que
enriquecem e descendentes de gente rica que perdem a fortuna e
se tornam pobres.
Vi hoje, numa livraria de uma rua do centro de Buenos Aires,
a biografia de um homem que viveu na Europa do século XIX, e
que foi tão eminente, tão importante, tão representativo dos altos
negócios europeus naquela época, que até hoje, aqui neste país tão
distante da Europa, encontram-se à venda exemplares da história
de sua vida. Tive a oportunidade de conhecer o neto desse homem.
Tem o mesmo nome do avô e conserva o direito de usar o título
nobiliário que este – que começou a vida como ferreiro – recebeu oitenta
anos atrás. Hoje esse seu neto é um fotógrafo pobre na cidade
de Nova York. Outras pessoas, pobres à época em que o avô desse
fotógrafo se tornou um dos maiores industriais da Europa, são hoje
capitães de indústria. Todos são livres para mudar seu status, é isso
que distingue o sistema de status do sistema capitalista de liberdade
econômica, em que as pessoas só podem culpar a si mesmas se não
chegam a alcançar a posição que almejam.
O mais famoso industrial do século XX continua sendo Henry
Ford. Ele começou com umas poucas centenas de dólares
emprestados por amigos e, em muito pouco tempo, implantou
um dos mais importantes empreendimentos de grande vulto do
mundo. E podemos encontrar centenas de casos semelhantes todos
os dias. Diariamente o New York Times publica longas notas
sobre pessoas que faleceram. Lendo essas biografias, podemos
deparar, por exemplo, com o nome de um eminente empresário
que tenha iniciado a vida como vendedor de jornais nas esquinas
de Nova York. Ou com outro que tenha iniciado como contínuo
e, por ocasião de sua morte, era o presidente da mesma instituição
bancária onde começara no mais baixo degrau da hierarquia.
Evidentemente, nem todos conseguem alcançar tais posições.
Nem todos querem alcançá-las. Há pessoas mais interessadas em
outras coisas: para elas, no entanto, há hoje certos caminhos que
não estavam abertos nos tempos da sociedade feudal, na época da
sociedade de status.
O sistema socialista, contudo, proíbe essa liberdade fundamental
que é a escolha da própria carreira. Nas condições socialistas há
uma única autoridade econômica, e esta detém o poder de determinar
todas as questões atinentes à produção. Um dos traços característicos
de nossos dias é o uso de muitos nomes para designar uma
mesma coisa. Um sinônimo de socialismo e comunismo é “planejamento”.
Quando falam de “planejamento”, as pessoas se referem,
evidentemente, a um planejamento central, o que significa um plano
único, feito pelo governo – um plano que impede todo planejamento
feito por outra pessoa.
Uma senhora inglesa – que é também membro da Câmara Alta
– escreveu um livro intitulado Plan or no Plan, obra muito bem
recebida no mundo inteiro. Que significa o título desse livro? Ao
falar de “plano” a autora se refere unicamente ao tipo de planeja-
mento concebido por Lenin, Stálin e seus sucessores, o tipo que
determina todas as atividades de todo o povo de uma nação. Por
conseguinte, essa senhora só leva em conta o planejamento central,
que exclui todos os planos pessoais que os indivíduos possam
ter. Assim sendo, seu título, Plan or no Plan, revela-se um logro,
uma burla: a alternativa não está em plano central versus nenhum
plano. Na verdade, a escolha está entre o planejamento total feito
por uma autoridade governamental central e a liberdade de cada
indivíduo para traçar os próprios planos, fazer o próprio planejamento.
O indivíduo planeja sua vida todos os dias, alterando seus
planos diários sempre que queira.
O homem livre planeja diariamente, segundo suas necessidades.
Dizia, ontem, por exemplo: “Planejo trabalhar pelo resto dos
meus dias em Córdoba.” Agora, informado de que as condições
em Buenos Aires estão melhores, muda seus planos e diz: “Em vez
de trabalhar em Córdoba, quero ir para Buenos Aires.” É isso que
significa liberdade. Pode ser que ele esteja enganado, pode ser que
essa ida para Buenos Aires se revele um erro. Talvez as condições
lhe tivessem sido mais propicias em Córdoba, mas ele foi o autor
dos próprios planos.
Submetido ao planejamento governamental, o homem é como
um soldado num exército. Não cabe a um soldado o direito de escolher
sua guarnição, a praça onde servirá. Cabe-lhe cumprir ordens.
E o sistema socialista – como o sabiam e admitiam Karl Marx, Lenin
e todos os líderes socialistas – consiste na transposição do regime
militar a todo o sistema de produção. Marx falou de “exércitos
industriais” e Lenin impôs “a organização de tudo – o correio, as
manufaturas e os demais ramos industriais – segundo o modelo do
exército”. Portanto, no sistema socialista, tudo depende da sabedoria,
dos talentos e dos dons daqueles que constituem a autoridade
suprema. O que o ditador supremo – ou seu comitê – não sabe, não
é levado em conta. Mas o conhecimento acumulado pela humanidade
em sua longa história não é algo que uma só pessoa possa deter.
Acumulamos, ao longo dos séculos, um volume tão incomensurável
de conhecimentos científicos e tecnológicos, que se torna humanamente
impossível a um indivíduo o domínio de todo esse cabedal,
por extremamente bem-dotado que ele seja.
Acresce que os homens são diferentes, desiguais. E sempre o
serão. Alguns são mais dotados em determinado aspecto, menos
em outro. E há os que têm o dom de descobrir novos caminhos,
de mudar os rumos do conhecimento. Nas sociedades capitalistas,
o progresso tecnológico e econômico é promovido por esses
homens. Quando alguém tem uma ideia, procura encontrar
algumas outras pessoas argutas o suficiente para perceberem o
valor de seu achado. Alguns capitalistas que ousam perscrutar o
futuro, que se dão conta das possíveis consequências dessa ideia,
começarão a pô-la em prática. Outros, a princípio, poderão dizer:
“são uns loucos”, mas deixarão de dizê-lo quando constatarem
que o empreendimento que qualificavam de absurdo ou
loucura está florescendo, e que toda gente está feliz por comprar
seus produtos.
No sistema marxista, por outro lado, o corpo governamental
supremo deve primeiro ser convencido do valor de uma ideia
antes que ela possa ser levada adiante. Isso pode ser algo muito
difícil, uma vez que o grupo detentor do comando – ou o ditador
supremo em pessoa – tem o poder de decidir. E se essas pessoas
– por razões de indolência, senilidade, falta de inteligência ou
de instrução – forem incapazes de compreender o significado da
nova ideia, o novo projeto não será executado. Podemos evocar
exemplos da história militar. Napoleão era indubitavelmente
um gênio em questões militares; não obstante, viu-se certa feita
diante de um grave problema. Sua incapacidade para resolvê-lo
culminou na sua derrota e no subsequente exílio na solidão de
Santa Helena. O problema de Napoleão podia-se resumir a uma
pergunta: “Como conquistar a Inglaterra?”. Para fazê-lo, precisava
de uma esquadra capaz de cruzar o canal da Mancha. Houve,
então, pessoas que lhe garantiram conhecer um meio seguro de
levar a cabo aquela travessia; estas pessoas, numa época de embarcações
a vela, traziam a nova ideia de barcos movidos a vapor.
Mas Napoleão não compreendeu sua proposta.
Depois, houve o famoso Generalstab da Alemanha. Antes da
Primeira Guerra Mundial, o estado-maior alemão era universalmente
considerado insuperável em ciência militar. Reputação análoga
tinha o estado-maior do general Foch, na França. Mas nem os
alemães nem os franceses – que, sob o comando do general Foch,
derrotaram posteriormente os alemães – perceberam a importância
da aviação para fins militares. O estado-maior alemão declarava: “A
aviação é um mero divertimento; voar é bom para os desocupados.
Do ponto de vista militar, só zepelins têm importância”. E os franceses
eram da mesma opinião.
Mais tarde, no intervalo entre as duas Guerras Mundiais, nos
Estados Unidos, um general se convenceu de que a aviação seria de
extrema importância na guerra que se aproximava. Mas todos os
peritos do país pensavam o contrário. Ele não conseguiu convencêlos.
Sempre que tentamos convencer um grupo de pessoas que não
depende diretamente da solução de um problema, o fracasso é certo.
Isso se aplica também aos problemas não econômicos.
Muitos pintores, poetas, escritores e compositores já se queixaram
de que o público não reconhecia sua obra, o que os obrigava a
permanecerem na pobreza. Não há dúvida de que o público pode
ter julgado mal; mas, quando promulgam que “o governo deve
subsidiar os grandes artistas, pintores e escritores”, esses artistas
estão completamente errados. A quem deveria o governo confiar
a tarefa de decidir se determinado estreante é ou não, de fato, um
grande pintor? Teria de se valer da apreciação dos críticos e dos
professores de história da arte, que, sempre voltados para o passado,
até hoje deram raras mostras de talento no que tange à descoberta
de novos gênios. Essa é a grande diferença entre um sistema
de “planejamento” e um sistema em que é dado a cada um planejar
e agir por conta própria.
É verdade, obviamente, que grandes pintores e grandes escritores
suportaram, muitas vezes, situações de extrema penúria. Podem
ter tido êxito em sua arte, mas nem sempre em ganhar dinheiro.
Van Gogh foi por certo um grande pintor. Teve de sofrer agruras
insuportáveis e acabou por se suicidar, aos 37 anos de idade. Em
toda a sua existência, vendeu apenas uma tela, comprada por um
primo. Afora essa única venda, viveu do dinheiro do irmão, que,
apesar de não ser artista nem pintor, compreendia as necessidades
de um pintor. Hoje, não se compra um Van Gogh por menos de cem
ou duzentos mil dólares.
No sistema socialista, o destino de Van Gogh poderia ter sido
diverso. Algum funcionário do governo teria perguntado a alguns
pintores famosos (a quem Van Gogh seguramente nem sequer teria
considerado artistas) se aquele jovem, um tanto louco, ou completamente
louco, era de fato um pintor que valesse a pena subsidiar.
E com toda certeza eles teriam respondido: “Não, não é um pintor;
não é um artista; não passa de uma criatura que desperdiça tinta”, e
o teriam enviado a trabalhar numa indústria de laticínios, ou para
um hospício. Todo esse entusiasmo pelo socialismo manifestado
pelas novas gerações de pintores, poetas, músicos, jornalistas, atores,
baseia-se, portanto, numa ilusão.
Refiro-me a isso porque esses grupos estão entre os mais fanáticos
defensores da concepção socialista. Quando se trata de escolher
entre o socialismo e o capitalismo como sistema econômico,
o problema é um tanto diferente. Os teóricos do socialismo
jamais suspeitaram que a indústria moderna – juntamente com
todos os processos do moderno mundo dos negócios – se basearia
no cálculo. Os engenheiros não são, de maneira alguma, os únicos
a planejarem com base em cálculos; também os empresários
são obrigados a fazê-lo. E os cálculos do homem de negócios se
baseiam todos no fato de que, na economia de mercado, os preços
em dinheiro dos bens não só informam o consumidor, como
fornecem ao negociante informações de importância vital sobre
os fatores de produção, porquanto o mercado tem por função primordial
determinar não só o custo da última parte do processo de
produção, mas também o dos passos intermediários. O sistema
de mercado é indissociável do fato de que há uma divisão mentalmente
calculada do trabalho entre os vários empresários que
disputam entre si os fatores de produção – as matérias-primas, as
máquinas, os instrumentos – e o fator humano de produção, ou
seja, os salários pagos à mão-de-obra. Esse tipo de cálculo que
o empresário realiza não pode ser feito se ele não tem os preços
fornecidos pelo mercado.
No instante mesmo em que se abolir o mercado – e é o que
os socialistas gostariam de fazer – ficariam inutilizados todos os
cômputos e cálculos feitos pelos engenheiros e tecnólogos. Os
tecnólogos podem continuar fornecendo grande número de pro-
jetos que, do ponto de vista das ciências naturais, podem ser todos
igualmente exequíveis, mas são os cálculos baseados no mercado
– realizados pelo homem de negócios – que são indispensáveis
para se determinar qual desses projetos é o mais vantajoso do
ponto de vista econômico.
O problema de que estou tratando é a questão fundamental do
cálculo econômico capitalista em contraposição ao que se passa no
socialismo. O fato é que o cálculo econômico – e por conseguinte
todo planejamento tecnológico – só é possível quando existem
preços em dinheiro, não só para bens de consumo, como para os
fatores de produção. Isso significa que é preciso haver um mercado
para todas as matérias-primas, todos os artigos semi-acabados,
todos os instrumentos e máquinas, e todos os tipos de trabalho e de
serviço humanos. Quando se descobriu esse fato, os socialistas não
souberam reagir adequadamente. Por 150 anos tinham afirmado:
“Todos os males do mundo advêm da existência de mercados e de
preços de mercado. Queremos abolir o mercado e, com ele, é claro,
a economia de mercado, substituindo-a por um sistema sem preços
e sem mercados”. Queriam abolir o que Marx chamou de “caráter
de mercadoria” das mercadorias e do trabalho.
Confrontados com esse novo problema, os teóricos do socialismo,
sem resposta, acabaram por concluir: “não aboliremos o mercado
por completo; faremos de conta que existe um mercado, como
as crianças, quando brincam de escolinha.” A questão é que, todos
sabem, as crianças quando brincam de escolinha não aprendem coisa
alguma. É só uma brincadeira, uma simulação, e se pode “simular”
muitas coisas. Este é um problema muito difícil e complexo, e
para analisá-lo em toda a sua amplitude seria necessário um pouco
mais de tempo do que o que tenho aqui. Explanei-o em detalhes
em meus escritos. Em seis palestras, não posso empreender uma
análise de todos os seus aspectos. Assim sendo, quero sugerir-lhes,
caso estejam interessados no problema básico de impossibilidade
do cálculo e do planejamento no socialismo, a leitura de meu livro
Ação Humana, encontrável em espanhol em excelente tradução.
Mas leiam também outros livros, como o do economista norueguês
Trygue Hoff, que escreveu sobre o cálculo econômico. E,
se não quiserem ser unilaterais, recomendo a leitura do livro socialista
mais respeitado sobre o assunto, da autoria do eminente
economista polonês Oscar Lange, que foi por algum tempo professor
numa universidade americana, tornou-se depois embaixador
da Polônia, voltando, posteriormente, para o seu país. Provavelmente
me perguntarão: “E a Rússia? Como enfrentam os russos
esse problema?” Nesse caso, a questão muda de figura. Os russos
gerem seu sistema socialista no âmbito de um mundo em que
existem preços para todos os fatores de produção, para todas as
matérias-primas, para tudo. Por conseguinte, podem utilizar, em
seu planejamento, os preços do mercado mundial. E, visto que
há certas diferenças entre as condições reinantes na Rússia e as
reinantes nos Estados Unidos, frequentemente o resultado é que,
para os russos, parece justificável e aconselhável – de seu ponto
de vista econômico – algo que, para os americanos, absolutamente
não se justificaria economicamente.
A “experiência soviética” – ou “experimento”, como foi chamada
– não prova coisa alguma. Nada revela sobre o problema
fundamental do socialismo, o problema do cálculo. Mas teríamos
razões para caracterizá-la como “experiência”? Não creio que, no
campo da ação humana e da economia, possamos ter algo que se
assemelhe a um experimento científico. Não se pode fazer experimentos
de laboratório no campo da ação humana, porque um experimento
científico requer a réplica de um mesmo procedimento
sob diversas condições, ou a manutenção das mesmas condições
acompanhada da criação de talvez um único fator. Por exemplo, se
injetarmos num animal canceroso um medicamento experimental,
o resultado pode ser o desaparecimento do câncer. Poderemos
testar isso com vários animais da mesma raça, portadores da mesma
doença. Se tratarmos parte deles com o novo método e não
tratarmos outros, poderemos comparar os resultados. Ora, nada
disso é viável no campo da ação humana. Não há experimentos de
laboratório nesse plano.
A chamada “experiência” soviética mostra tão somente que o padrão
de vida na Rússia Soviética é incomparavelmente inferior ao
padrão alcançado pelo país mundialmente reputado o paradigma do
capitalismo: os Estados Unidos.
Se dissermos isto a um socialista, ele certamente contestará: “As
coisas na Rússia estão correndo maravilhosamente bem.” E nós responderemos:
“Podem estar maravilhosas, mas o padrão de vida é,
em média, muito baixo.” Então ele retrucará: “Sim, mas lembre o
quanto os russos sofreram com os czares, e a terrível guerra que
tivemos de enfrentar.”
Não quero discutir se esta é ou não uma explicação correta, mas
quando se nega que as condições tenham sido as mesmas, nega-se ao
mesmo tempo que tenha havido uma experiência. O que se deveria
afirmar – e seria muito mais correto – é: “O socialismo na Rússia
não ocasionou, em média, uma melhoria das condições do homem
comparável à melhoria de condições verificada, no mesmo período,
nos Estados Unidos.”
Nos Estados Unidos, quase toda semana tem-se notícia de
um novo invento, de um aperfeiçoamento. Muitos aperfeiçoamentos
foram gerados no mundo empresarial, porque milhares e
milhares de industriais estão empenhados, noite e dia, em descobrir
algum novo produto que satisfaça o consumidor, ou seja de
produção menos dispendiosa, ou seja melhor e menos oneroso
que os produtos já existentes. Não é o altruísmo que os move;
é seu desejo de ganhar dinheiro. E o efeito foi que o padrão de
vida se elevou, nos Estados Unidos, a níveis quase miraculosos
quando confrontados às condições reinantes há cinquenta ou
cem anos atrás. Mas na Rússia Soviética, onde esse sistema não
vigora, não se verifica um desenvolvimento comparável. Assim,
os que nos recomendam a adoção do sistema soviético estão inteiramente
equivocados.
Há mais uma coisa a ser mencionada. O consumidor americano,
o indivíduo, é tanto um comprador como um patrão. Ao
sair de uma loja nos Estados Unidos, é comum vermos um cartaz
com os seguintes dizeres: “Gratos pela preferência. Volte sempre”.
Mas ao entrarmos numa loja de um país totalitário – seja a
Rússia de hoje, seja a Alemanha de Hitler –, o gerente nos dirá:
“Agradeça ao grande líder, que lhe está proporcionando isso.”
Nos países socialistas, ao invés de ser o vendedor, é o comprador
que deve ficar agradecido. Não é o cidadão quem manda; quem
manda é o Comitê Central, o Gabinete Central. Estes comitês, os
líderes, os ditadores, são supremos; ao povo cabe simplesmente
obedecer-lhes.