O que há de Novo?
Fórum Outer Space - O maior fórum de games do Brasil

Registre uma conta gratuita hoje para se tornar um membro! Uma vez conectado, você poderá participar neste site adicionando seus próprios tópicos e postagens, além de se conectar com outros membros por meio de sua própria caixa de entrada privada!

  • Anunciando os planos GOLD no Fórum Outer Space
    Visitante, agora você pode ajudar o Fórum Outer Space e receber alguns recursos exclusivos, incluindo navegação sem anúncios e dois temas exclusivos. Veja os detalhes aqui.


Abrindo a sua mente: As 6 lições.

Flango Chines

Bam-bam-bam
Mensagens
1.387
Reações
2.494
Pontos
293
Ler esse livro está sendo uma das melhores coisas que resolvi fazer nos últimos meses.
O livro é uma transcrição de 6 palestras dadas por Mises em 1958.
A leitura é super simples e didática, e o livro é até curto.
Dividirei cada capítulo em spoilers para facilitar a visualização.
Recomendo bastante os capítulos 1 e 3.
Mas todos são igualmente esclarecedores.

Quem quiser, pode baixar o lívros em vários formatos daqui:
http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=16




Certas expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteiramente
equivocadas. Assim, atribuem-se a capitães de indústria e
a grandes empresários de nossos dias epítetos como “o rei do chocolate”,
“o rei do algodão” ou “o rei do automóvel”. Ao usar essas
expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma diferença
entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de
outrora. Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do
chocolate absolutamente não rege, ele serve. Não reina sobre um
território conquistado, independente do mercado, independente de
seus compradores. O rei do chocolate – ou do aço, ou do automóvel,
ou qualquer outro rei da indústria contemporânea – depende
da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.
Esse “rei” precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os
consumidores: perderá seu “reino” assim que já não tiver condições
de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo
que o oferecido por seus concorrentes.


Duzentos anos atrás, antes do advento do capitalismo, o status
social de um homem permanecia inalterado do princípio ao fim de
sua existência: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava.
Se nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico – lorde ou duque
–, manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava,
pelo resto dos seus dias.
No tocante à manufatura, as primitivas indústrias de beneficiamento
da época existiam quase exclusivamente em proveito dos
ricos. A grande maioria do povo (90% ou mais da população europeia)
trabalhava na terra e não tinha contato com as indústrias
de beneficiamento, voltadas para a cidade. Esse rígido sistema da
sociedade feudal imperou, por muitos séculos, nas mais desenvolvidas
regiões da Europa.


Contudo, a população rural se expandiu e passou a haver um excesso
de gente no campo. Os membros dessa população excedente,
sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupação. Também não
lhes era possível trabalhar nas indústrias de beneficiamento, cujo
acesso lhes era vedado pelos reis das cidades. O número desses
“párias” crescia incessantemente, sem que todavia ninguém soubesse
o que fazer com eles. Eram, no pleno sentido da palavra,
“proletários”, e ao governo só restava interná-los em asilos ou casas
de correção. Em algumas regiões da Europa, sobretudo nos
Países Baixos e na Inglaterra, essa população tornou-se tão numerosa
que, no século XVIII, constituía uma verdadeira ameaça à
preservação do sistema social vigente.


Hoje, ao discutir questões análogas em lugares como a Índia ou
outros países em desenvolvimento, não devemos esquecer que, na
Inglaterra do século XVIII, as condições eram muito piores. Naquele
tempo, a Inglaterra tinha uma população de seis ou sete milhões
de habitantes, dos quais mais de um milhão – provavelmente
dois – não passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor
nada proporcionava. As medidas a tomar com relação a esses deserdados
constituíam um dos maiores problemas da Inglaterra.
Outro sério problema era a falta de matérias-primas. Os ingleses
eram obrigados a enfrentar a seguinte questão: que faremos,
no futuro, quando nossas florestas já não nos derem a madeira de
que necessitamos para nossas indústrias e para aquecer nossas casas?
Para as classes governantes, era uma situação desesperadora.
Os estadistas não sabiam o que fazer e as autoridades em geral não
tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condições.


Foi dessa grave situação social que emergiram os começos do
capitalismo moderno. Dentre aqueles párias, aqueles miseráveis,
surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer
pequenos negócios, capazes de produzir alguma coisa. Foi uma
inovação. Esses inovadores não produziam artigos caros, acessíveis
apenas às classes mais altas: produziam bens mais baratos, que
pudessem satisfazer as necessidades de todos. E foi essa a origem
do capitalismo tal como hoje funciona. Foi o começo da produção
em massa – princípio básico da indústria capitalista. Enquanto
as antigas indústrias de beneficiamento funcionavam a serviço da
gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente
para corresponder às demandas dessas classes privilegiadas, as novas
indústrias capitalistas começaram a produzir artigos acessíveis
a toda a população. Era a produção em massa, para satisfazer às
necessidades das massas.


Este é o princípio fundamental do capitalismo tal como existe
hoje em todos os países onde há um sistema de produção em massa
extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos
mais fanáticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas,
produzem quase exclusivamente para suprir a carência das massas.
As empresas dedicadas à fabricação de artigos de luxo, para uso apenas
dos abastados, jamais têm condições de alcançar a magnitude
das grandes empresas. E, hoje, os empregados das grandes fábricas
são, eles próprios, os maiores consumidores dos produtos que nelas
se fabricam. Esta é a diferença básica entre os princípios capitalistas
de produção e os princípios feudalistas de épocas anteriores.
Quando se pressupõe ou se afirma a existência de uma diferença
entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande
empresa, incorre-se em grave erro. Nas grandes lojas dos Estados
Unidos, ouvimos o slogan: “O cliente tem sempre razão.” E esse
cliente é o mesmo homem que produz, na fábrica, os artigos à venda
naqueles estabelecimentos. Os que pensam que a grande empresa
detém um enorme poder também se equivocam, uma vez que a empresa
de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos
que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia
seu poder e sua influência se perdesse seus clientes.


Há cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos
os países capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram
por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam impossível
a concorrência. Alegava-se que, na área dos transportes,
o capitalismo já havia atingido um estágio no qual se destruira a si
mesmo, pois que eliminara a concorrência. O que se descurava era
o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de
oferecer à população um meio de transporte melhor que qualquer
outro. Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma dessas
grandes estradas de ferro, através da implantação de uma nova
ferrovia paralela à anterior, porquanto a primeira era suficiente para
atender às necessidades do momento. Mas outros concorrentes não
tardaram a aparecer. A livre concorrência não significa que se possa
prosperar pela simples imitação ou cópia exata do que já foi feito por
alguém. A liberdade de imprensa não significa o direito de copiar
o que outra pessoa escreveu, e assim alcançar o sucesso a que o verdadeiro
autor fez jus por suas obras. Significa o direito de escrever
outra coisa. A liberdade de concorrência no tocante às ferrovias,
por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para
fazer alguma coisa que desafie as ferrovias já existentes e as coloque
em situação muito precária de competitividade.
Nos Estados Unidos, a concorrência que se estabeleceu através
dos ônibus, automóveis, caminhões e aviões impôs às estradas de
ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz respeito
ao transporte de passageiros.


O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada homem
tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu cliente.
E, num tempo relativamente curto, esse método, esse princípio,
transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem
precedentes da população mundial.
Na Inglaterra do século XVIII, o território só podia dar sustento
a seis milhões de pessoas, num baixíssimo padrão de vida. Hoje,
mais de cinquenta milhões de pessoas aí desfrutam de um padrão de
vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no século
XVIII. E o padrão de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmente
mais alto ainda, não tivessem os ingleses dissipado boa parte de
sua energia no que, sob diversos pontos de vista, não foram mais
que “aventuras” políticas e militares evitáveis.


Estes são os fatos acerca do capitalismo. Assim, se um inglês –
ou, no tocante a esta questão, qualquer homem de qualquer país do
mundo – afirmar hoje aos amigos ser contrário ao capitalismo, há
uma esplêndida contestação a lhe fazer: “Sabe que a população deste
planeta é hoje dez vezes maior que nos períodos precedentes ao
capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padrão
de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do
capitalismo? E como você pode ter certeza de que, se não fosse o
capitalismo, você estaria integrando a décima parte da população
sobrevivente? Sua mera existência é uma prova do êxito do capitalismo,
seja qual for o valor que você atribua à própria vida.”
Não obstante todos os seus benefícios, o capitalismo foi furiosamente
atacado e criticado. É preciso compreender a origem dessa
aversão. É fato que o ódio ao capitalismo nasceu não entre o povo,
não entre os próprios trabalhadores, mas em meio à aristocracia
fundiária – a pequena nobreza da Inglaterra e da Europa continental.
Culpavam o capitalismo por algo que não lhes era muito agradável:
no início do século XIX, os salários mais altos pagos pelas
indústrias aos seus trabalhadores forçaram a aristocracia agrária
a pagar salários igualmente altos aos seus trabalhadores agrícolas.
A aristocracia atacava a indústria criticando o padrão de vida das
massas trabalhadoras.


Obviamente, do nosso ponto de vista, o padrão de vida dos trabalhadores
era extremamente baixo. Mas, se as condições de vida
nos primórdios do capitalismo eram absolutamente escandalosas,
não era porque as recém-criadas indústrias capitalistas estivessem
prejudicando os trabalhadores: as pessoas contratadas pelas fábricas
já subsistiam antes em condições praticamente subumanas.
A velha história, repetida centenas de vezes, de que as fábricas
empregavam mulheres e crianças que, antes de trabalharem nessas
fábricas, viviam em condições satisfatórias, é um dos maiores
embustes da história. As mães que trabalhavam nas fábricas não
tinham o que cozinhar: não abandonavam seus lares e suas cozinhas
para se dirigir às fábricas – corriam a elas porque não tinham
cozinhas e, ainda que as tivessem, não tinham comida para nelas
cozinharem. E as crianças não provinham de um ambiente confortável:
estavam famintas, estavam morrendo. E todo o tão falado
e indescritível horror do capitalismo primitivo pode ser refutado
por uma única estatística: precisamente nesses anos de expansão do
capitalismo na Inglaterra, no chamado período da Revolução Industrial
inglesa, entre 1760 e 1830, a população do país dobrou, o
que significa que centenas de milhares de crianças – que em outros
tempos teriam morrido – sobreviveram e cresceram, tornando-se
homens e mulheres.


Não há dúvida de que as condições gerais de vida em épocas
anteriores eram muito insatisfatórias. Foi o comércio capitalista
que as melhorou. Foram justamente aquelas primeiras fábricas que
passaram a suprir, direta ou indiretamente, as necessidades de seus
trabalhadores, através da exportação de manufaturados e da importação
de alimentos e matérias-primas de outros países. Mais uma
vez, os primeiros historiadores do capitalismo falsearam – é difícil
usar uma palavra mais branda – a história.
Há uma anedota – provavelmente inventada – que se costuma
contar a respeito de Benjamin Franklin: em visita a um cotonifício
na Inglaterra, Ben Franklin ouviu do proprietário cheio de
orgulho: “Veja, temos aqui tecidos de algodão para a Hungria.”
Olhando à sua volta e constatando que os trabalhadores estavam
em andrajos, Franklin perguntou: “E por que não produz também
para os seus empregados?”


Mas as exportações de que falava o dono do cotonifício realmente
significavam que ele de fato produzia para os próprios empregados,
visto que a Inglaterra tinha de importar toda a sua matériaprima.
Não possuía nenhum algodão, como também ocorria com a
Europa continental. A Inglaterra atravessava uma fase de escassez
de alimentos: era necessária sua importação da Polônia, da Rússia,
da Hungria. Assim, as exportações – como as de tecidos – se constituíam
no pagamento de importações de alimentos necessários à
sobrevivência da população inglesa. Muitos exemplos da história
dessa época revelarão a atitude da pequena nobreza e da aristocracia
com relação aos trabalhadores. Quero citar apenas dois. Um é o
famoso sistema inglês do seed and land. Por tal sistema, o governo
inglês pagava a todos os trabalhadores que não chegavam a receber
um salário mínimo (oficialmente fixado) a diferença entre o que recebiam
e esse mínimo. Isso poupava à aristocracia fundiária o dissabor
de pagar salários mais altos. A pequena nobreza continuaria
pagando o tradicionalmente baixo salário agrícola, suplementado
pelo governo. Evitava-se, assim, que os trabalhadores abandonassem
as atividades rurais em busca de emprego nas fábricas urbanas.
Oitenta anos depois, após a expansão do capitalismo da Inglaterra
para a Europa continental, mais uma vez verificou-se a reação
da aristocracia rural contra o novo sistema de produção. Na
Alemanha, os aristocratas prussianos – tendo perdido muitos trabalhadores
para as indústrias capitalistas, que ofereciam melhor
remuneração – cunharam uma expressão especial para designar o
problema: “fuga do campo” – Landflucht. Discutiu-se, então, no
parlamento alemão, que tipo de medida se poderia tomar contra
aquele mal – e tratava-se indiscutivelmente de um mal, do ponto
de vista da aristocracia rural. O príncipe Bismarck, o famoso
chanceler do Reich alemão, disse um dia num discurso: “Encontrei
em Berlim um homem que havia trabalhado em minhas terras.
Perguntei-lhe: ‘Por que deixou minhas terras? Por que deixou
o campo? Por que vive agora em Berlim?’”


E, segundo Bismarck, o homem respondeu: “Na aldeia não se
tem, como aqui em Berlim, um Biergarten tão lindo, onde nos podemos
sentar; tomar cerveja e ouvir música.” Esta é, sem dúvida, uma
estória contada do ponto de vista do príncipe Bismarck, o empregador.
Não seria o ponto de vista de todos os seus empregados. Estes
acorriam à indústria porque ela lhes pagava salários mais altos e
elevava seu padrão de vida a níveis sem precedentes.
Hoje, nos países capitalistas, há relativamente pouca diferença
entre a vida básica das chamadas classes mais altas e a das mais baixas:
ambas têm alimento, roupas e abrigo. Mas no século XVIII, e
nos que o precederam, o que distinguia o homem da classe média
do da classe baixa era o fato de o primeiro ter sapatos, e o segundo,
não. Hoje, nos Estados Unidos, a diferença entre um rico e um
pobre reduz-se muitas vezes à diferença entre um Cadillac e um
Chevrolet. O Chevrolet pode ser de segunda mão, mas presta a seu
dono basicamente os mesmos serviços que o Cadillac poderia prestar,
uma vez que também está apto a se deslocar de um local a outro.
Mais de 50% da população dos Estados Unidos vivem em casas e
apartamentos próprios.


As investidas contra o capitalismo – especialmente no que se refere
aos padrões salariais mais altos – tiveram por origem a falsa
suposição de que os salários são, em última análise, pagos por pessoas
diferentes daquelas que trabalham nas fábricas. Certamente,
nada impede que economistas e estudantes de teorias econômicas
tracem uma distinção entre trabalhador e consumidor. Mas o fato é
que todo consumidor tem de ganhar, de uma maneira ou de outra, o
dinheiro que gasta, e a imensa maioria dos consumidores é constituída
precisamente por aquelas mesmas pessoas que trabalham como
empregados nas empresas produtoras dos bens que consomem.
No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas
diferentes das que ganham os salários: são essas mesmas pessoas
que os manipulam. Não é a companhia cinematográfica de
Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga
é o público que compra ingresso nas bilheterias dos cinemas. E não
é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências
de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para
a luta. A partir da distinção entre empregado e empregador, traçase,
no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na
vida real. Nesta, empregador e empregado são, em última análise,
uma só e a mesma pessoa.
Em muitos países há quem considere injusto que um homem
obrigado a sustentar uma família numerosa receba o mesmo salário
que outro, responsável apenas pela própria manutenção. No
entanto, o problema é não questionar se é ao empresário ou não
que cabe assumir a responsabilidade pelo tamanho da família de
um trabalhador.


A pergunta que deve ser feita neste caso é: você, como indivíduo,
se disporia a pagar mais por alguma coisa, digamos, um pão,
se for informado de que o homem que o fabricou tem seis filhos?
Uma pessoa honesta por certo responderia negativamente, dizendo:
“Em princípio, sim. Mas na prática tenderia a comprar o pão
feito por um homem sem filho nenhum.” O fato é que o empregador
a quem os compradores não pagam o suficiente para que
ele possa pagar seus empregados se vê na impossibilidade de levar
adiante seus negócios.


O “capitalismo” foi assim batizado não por um simpatizante do
sistema, mas por alguém que o tinha na conta do pior de todos os
sistemas históricos, da mais grave calamidade que jamais se abatera
sobre a humanidade. Esse homem foi Karl Marx. Não há razão,
contudo, para rejeitar a designação proposta por Marx, uma vez que
ela indica claramente a origem dos grandes progressos sociais ocasionados
pelo capitalismo. Esses progressos são fruto da acumulação
do capital; baseiam-se no fato de que as pessoas, por via de
regra, não consomem tudo o que produzem e no fato de que elas
poupam – e investem – parte desse montante.
Reina um grande equívoco em torno desse problema. Ao longo
destas seis palestras, terei oportunidade de abordar os principais
mal-entendidos em voga, relacionados com a acumulação do capital,
com o uso do capital e com os benefícios universais auferidos a
partir desse uso. Tratarei do capitalismo particularmente em minhas
palestras dedicadas ao investimento externo e a esse problema
extremamente crítico da política atual que é a inflação. Todos
sabem, é claro, que a inflação não existe só neste país. Constitui
hoje um problema em todas as partes do mundo. O que muitas
vezes não se compreende a respeito do capitalismo é o seguinte:
poupança significa benefícios para todos os que desejam produzir
ou receber salários.


Quando alguém acumula certa quantidade de dinheiro – mil
dólares, digamos – e confia esses dólares, em vez de gastá-los, a
uma empresa de poupança ou a uma companhia de seguros, transfere
esse dinheiro para um empresário, um homem de negócios, o
que vai permitir que esse empresário possa expandir suas atividades
e investir num projeto, que na véspera ainda era inviável, por
falta do capital necessário. Que fará então o empresário com o
capital recém-obtido? Certamente a primeira coisa que fará, o primeiro
uso que dará a esse capital suplementar será a contratação
de trabalhadores e a compra de matérias-primas – o que promoverá,
por sua vez, o surgimento de uma demanda adicional de trabalhadores
e matérias-primas, bem como uma tendência à elevação
dos salários e dos preços dessas matérias-primas. Muito antes que
o poupador ou o empresário tenham obtido algum lucro em tudo
isso, o trabalhador desempregado, o produtor de matérias-primas,
o agricultor e o assalariado já estarão participando dos benefícios
das poupanças adicionais.


O que o empresário virá ou não a ganhar com o projeto depende
das condições futuras do mercado e de seu talento para prevê-las
corretamente. Mas os trabalhadores, assim como os produtores de
matéria-prima, auferem as vantagens de imediato. Muito se falou,
trinta ou quarenta anos atrás, sobre a “política salarial” – como a
denominavam – de Henry Ford. Uma das maiores façanhas do Sr.
Ford consistia em pagar salários mais altos que os oferecidos pelas
demais indústrias ou fábricas. Sua política salarial foi descrita
como uma “invenção”. Não se pode, no entanto, dizer que essa
nova política “inventada” seja simplesmente um fruto da liberalidade
do Sr. Ford. Um novo ramo industrial – ou uma nova fábrica
num ramo já existente – precisa atrair trabalhadores de outros empregos,
de outras regiões do país e até de outros países. E não há
outra maneira de fazê-lo senão através do pagamento de salários
mais altos aos trabalhadores. Foi o que ocorreu nos primórdios do
capitalismo, e é o que ocorre até hoje.


Na Grã-Bretanha, quando os fabricantes começaram a produzir
artigos de algodão, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores
mais do que estes ganhavam antes. É verdade que grande porcentagem
desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma antes.
Estavam, então, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes
fosse oferecida. Mas, pouco tempo depois, com a crescente acumulação
do capital e a implantação de um número cada vez maior
de novas empresas, os salários se elevaram, e como consequência
houve aquele aumento sem precedentes da população inglesa, ao
qual já me referi. A reiterada caracterização depreciativa do capi23
talismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e
os pobres mais pobres é equivocada do começo ao fim. A tese de
Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressuposto
de que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que
o povo estava ficando mais miserável, o que finalmente redundaria
na concentração de toda a riqueza de um país em umas poucas
mãos, ou mesmo nas de um homem só. Como consequência, as
massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam
os bens dos opulentos proprietários.


Segundo essa doutrina de Marx, é impossível, no sistema capitalista,
qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melhoria
das condições dos trabalhadores. Em 1865, falando perante a
Associação Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx
afirmou que a crença de que os sindicatos poderiam promover melhores
condições para a população trabalhadora era “absolutamente
errônea”. Qualificou a política sindical voltada para a reivindicação
de melhores salários e menor número de horas de trabalho de
conservadora – era este, evidentemente, o termo mais desabonador
a que Marx podia recorrer. Sugeriu que os sindicatos adotassem
uma nova meta revolucionária: a “completa abolição do sistema de
salários”, e a substituição do sistema de propriedade privada pelo
“socialismo” – a posse dos meios de produção pelo governo.
Se consideramos a história do mundo – e em especial a história
da Inglaterra a partir de 1865 – verificaremos que Marx estava errado
sob todos os aspectos. Não há um só país capitalista em que as
condições do povo não tenham melhorado de maneira inédita. Todos
esses progressos ocorridos nos últimos oitenta ou noventa anos
produziram-se a despeito dos prognósticos de Karl Marx: os socialistas
de orientação marxista acreditavam que as condições dos trabalhadores
jamais poderiam melhorar. Adotavam uma falsa teoria, a
famosa “lei de ferro dos salários”. Segundo esta lei, no capitalismo,
os salários de um trabalhador não excederiam a soma que lhe fosse
estritamente necessária para manter-se vivo a serviço da empresa.
Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os
padrões salariais dos trabalhadores sobem, com a elevação dos salá-
rios, a um nível superior ao necessário para a subsistência, eles terão
mais filhos. Esses filhos, ao ingressarem na força de trabalho, engrossarão
o número de trabalhadores até o ponto em que os padrões
salariais cairão, rebaixando novamente os salários dos trabalhadores
a um nível mínimo necessário para a subsistência – àquele nível
mínimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extinção da
população trabalhadora.


Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve
um conceito de trabalhador idêntico ao adotado – justificadamente
– pelos biólogos que estudam a vida dos animais. Dos camundongos,
por exemplo. Se colocarmos maior quantidade de alimento à
disposição de organismos animais, ou de micróbios, maior número
deles sobreviverá. Se a restringirmos, restringiremos o número
dos sobreviventes. Mas com o homem é diferente. Mesmo o trabalhador
– ainda que os marxistas não o admitam – tem carências
humanas outras que as de alimento e de reprodução de sua espécie.
Um aumento dos salários reais resulta não só num aumento da população;
resulta também, e antes de tudo, numa melhoria do padrão
de vida média. É por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e
nos Estados Unidos, um padrão de vida superior ao das nações em
desenvolvimento, às da África, por exemplo. Devemos compreender,
contudo, que esse padrão de vida mais elevado fundamenta-se
na disponibilidade de capital. Isso explica a diferença entre as
condições reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na
Índia. Neste país foram introduzidos – ao menos em certa medida
– modernos métodos de combate a doenças contagiosas, cujo efeito
foi um aumento inaudito da população. No entanto, como esse
crescimento populacional não foi acompanhado de um aumento
correspondente do montante de capital investido no país, o resultado
foi um agravamento da miséria. Quanto mais se eleva o capital
investido por indivíduo, mais próspero se torna o país.
Mas é preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocorrem
milagres. Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o
chamado milagre econômico alemão – a recuperação da Alemanha
depois de sua derrota e destruição na Segunda Guerra Mundial.
Mas não houve milagre. Houve tão somente a aplicação
25
dos princípios da economia do livre mercado, dos métodos do capitalismo,
embora essa aplicação não tenha sido completa em todos
os pontos. Todo país pode experimentar o mesmo “milagre” de
recuperação econômica, embora eu deva insistir em que esta não
é fruto de milagre: é fruto da adoção de políticas econômicas sólidas,
pois que é delas que resulta.


Estou em Buenos Aires a convite do Centro de Difusión de la
Economia Libre. Que vem a ser economia livre? Que significa esse
sistema de liberdade econômica? A resposta é simples: é a economia
de mercado, é o sistema em que a cooperação dos indivíduos na
divisão social do trabalho se realiza pelo mercado. E esse mercado
não é um lugar: é um processo, é a forma pela qual, ao vender e comprar,
ao produzir e consumir, as pessoas estão contribuindo para o
funcionamento global da sociedade.


Quando falamos desse sistema de organização econômica – a
economia de mercado – empregamos a expressão “liberdade econômica”.
Frequentemente as pessoas se equivocam quanto ao seu
significado, supondo que liberdade econômica seja algo inteiramente
dissociado de outras liberdades, e que estas outras liberdades
– que reputam mais importantes – possam ser preservadas
mesmo na ausência de liberdade econômica. Mas liberdade econômica
significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem
o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da
sociedade. A pessoa tem o direito de escolher sua carreira, tem
liberdade para fazer o que quer.


É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje
tantos atribuem à palavra. O que queremos dizer é antes que, através
da liberdade econômica, o homem é libertado das condições
naturais. Nada há, na natureza, que possa ser chamado de liberdade;
há apenas a regularidade das leis naturais, a que o homem
é obrigado a obedecer para alcançar qualquer coisa. Quando se
trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o significado
exclusivo de liberdade na sociedade. Não obstante, muitos
consideram que as liberdades sociais são independentes umas das
outras. Os que hoje se intitulam “liberais” têm reivindicado programas
que são exatamente o oposto das políticas que os liberais
do século XIX defendiam em seus programas liberais. Os pretensos
liberais de nossos dias sustentam a ideia muito difundida de
que as liberdades de expressão, de pensamento, de imprensa, de
culto, de encarceramento sem julgamento podem, todas elas, ser
preservadas mesmo na ausência do que se conhece como liberdade
econômica. Não se dão conta de que, num sistema desprovido de
mercado, em que o governo determina tudo, todas essas outras liberdades
são ilusórias, ainda que postas em forma de lei e inscritas
na constituição.


Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Se for dono
de todas as máquinas impressoras, o governo determinará o que
deve e o que não deve ser impresso. Nesse caso, a possibilidade de
se publicar qualquer tipo de crítica às ideias oficiais torna-se praticamente
nula. A liberdade de imprensa desaparece. E o mesmo se
aplica a todas as demais liberdades.


Quando há economia de mercado, o indivíduo tem a liberdade
de escolher qualquer carreira que deseje seguir, de escolher seu
próprio modo de inserção na sociedade. Num sistema socialista é
diferente: as carreiras são decididas por decreto do governo. Este
pode ordenar às pessoas que não lhe sejam gratas, àquelas cuja presença
não lhe pareça conveniente em determinadas regiões, que se
mudem para outras regiões e outros lugares. E sempre há como justificar
e explicar semelhante procedimento: declara-se que o plano
governamental exige a presença desse eminente cidadão a cinco mil
milhas de distância do local onde ele estava sendo ou poderia ser
incômodo aos detentores do poder.


É verdade que a liberdade possível numa economia de mercado
não é uma liberdade perfeita no sentido metafísico. Mas a liberdade
perfeita não existe. É só no âmbito da sociedade que a liberdade
tem algum significado. Os pensadores que desenvolveram, no século
XVIII, a ideia da “lei natural” – sobretudo Jean-Jacques Rousseau
– acreditavam que um dia, num passado remoto, os homens haviam
desfrutado de algo chamado liberdade “natural”. Mas nesses tempos
remotos os homens não eram livres – estavam à mercê de todos
os que fossem mais fortes que eles mesmos. As famosas palavras de
Rousseau: “O homem nasceu livre e se encontra acorrentado em
toda parte”, talvez soem bem, mas na verdade o homem não nasceu
livre. Nasceu como uma frágil criança de peito. Sem a proteção dos
pais, sem a proteção proporcionada a esses pais pela sociedade, não
teria podido sobreviver.


Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto
dos demais como estes dependem dele. A sociedade, quando regida
pela economia de mercado, pelas condições da economia livre, apresenta
uma situação em que todos prestam serviços aos seus concidadãos
e são, em contrapartida, por eles servidos. Acredita-se, que
existem na economia de mercado chefões que não dependem da boa
vontade e do apoio dos demais cidadãos. Os capitães de indústria,
os homens de negócios, os empresários seriam os verdadeiros chefões
do sistema econômico. Mas isso é uma ilusão. Quem manda no
sistema econômico são os consumidores. Se estes deixam de prestigiar
um ramo de atividades, os empresários deste ramo são compelidos
ou a abandonar sua eminente posição no sistema econômico, ou
a ajustar suas ações aos desejos e às ordens dos consumidores.
Uma das mais notórias divulgadoras do comunismo foi Beatrice
Potter, nome de solteira de Lady Passfield (tambem muito conhecida
por conta de seu marido Sidney Webb). Essa senhora, filha
de um rico empresário, trabalhou quando jovem como secretária
do pai. Em suas memórias, ela escreve: “Nos negócios de meu pai,
todos tinham de obedecer às ordens dadas por ele, o chefe. Só a ele
competia dar ordens, e a ele ninguém dava ordem alguma.” Esta é
uma visão muito acanhada. Seu pai recebia ordens: dos consumidores,
dos compradores. Lamentavelmente, ela não foi capaz de
perceber essas ordens; não foi capaz de perceber o que ocorre numa
economia de mercado, exclusivamente voltada que estava para as
ordens expedidas dentro dos escritórios ou da fábrica do pai.
Diante de todos os problemas econômicos, devemos ter em
mente as palavras que o grande economista francês Frédéric Bas-
tiat usou como título de um de seus brilhantes ensaios: “Ce quon
voit et ce qu’on ne voit pas” (“O que se vê e o que não se vê”). Para
compreender como funciona um sistema econômico, temos de levar
em conta não só o que pode ser visto, mas também o que não
pode ser diretamente percebido. Por exemplo, uma ordem dada
por um chefe a um contínuo pode ser ouvida por aqueles que estejam
na mesma sala. O que não se pode ouvir são as ordens dadas
ao chefe por seus clientes.


O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última instância,
são os consumidores. Não é o estado, é o povo que é soberano.
Prova disto é o fato de que lhe assiste o direito de ser tolo.
Este é o privilégio do soberano. Assiste-lhe o direito de cometer
erros: ninguém o pode impedir de cometê-los, embora, obviamente,
deva pagar por eles. Quando afirmamos que o consumidor é
supremo ou soberano, não estamos afirmando que está livre de
erros, que sempre sabe o que melhor lhe conviria. Muitas vezes
os consumidores compram ou consomem artigos que não deviam
comprar ou consumir. Mas a ideia de que uma forma capitalista
de governo pode impedir, através de um controle sobre o que as
pessoas consomem, que elas se prejudiquem, é falsa. A visão do
governo como uma autoridade paternal, um guardião de todos, é
própria dos adeptos do socialismo.


Nos Estados Unidos, o governo empreendeu certa feita, há alguns
anos, uma experiência que foi qualificada de “nobre”. Essa
“nobre experiência” consistiu numa lei que declarava ilegal o consumo
de bebidas tóxicas. Não há dúvida de que muita gente se
prejudica ao beber conhaque e whisky em excesso. Algumas autoridades
nos Estados Unidos são contrárias até mesmo ao fumo.


Certamente há muitas pessoas que fumam demais, não obstante o
fato de que não fumar seria melhor para elas. Isso suscita um problema
que transcende em muito a discussão econômica: põe a nu
o verdadeiro significado da liberdade. Se admitirmos que é bom
impedir que as pessoas se prejudiquem bebendo ou fumando em
excesso, haverá quem pergunte: “Será que o corpo é tudo? Não seria
a mente do homem muito mais importante? Não seria a mente
do homem o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado humano?”
Se dermos ao governo o direito de determinar o que o corpo hu31
mano deve consumir, de determinar se alguém deve ou não fumar,
deve ou não beber, nada poderemos replicar a quem afirme: “Mais
importante ainda que o corpo é a mente, é a alma, e o homem
se prejudica muito mais ao ler maus livros, ouvir música ruim e
assistir a maus filmes. É, pois, dever do governo impedir que se
cometam esses erros.” E, como todos sabem, por centenas de anos
os governos e as autoridades acreditaram que esse era de fato o seu
dever. Nem isso aconteceu apenas em épocas remotas. Não faz
muito tempo, houve na Alemanha um governo que considerava
seu dever discriminar as boas e as más pinturas – boas e más, é
claro, do ponto de vista de um homem que, na juventude, fora
reprovado no exame de admissão à Academia de Arte, em Viena:
era o bom e o mau segundo a ótica de um pintor de cartão-postal.
E tornou-se ilegal expressar concepções sobre arte e pintura que
divergissem daquelas do Führer supremo.


A partir do momento em que começamos a admitir que é
dever do governo controlar o consumo de álcool do cidadão, que
podemos responder a quem afirme ser o controle dos livros e das
ideias muito mais importante? Liberdade significa realmente liberdade
para errar. Isso precisa ser bem compreendido. Podemos
ser extremamente críticos com relação ao modo como nossos
concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos
considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa
sociedade livre, todos têm, no entanto, as mais diversas maneiras
de manifestar suas opiniões sobre como seus concidadãos
deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros;
escrever artigos; fazer conferências. Podem até fazer pregações
nas esquinas, se quiserem – e faz-se isso, em muitos países. Mas
ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los
de fazer determinadas coisas simplesmente porque não se quer
que as pessoas tenham a liberdade de fazê-las.


É essa a diferença entre escravidão e liberdade. O escravo é
obrigado a fazer o que seu superior lhe ordena que faça, enquanto o
cidadão livre – e é isso que significa liberdade – tem a possibilidade
de escolher seu próprio modo de vida. Sem dúvida esse sistema capitalista
pode ser – e é de fato – mal usado por alguns. É certamente
possível fazer coisas que não deveriam ser feitas. Mas se tais coisas
contam com a aprovação da maioria do povo, uma voz discordante
terá sempre algum meio de tentar mudar as ideias de seus concidadãos.
Pode tentar persuadi-los, convencê-los, mas não pode tentar
constrangê-los pela força, pela força policial do governo.
Na economia de mercado, todos prestam serviços aos seus
concidadãos ao prestarem serviços a si mesmos. Era isso o que
tinham em mente os pensadores liberais do século XVIII, quando
falavam da harmonia dos interesses – corretamente compreendidos
– de todos os grupos e indivíduos que constituem a população.
E foi a essa doutrina da harmonia de interesses que os
socialistas se opuseram. Falaram de um “conflito inconciliável
de interesses” entre vários grupos.


Que significa isso? Quando Karl Marx – no primeiro capítulo
do Manifesto Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou
seu movimento socialista – sustentou a existência de um conflito
inconciliável entre as classes, só pode evocar, como ilustração
à sua tese, exemplos tomados das condições da sociedade précapitalista.
Nos estágios pré-capitalistas, a sociedade se dividia
em grupos hereditários de status, na Índia denominados “castas”.
Numa sociedade de status, um homem não nascia, por exemplo,
cidadão francês; nascia na condição de membro da aristocracia
francesa, ou da burguesia francesa, ou do campesinato francês.
Durante a maior parte da Idade Média, era simplesmente um
servo. E a servidão, na França, ainda não havia sido inteiramente
extinta mesmo depois da Revolução Americana. Em outras
regiões da Europa, a sua extinção ocorreu ainda mais tarde. Mas
a pior forma de servidão – forma que continuou existindo mesmo
depois da abolição da escravatura – era a que tinha lugar nas
colônias inglesas. O indivíduo herdava seu status dos país e o
conservava por toda a vida. Transferia-o aos filhos. Cada grupo
tinha privilégios e desvantagens. Os de status mais elevado tinham
apenas privilégios, os de status inferior, só desvantagens. E
não restava ao homem nenhum outro meio de escapar às desvantagens
legais impostas por seu status senão a luta política contra
as outras classes. Nessas condições, pode-se dizer que havia “um
conflito inconciliável de interesses entre senhores de escravos
e escravos”, porque o interesse dos escravos era livrar-se da es33
cravidão, da qualidade de escravos. E sua liberdade significava,
para os seus proprietários, uma perda. Assim sendo, não há dúvida
de que tinha de existir forçosamente um conflito inconciliável
de interesses entre os membros das várias classes.


Não devemos esquecer que nesses períodos – em que as sociedades
de status predominaram na Europa, bem como nas colônias que
os europeus fundaram posteriormente na América – as pessoas não
se consideravam ligadas de nenhuma forma especial às demais classes
de sua própria nação; sentiam-se muito mais solidárias com os
membros de suas classes nos outros países. Um aristocrata francês
não tinha os franceses das classes inferiores na conta de seus concidadãos:
a seus olhos, eles não eram mais que a ralé, que não lhes
agradava. Seus iguais eram os aristocratas dos demais países – os da
Itália, Inglaterra e Alemanha, por exemplo.


O efeito mais visível desse estado de coisas era o fato de os aristocratas
de toda a Europa falarem a mesma língua, o francês, idioma
não compreendido, fora da França, pelos demais grupos da população.
As classes médias – a burguesia – tinham sua própria língua,
enquanto as classes baixas – o campesinato – usavam dialetos locais,
muitas vezes não compreendidos por outros grupos da população.
O mesmo se passava com relação aos trajes. Quem viajasse de um
país para outro em 1750 constataria que as classes mais elevadas,
os aristocratas, se vestiam em geral de maneira idêntica em toda a
Europa; e que as classes baixas usavam roupas diferentes. Vendo
alguém na rua, era possível perceber de imediato – pelo modo como
se vestia – a sua classe, o seu status.


É difícil avaliar o quanto essa situação era diversa da atual. Se
venho dos Estados Unidos para a Argentina e vejo um homem na
rua, não posso dizer qual é seu status. Concluo apenas que é um
cidadão argentino, não pertencente a nenhum grupo sujeito a restrições
legais. Isto é algo que o capitalismo nos trouxe. Sem dúvida há
também diferenças entre as pessoas no capitalismo. Há diferenças
em relação à riqueza; diferenças estas que os marxistas, equivocadamente,
consideram equivalentes àquelas antigas que separavam os
homens na sociedade de status.


Numa sociedade capitalista, as diferenças entre os cidadãos
não são como as que se verificam numa sociedade de status. Na
Idade Média – e mesmo bem depois, em muitos países – uma família
podia ser aristocrata e possuidora de grande fortuna, podia
ser uma família de duques, ao longo de séculos e séculos, fossem
quais fossem suas qualidades, talentos, caráter ou moralidade. Já
nas modernas condições capitalistas, verifica-se o que foi tecnicamente
denominado pelos sociólogos de “mobilidade social”.
O princípio segundo o qual a mobilidade social opera, nas palavras
do sociólogo e economista italiano Vilfredo Pareto, é o da
“circulation des élites” (“circulação das elites”). Isso significa que
haverá sempre no topo da escada social pessoas ricas, politicamente
importantes, mas essas pessoas – essas elites – estão em
contínua mudança.


Isto se aplica perfeitamente a uma sociedade capitalista. Não
se aplicaria a uma sociedade pré-capitalista de status. As famílias
consideradas as grandes famílias aristocráticas da Europa permanecem
as mesmas até hoje, ou melhor, são formadas hoje pelos
descendentes de famílias que constituíam a nata na Europa, há
oito, dez ou mais séculos. Os Capetos de Bourbon – que por um
longo período dominaram a Argentina – já eram uma casa real
desde o século X. Reinavam sobre o território hoje chamado
Ile-de-France, ampliando seu reino a cada geração. Mas numa
sociedade capitalista há uma continua mobilidade – pobres que
enriquecem e descendentes de gente rica que perdem a fortuna e
se tornam pobres.


Vi hoje, numa livraria de uma rua do centro de Buenos Aires,
a biografia de um homem que viveu na Europa do século XIX, e
que foi tão eminente, tão importante, tão representativo dos altos
negócios europeus naquela época, que até hoje, aqui neste país tão
distante da Europa, encontram-se à venda exemplares da história
de sua vida. Tive a oportunidade de conhecer o neto desse homem.
Tem o mesmo nome do avô e conserva o direito de usar o título
nobiliário que este – que começou a vida como ferreiro – recebeu oitenta
anos atrás. Hoje esse seu neto é um fotógrafo pobre na cidade
de Nova York. Outras pessoas, pobres à época em que o avô desse
fotógrafo se tornou um dos maiores industriais da Europa, são hoje
capitães de indústria. Todos são livres para mudar seu status, é isso
que distingue o sistema de status do sistema capitalista de liberdade
econômica, em que as pessoas só podem culpar a si mesmas se não
chegam a alcançar a posição que almejam.


O mais famoso industrial do século XX continua sendo Henry
Ford. Ele começou com umas poucas centenas de dólares
emprestados por amigos e, em muito pouco tempo, implantou
um dos mais importantes empreendimentos de grande vulto do
mundo. E podemos encontrar centenas de casos semelhantes todos
os dias. Diariamente o New York Times publica longas notas
sobre pessoas que faleceram. Lendo essas biografias, podemos
deparar, por exemplo, com o nome de um eminente empresário
que tenha iniciado a vida como vendedor de jornais nas esquinas
de Nova York. Ou com outro que tenha iniciado como contínuo
e, por ocasião de sua morte, era o presidente da mesma instituição
bancária onde começara no mais baixo degrau da hierarquia.
Evidentemente, nem todos conseguem alcançar tais posições.
Nem todos querem alcançá-las. Há pessoas mais interessadas em
outras coisas: para elas, no entanto, há hoje certos caminhos que
não estavam abertos nos tempos da sociedade feudal, na época da
sociedade de status.


O sistema socialista, contudo, proíbe essa liberdade fundamental
que é a escolha da própria carreira. Nas condições socialistas há
uma única autoridade econômica, e esta detém o poder de determinar
todas as questões atinentes à produção. Um dos traços característicos
de nossos dias é o uso de muitos nomes para designar uma
mesma coisa. Um sinônimo de socialismo e comunismo é “planejamento”.
Quando falam de “planejamento”, as pessoas se referem,
evidentemente, a um planejamento central, o que significa um plano
único, feito pelo governo – um plano que impede todo planejamento
feito por outra pessoa.


Uma senhora inglesa – que é também membro da Câmara Alta
– escreveu um livro intitulado Plan or no Plan, obra muito bem
recebida no mundo inteiro. Que significa o título desse livro? Ao
falar de “plano” a autora se refere unicamente ao tipo de planeja-
mento concebido por Lenin, Stálin e seus sucessores, o tipo que
determina todas as atividades de todo o povo de uma nação. Por
conseguinte, essa senhora só leva em conta o planejamento central,
que exclui todos os planos pessoais que os indivíduos possam
ter. Assim sendo, seu título, Plan or no Plan, revela-se um logro,
uma burla: a alternativa não está em plano central versus nenhum
plano. Na verdade, a escolha está entre o planejamento total feito
por uma autoridade governamental central e a liberdade de cada
indivíduo para traçar os próprios planos, fazer o próprio planejamento.
O indivíduo planeja sua vida todos os dias, alterando seus
planos diários sempre que queira.


O homem livre planeja diariamente, segundo suas necessidades.
Dizia, ontem, por exemplo: “Planejo trabalhar pelo resto dos
meus dias em Córdoba.” Agora, informado de que as condições
em Buenos Aires estão melhores, muda seus planos e diz: “Em vez
de trabalhar em Córdoba, quero ir para Buenos Aires.” É isso que
significa liberdade. Pode ser que ele esteja enganado, pode ser que
essa ida para Buenos Aires se revele um erro. Talvez as condições
lhe tivessem sido mais propicias em Córdoba, mas ele foi o autor
dos próprios planos.


Submetido ao planejamento governamental, o homem é como
um soldado num exército. Não cabe a um soldado o direito de escolher
sua guarnição, a praça onde servirá. Cabe-lhe cumprir ordens.
E o sistema socialista – como o sabiam e admitiam Karl Marx, Lenin
e todos os líderes socialistas – consiste na transposição do regime
militar a todo o sistema de produção. Marx falou de “exércitos
industriais” e Lenin impôs “a organização de tudo – o correio, as
manufaturas e os demais ramos industriais – segundo o modelo do
exército”. Portanto, no sistema socialista, tudo depende da sabedoria,
dos talentos e dos dons daqueles que constituem a autoridade
suprema. O que o ditador supremo – ou seu comitê – não sabe, não
é levado em conta. Mas o conhecimento acumulado pela humanidade
em sua longa história não é algo que uma só pessoa possa deter.
Acumulamos, ao longo dos séculos, um volume tão incomensurável
de conhecimentos científicos e tecnológicos, que se torna humanamente
impossível a um indivíduo o domínio de todo esse cabedal,
por extremamente bem-dotado que ele seja.


Acresce que os homens são diferentes, desiguais. E sempre o
serão. Alguns são mais dotados em determinado aspecto, menos
em outro. E há os que têm o dom de descobrir novos caminhos,
de mudar os rumos do conhecimento. Nas sociedades capitalistas,
o progresso tecnológico e econômico é promovido por esses
homens. Quando alguém tem uma ideia, procura encontrar
algumas outras pessoas argutas o suficiente para perceberem o
valor de seu achado. Alguns capitalistas que ousam perscrutar o
futuro, que se dão conta das possíveis consequências dessa ideia,
começarão a pô-la em prática. Outros, a princípio, poderão dizer:
“são uns loucos”, mas deixarão de dizê-lo quando constatarem
que o empreendimento que qualificavam de absurdo ou
loucura está florescendo, e que toda gente está feliz por comprar
seus produtos.


No sistema marxista, por outro lado, o corpo governamental
supremo deve primeiro ser convencido do valor de uma ideia
antes que ela possa ser levada adiante. Isso pode ser algo muito
difícil, uma vez que o grupo detentor do comando – ou o ditador
supremo em pessoa – tem o poder de decidir. E se essas pessoas
– por razões de indolência, senilidade, falta de inteligência ou
de instrução – forem incapazes de compreender o significado da
nova ideia, o novo projeto não será executado. Podemos evocar
exemplos da história militar. Napoleão era indubitavelmente
um gênio em questões militares; não obstante, viu-se certa feita
diante de um grave problema. Sua incapacidade para resolvê-lo
culminou na sua derrota e no subsequente exílio na solidão de
Santa Helena. O problema de Napoleão podia-se resumir a uma
pergunta: “Como conquistar a Inglaterra?”. Para fazê-lo, precisava
de uma esquadra capaz de cruzar o canal da Mancha. Houve,
então, pessoas que lhe garantiram conhecer um meio seguro de
levar a cabo aquela travessia; estas pessoas, numa época de embarcações
a vela, traziam a nova ideia de barcos movidos a vapor.


Mas Napoleão não compreendeu sua proposta.
Depois, houve o famoso Generalstab da Alemanha. Antes da
Primeira Guerra Mundial, o estado-maior alemão era universalmente
considerado insuperável em ciência militar. Reputação análoga
tinha o estado-maior do general Foch, na França. Mas nem os
alemães nem os franceses – que, sob o comando do general Foch,
derrotaram posteriormente os alemães – perceberam a importância
da aviação para fins militares. O estado-maior alemão declarava: “A
aviação é um mero divertimento; voar é bom para os desocupados.
Do ponto de vista militar, só zepelins têm importância”. E os franceses
eram da mesma opinião.


Mais tarde, no intervalo entre as duas Guerras Mundiais, nos
Estados Unidos, um general se convenceu de que a aviação seria de
extrema importância na guerra que se aproximava. Mas todos os
peritos do país pensavam o contrário. Ele não conseguiu convencêlos.
Sempre que tentamos convencer um grupo de pessoas que não
depende diretamente da solução de um problema, o fracasso é certo.
Isso se aplica também aos problemas não econômicos.


Muitos pintores, poetas, escritores e compositores já se queixaram
de que o público não reconhecia sua obra, o que os obrigava a
permanecerem na pobreza. Não há dúvida de que o público pode
ter julgado mal; mas, quando promulgam que “o governo deve
subsidiar os grandes artistas, pintores e escritores”, esses artistas
estão completamente errados. A quem deveria o governo confiar
a tarefa de decidir se determinado estreante é ou não, de fato, um
grande pintor? Teria de se valer da apreciação dos críticos e dos
professores de história da arte, que, sempre voltados para o passado,
até hoje deram raras mostras de talento no que tange à descoberta
de novos gênios. Essa é a grande diferença entre um sistema
de “planejamento” e um sistema em que é dado a cada um planejar
e agir por conta própria.


É verdade, obviamente, que grandes pintores e grandes escritores
suportaram, muitas vezes, situações de extrema penúria. Podem
ter tido êxito em sua arte, mas nem sempre em ganhar dinheiro.
Van Gogh foi por certo um grande pintor. Teve de sofrer agruras
insuportáveis e acabou por se suicidar, aos 37 anos de idade. Em
toda a sua existência, vendeu apenas uma tela, comprada por um
primo. Afora essa única venda, viveu do dinheiro do irmão, que,
apesar de não ser artista nem pintor, compreendia as necessidades
de um pintor. Hoje, não se compra um Van Gogh por menos de cem
ou duzentos mil dólares.


No sistema socialista, o destino de Van Gogh poderia ter sido
diverso. Algum funcionário do governo teria perguntado a alguns
pintores famosos (a quem Van Gogh seguramente nem sequer teria
considerado artistas) se aquele jovem, um tanto louco, ou completamente
louco, era de fato um pintor que valesse a pena subsidiar.
E com toda certeza eles teriam respondido: “Não, não é um pintor;
não é um artista; não passa de uma criatura que desperdiça tinta”, e
o teriam enviado a trabalhar numa indústria de laticínios, ou para
um hospício. Todo esse entusiasmo pelo socialismo manifestado
pelas novas gerações de pintores, poetas, músicos, jornalistas, atores,
baseia-se, portanto, numa ilusão.


Refiro-me a isso porque esses grupos estão entre os mais fanáticos
defensores da concepção socialista. Quando se trata de escolher
entre o socialismo e o capitalismo como sistema econômico,
o problema é um tanto diferente. Os teóricos do socialismo
jamais suspeitaram que a indústria moderna – juntamente com
todos os processos do moderno mundo dos negócios – se basearia
no cálculo. Os engenheiros não são, de maneira alguma, os únicos
a planejarem com base em cálculos; também os empresários
são obrigados a fazê-lo. E os cálculos do homem de negócios se
baseiam todos no fato de que, na economia de mercado, os preços
em dinheiro dos bens não só informam o consumidor, como
fornecem ao negociante informações de importância vital sobre
os fatores de produção, porquanto o mercado tem por função primordial
determinar não só o custo da última parte do processo de
produção, mas também o dos passos intermediários. O sistema
de mercado é indissociável do fato de que há uma divisão mentalmente
calculada do trabalho entre os vários empresários que
disputam entre si os fatores de produção – as matérias-primas, as
máquinas, os instrumentos – e o fator humano de produção, ou
seja, os salários pagos à mão-de-obra. Esse tipo de cálculo que
o empresário realiza não pode ser feito se ele não tem os preços
fornecidos pelo mercado.


No instante mesmo em que se abolir o mercado – e é o que
os socialistas gostariam de fazer – ficariam inutilizados todos os
cômputos e cálculos feitos pelos engenheiros e tecnólogos. Os
tecnólogos podem continuar fornecendo grande número de pro-
jetos que, do ponto de vista das ciências naturais, podem ser todos
igualmente exequíveis, mas são os cálculos baseados no mercado
– realizados pelo homem de negócios – que são indispensáveis
para se determinar qual desses projetos é o mais vantajoso do
ponto de vista econômico.


O problema de que estou tratando é a questão fundamental do
cálculo econômico capitalista em contraposição ao que se passa no
socialismo. O fato é que o cálculo econômico – e por conseguinte
todo planejamento tecnológico – só é possível quando existem
preços em dinheiro, não só para bens de consumo, como para os
fatores de produção. Isso significa que é preciso haver um mercado
para todas as matérias-primas, todos os artigos semi-acabados,
todos os instrumentos e máquinas, e todos os tipos de trabalho e de
serviço humanos. Quando se descobriu esse fato, os socialistas não
souberam reagir adequadamente. Por 150 anos tinham afirmado:
“Todos os males do mundo advêm da existência de mercados e de
preços de mercado. Queremos abolir o mercado e, com ele, é claro,
a economia de mercado, substituindo-a por um sistema sem preços
e sem mercados”. Queriam abolir o que Marx chamou de “caráter
de mercadoria” das mercadorias e do trabalho.
Confrontados com esse novo problema, os teóricos do socialismo,
sem resposta, acabaram por concluir: “não aboliremos o mercado
por completo; faremos de conta que existe um mercado, como
as crianças, quando brincam de escolinha.” A questão é que, todos
sabem, as crianças quando brincam de escolinha não aprendem coisa
alguma. É só uma brincadeira, uma simulação, e se pode “simular”
muitas coisas. Este é um problema muito difícil e complexo, e
para analisá-lo em toda a sua amplitude seria necessário um pouco
mais de tempo do que o que tenho aqui. Explanei-o em detalhes
em meus escritos. Em seis palestras, não posso empreender uma
análise de todos os seus aspectos. Assim sendo, quero sugerir-lhes,
caso estejam interessados no problema básico de impossibilidade
do cálculo e do planejamento no socialismo, a leitura de meu livro
Ação Humana, encontrável em espanhol em excelente tradução.


Mas leiam também outros livros, como o do economista norueguês
Trygue Hoff, que escreveu sobre o cálculo econômico. E,
se não quiserem ser unilaterais, recomendo a leitura do livro socialista
mais respeitado sobre o assunto, da autoria do eminente
economista polonês Oscar Lange, que foi por algum tempo professor
numa universidade americana, tornou-se depois embaixador
da Polônia, voltando, posteriormente, para o seu país. Provavelmente
me perguntarão: “E a Rússia? Como enfrentam os russos
esse problema?” Nesse caso, a questão muda de figura. Os russos
gerem seu sistema socialista no âmbito de um mundo em que
existem preços para todos os fatores de produção, para todas as
matérias-primas, para tudo. Por conseguinte, podem utilizar, em
seu planejamento, os preços do mercado mundial. E, visto que
há certas diferenças entre as condições reinantes na Rússia e as
reinantes nos Estados Unidos, frequentemente o resultado é que,
para os russos, parece justificável e aconselhável – de seu ponto
de vista econômico – algo que, para os americanos, absolutamente
não se justificaria economicamente.


A “experiência soviética” – ou “experimento”, como foi chamada
– não prova coisa alguma. Nada revela sobre o problema
fundamental do socialismo, o problema do cálculo. Mas teríamos
razões para caracterizá-la como “experiência”? Não creio que, no
campo da ação humana e da economia, possamos ter algo que se
assemelhe a um experimento científico. Não se pode fazer experimentos
de laboratório no campo da ação humana, porque um experimento
científico requer a réplica de um mesmo procedimento
sob diversas condições, ou a manutenção das mesmas condições
acompanhada da criação de talvez um único fator. Por exemplo, se
injetarmos num animal canceroso um medicamento experimental,
o resultado pode ser o desaparecimento do câncer. Poderemos
testar isso com vários animais da mesma raça, portadores da mesma
doença. Se tratarmos parte deles com o novo método e não
tratarmos outros, poderemos comparar os resultados. Ora, nada
disso é viável no campo da ação humana. Não há experimentos de
laboratório nesse plano.
A chamada “experiência” soviética mostra tão somente que o padrão
de vida na Rússia Soviética é incomparavelmente inferior ao
padrão alcançado pelo país mundialmente reputado o paradigma do
capitalismo: os Estados Unidos.


Se dissermos isto a um socialista, ele certamente contestará: “As
coisas na Rússia estão correndo maravilhosamente bem.” E nós responderemos:
“Podem estar maravilhosas, mas o padrão de vida é,
em média, muito baixo.” Então ele retrucará: “Sim, mas lembre o
quanto os russos sofreram com os czares, e a terrível guerra que
tivemos de enfrentar.”
Não quero discutir se esta é ou não uma explicação correta, mas
quando se nega que as condições tenham sido as mesmas, nega-se ao
mesmo tempo que tenha havido uma experiência. O que se deveria
afirmar – e seria muito mais correto – é: “O socialismo na Rússia
não ocasionou, em média, uma melhoria das condições do homem
comparável à melhoria de condições verificada, no mesmo período,
nos Estados Unidos.”
Nos Estados Unidos, quase toda semana tem-se notícia de
um novo invento, de um aperfeiçoamento. Muitos aperfeiçoamentos
foram gerados no mundo empresarial, porque milhares e
milhares de industriais estão empenhados, noite e dia, em descobrir
algum novo produto que satisfaça o consumidor, ou seja de
produção menos dispendiosa, ou seja melhor e menos oneroso
que os produtos já existentes. Não é o altruísmo que os move;
é seu desejo de ganhar dinheiro. E o efeito foi que o padrão de
vida se elevou, nos Estados Unidos, a níveis quase miraculosos
quando confrontados às condições reinantes há cinquenta ou
cem anos atrás. Mas na Rússia Soviética, onde esse sistema não
vigora, não se verifica um desenvolvimento comparável. Assim,
os que nos recomendam a adoção do sistema soviético estão inteiramente
equivocados.


Há mais uma coisa a ser mencionada. O consumidor americano,
o indivíduo, é tanto um comprador como um patrão. Ao
sair de uma loja nos Estados Unidos, é comum vermos um cartaz
com os seguintes dizeres: “Gratos pela preferência. Volte sempre”.
Mas ao entrarmos numa loja de um país totalitário – seja a
Rússia de hoje, seja a Alemanha de Hitler –, o gerente nos dirá:
“Agradeça ao grande líder, que lhe está proporcionando isso.”
Nos países socialistas, ao invés de ser o vendedor, é o comprador
que deve ficar agradecido. Não é o cidadão quem manda; quem
manda é o Comitê Central, o Gabinete Central. Estes comitês, os
líderes, os ditadores, são supremos; ao povo cabe simplesmente
obedecer-lhes.
 

Flango Chines

Bam-bam-bam
Mensagens
1.387
Reações
2.494
Pontos
293
Diz uma frase famosa, muito citada: “O melhor governo é o que

menos governa”. Esta não me parece uma caracterização adequada

das funções de um bom governo. Compete a ele fazer todas as coisas

para as quais ele é necessário e para as quais foi instituído. Tem

o dever de proteger as pessoas dentro do país contra as investidas

violentas e fraudulentas de bandidos, bem como de defender o país

contra inimigos externos. São estas as funções do governo num

sistema livre, no sistema da economia de mercado.



No socialismo, obviamente, o governo é totalitário, nada escapando

à sua esfera e sua jurisdição. Mas na economia de mercado, a principal

incumbência do governo é proteger o funcionamento harmônico

desta economia contra a fraude ou a violência originadas dentro ou

fora do país. Os que discordam desta definição das funções do governo

poderão dizer: “Este homem abomina o governo”. Nada poderia

estar mais longe da verdade. Se digo que a gasolina é um líquido de

grande serventia, útil para muitos propósitos, mas que, não obstante,

eu não a beberia, por não me parecer esse o uso próprio para o produto,

não me converto por isso num inimigo da gasolina, nem se poderia

dizer que odeio a gasolina. Digo apenas que ela é muito útil para determinados

fins, mas inadequada para outros. Se digo que é dever do

governo prender assassinos e demais criminosos, mas que não é seu

dever abrir estradas ou gastar dinheiro em inutilidades, não quer dizer

que eu odeie o governo apenas por afirmar que ele está qualificado

para fazer determinadas coisas, mas não o está para outras.



Já se disse que, nas condições atuais, não temos mais uma economia

de mercado livre. O que temos nas condições presentes é algo

a que se dá o nome de “economia mista”. E como provas da efetividade

dessa nossa “economia mista”, apontam-se as muitas empresas

de que o governo é proprietário e gestor. A economia é mista,

diz-se, porque, em muitos países, determinadas instituições – como

as companhias de telefone e telégrafo, as estradas de ferro – são de

posse do governo e administradas por ele. Não há dúvida de que

algumas dessas instituições e empresas são geridas pelo governo.

Mas esse fato não é suficiente para alterar o caráter do nosso sistema

econômico. Nem sequer significa que se tenha instalado um

“pequeno socialismo” no âmago do que seria – não fosse a intrusão

dessas empresas de gestão governamental – a economia de mercado

livre e não socialista. Isto porque o governo, ao dirigir essas empresas,

está subordinado à supremacia do mercado, o que significa que

está subordinado à supremacia dos consumidores.



Ao administrar, digamos, o correio ou as estradas de ferro, ele é

obrigado a contratar pessoal para trabalhar nessas empresas. Precisa

também comprar as matérias-primas e os demais produtos

necessários à operação das mesmas. E, por outro lado, o governo

“vende” esses serviços e mercadorias para o público. Todavia, embora

administre essas instituições utilizando os métodos do sistema

econômico livre, o resultado, via de regra, é um déficit. O governo,

contudo, tem condições de financiar esse déficit – pelo menos é esta

a firme convicção não só dos seus integrantes como também dos que

se ligam ao partido no poder.



A situação do indivíduo é bem diversa. Sua capacidade de gerir

um empreendimento deficitário é muito restrita. Se o déficit não

for logo eliminado, e se a empresa não se tomar lucrativa (ou pelo

menos dar mostras de que não está incorrendo em déficits ou prejuízos

adicionais), o indivíduo vai à falência e a empresa acaba. Já

o governo goza de condições diferentes. Pode ir em frente com um

déficit, porque tem o poder de impor tributos à população. E se os

contribuintes se dispuserem a pagar impostos mais elevados para

permitir ao governo administrar uma empresa deficitária – isto é,

administrar com menos eficiência do que o faria uma instituição

privada –, ou seja, se o público tolerar esse prejuízo, então obviamente

a empresa se manterá em atividade. Nos últimos anos,

na maioria dos países, procedeu-se à estatização de um número

crescente de instituições e empresas, a tal ponto que os déficits

cresceram muito além do montante possível de ser arrecadado dos

cidadãos através de impostos. O que acontece nesse caso não é o

tema da palestra de hoje. A consequência é a inflação, assunto que

devo abordar amanhã. Mencionei isso apenas porque a economia

mista não deve ser confundida com o problema do intervencionismo,

sobre o qual quero falar esta noite.



Que é o intervencionismo? O intervencionismo significa a nãorestrição,

por parte do governo, de sua atividade, em relação à preservação

da ordem, ou – como se costumava dizer cem anos atrás

– em relação à “produção da segurança”. O intervencionismo revela

um governo desejoso de fazer mais. Desejoso de interferir nos fenômenos

de mercado. Alguém que discorde, afirmando que o governo

não deveria intervir nos negócios, poderá ouvir, com muita

frequência, a seguinte resposta: “Mas o governo sempre interfere,

necessariamente. Se há policiais nas ruas, o governo está interferindo.

Interfere quando um assaltante rouba uma loja ou quando

evita que alguém furte um automóvel”. Mas quando falamos de

intervencionismo, e definimos o significado do termo, referimo-nos

à interferência governamental no mercado. (Que o governo e a polícia

se encarreguem de proteger os cidadãos, e entre eles os homens

de negócio e, evidentemente, seus empregados, contra ataques de

bandidos nacionais ou do exterior, é efetivamente uma expectativa

normal e necessária, algo a se esperar de qualquer governo. Essa

proteção não constitui uma intervenção, pois a única função legítima

do governo é, precisamente, produzir segurança.) Quando falamos

de intervencionismo, referimo-nos ao desejo que experimenta

o governo de fazer mais que impedir assaltos e fraudes. O intervencionismo

significa que o governo não somente fracassa em proteger

o funcionamento harmonioso da economia de mercado, como

também interfere em vários fenômenos de mercado: interfere nos

preços, nos padrões salariais, nas taxas de juro e de lucro.



O governo quer interferir com a finalidade de obrigar os homens

de negócio a conduzir suas atividades de maneira diversa

da que escolheriam caso tivessem de obedecer apenas aos consu-

midores. Assim, todas as medidas de intervencionismo governamental

têm por objetivo restringir a supremacia do consumidor.

O governo quer arrogar a si mesmo o poder – ou pelo menos

parte do poder – que, na economia de mercado livre, pertence aos

consumidores. Consideremos um exemplo de intervencionismo

bastante conhecido em muitos países e experimentado, vezes

sem conta, por inúmeros governos, especialmente em tempos de

inflação. Refiro-me ao controle de preços. Em geral, os governos

recorrem ao controle de preços depois de terem inflacionado a

oferta de moeda e de a população ter começado a se queixar do

decorrente aumento dos preços. Há muitos e famosos exemplos

históricos do fracasso de métodos de controle dos preços, mas

mencionarei apenas dois, porque em ambos os governos foram,

de fato, extremamente enérgicos ao impor, ou tentar impor, seus

controles de preço.



O primeiro exemplo famoso é o caso do imperador romano

Diocleciano, notório como o último imperador romano a perseguir

os cristãos. Na segunda metade do século III, os imperadores

romanos dispunham de um único método financeiro: desvalorizar

a moeda corrente por meio de sua adulteração. Nessa

época primitiva, anterior à invenção da máquina impressora, até

a inflação era, por assim dizer, primitiva. Envolvia o enfraquecimento

do teor da liga metálica com que se cunhavam as moedas,

especialmente as de prata. O governo misturava à prata quantidades

cada vez maiores de cobre, até que a cor das moedas se

alterou e o peso se reduziu consideravelmente. A consequência

dessa adulteração das moedas e do aumento associado da quantidade

de dinheiro em circulação foi uma alta dos preços, seguida

de um decreto destinado a controlá-los. E os imperadores romanos

não primavam pela moderação no fazer cumprir suas leis: a

morte não lhes parecia uma punição demasiado severa para quem

ousasse cobrar preços mais elevados que os estipulados. Conseguiram

impor o controle de preços, mas foram incapazes de

preservar a sociedade. A consequência foi a desintegração do

Império Romano e do sistema da divisão do trabalho.



Quinze séculos mais tarde, a mesma adulteração do dinheiro

teve lugar durante a Revolução Francesa. Mas desta vez uti49

lizou-se um método diferente. A tecnologia para a produção de

dinheiro fora consideravelmente aperfeiçoada. Os franceses já

não precisavam recorrer à adulteração da liga metálica empregada

na cunhagem das moedas: tinham a máquina impressora. E esta

era extremamente eficiente. Mais uma vez, o resultado foi uma

elevação dos preços sem precedentes. Mas na Revolução Francesa

os preços máximos não foram garantidos através do mesmo

método de aplicação da pena capital de que lançara mão o imperador

Diocleciano. Produzira-se um aperfeiçoamento também na

técnica de matar cidadãos. Todos se lembram do famoso doutor

J. I. Guillotin (1738-1814), o inventor da guilhotina. No entanto,

apesar da guilhotina, os franceses também fracassaram com suas

leis de preço máximo. Quando chegou a vez de Robespierre ser

conduzido numa carroça rumo à guilhotina, o povo gritava: “Lá

vai o bandido-mor!”. Se menciono este fato é porque é comum

ouvir: “O que é preciso para dar eficácia e eficiência ao controle

de preços é apenas maior implacabilidade e maior energia”. Ora,

Diocleciano foi indubitavelmente implacável, como também o foi

a Revolução Francesa. Não obstante, as medidas de controle de

preço fracassaram por completo em ambos os casos.



Analisemos agora as razões desse fracasso. O governo ouve as

queixas do povo de que o preço do leite subiu. E o leite é, sem

dúvida, muito importante, sobretudo para a geração em crescimento,

para as crianças. Por conseguinte, estabelece um preço máximo

para esse produto, preço máximo que é inferior ao que seria o preço

potencial de mercado. Então o governo diz: “Estamos certos de que

fizemos tudo o que era preciso para permitir aos pobres a compra de

todo o leite de que necessitam para alimentar os filhos”.



Mas que acontece? Por um lado, o menor preço do leite provoca

o aumento da demanda do produto; pessoas que não tinham meios

de comprá-lo a um preço mais alto, podem agora fazê-lo ao preço

reduzido por decreto oficial. Por outro lado, parte dos produtores

de leite, aqueles que estão produzindo a custos mais elevados – isto

é, os produtores marginais – começam a sofrer prejuízos, visto que o

preço decretado pelo governo é inferior aos custos do produto. Este

é o ponto crucial na economia de mercado. O empresário privado, o

produtor privado, não pode sofrer prejuízo no cômputo final de suas

atividades. E como não pode ter prejuízos com o leite, restringe a

venda deste produto para o mercado. Pode vender algumas de suas

vacas para o matadouro; pode também, em vez de leite, fabricar e

vender derivados do produto, como coalhada, manteiga ou queijo.

A interferência do governo no preço do leite redunda, pois,

em menor quantidade do produto do que a que havia antes, redução

que é concomitante a uma ampliação da demanda. Algumas

pessoas dispostas a pagar o preço decretado pelo governo não

conseguirão comprar leite. Outro efeito é a precipitação de pessoas

ansiosas por chegarem em primeiro lugar às lojas. São obrigadas

a esperar do lado de fora. As longas filas diante das lojas

parecem sempre um fenômeno corriqueiro numa cidade em que

o governo tenha decretado preços máximos para as mercadorias

que lhe pareciam importantes.



Foi o que se passou em todos os lugares onde o preço do leite

foi controlado. Por outro lado, isso foi sempre prognosticado pelos

economistas – obviamente apenas pelos economistas sensatos,

que, aliás, não são muito numerosos. Mas qual é a consequência do

controle governamental de preços? O governo se frustra. Pretendia

aumentar a satisfação dos consumidores de leite, mas na verdade,

descontentou-os. Antes de sua interferência, o leite era caro, mas

era possível comprá-lo. Agora a quantidade disponível é insuficiente.

Com isso, o consumo total se reduz. As crianças passam a tomar

menos leite, e chegam a não mais tomá-lo. A medida a que o governo

recorre em seguida é o racionamento. Mas racionamento significa

tão somente que algumas pessoas são privilegiadas e conseguem

obter leite, enquanto outras ficam sem nenhum. Quem obtém e

quem não obtém é obviamente algo sempre determinado de forma

muito arbitrária. Pode ser estipulado, por exemplo, que crianças

com menos de quatro anos de idade devem tomar leite, e aquelas

com mais de quatro, ou entre quatro e seis, devem receber apenas a

metade da ração a que as menores fazem jus.



Faça o governo o que fizer, permanece o fato de que só há

disponível uma menor quantidade de leite. Consequentemente,

a população está ainda mais insatisfeita que antes. O governo

pergunta, então, aos produtores de leite (porque não tem imaginação

suficiente para descobrir por si mesmo): “Por que não

produzem a mesma quantidade que antes?”. Obtém a resposta:

“É impossível, uma vez que os custos de produção são superiores

ao preço máximo fixado pelo governo”. As autoridades se

põem em seguida a estudar os custos dos vários fatores de produção,

vindo a descobrir que um deles é a ração. “Pois bem”,

diz o governo, “o mesmo controle que impusemos ao leite, vamos

aplicar agora à ração. Determinaremos um preço máximo

para ela e os produtores de leite poderão alimentar seu gado

a preços mais baixos, com menor dispêndio. Com isto, tudo

se resolverá: os produtores de leite terão condições de produzir

em maior quantidade e venderão mais.” Que acontece nesse

caso? Repete-se, com a ração, a mesma história acontecida com

o leite, e, como é fácil depreender, pelas mesmíssimas razões. A

produção de ração diminui e as autoridades se veem novamente

diante de um dilema.



Nessas circunstâncias, providenciam novos interlocutores, no

intuito de descobrir o que há de errado com a produção de ração.

E recebem dos produtores de ração uma explicação idêntica à

que lhes fora fornecida pelos produtores de leite. De sorte que

o governo é compelido a dar um outro passo, já que não quer

abrir mão do princípio do controle de preços. Determina preços

máximos para os bens de produção necessários à produção de

ração. E a mesma história, mais uma vez, se desenrola. Assim,

o governo começa a controlar não mais apenas o leite, mas também

os ovos, a carne e outros artigos essenciais. E todas as vezes

alcança o mesmo resultado, por toda parte a consequência é a

mesma. A partir do momento em que fixa preços máximos para

bens de consumo, vê-se obrigado a recuar no sentido dos bens de

produção, e a limitar os preços dos bens de produção necessários

à elaboração daqueles bens de consumo com preços tabelados. E

assim o governo, que começara com o controle de alguns poucos

fatores, recua cada vez mais em direção à base do processo produtivo,

fixando preços máximos para todas as modalidades de bens

de produção, incluindo-se ai, evidentemente, o preço da mão-deobra,

pois, sem controle salarial, o “controle de custos” efetuado

pelo governo seria um contra-senso.



Ademais, o governo não tem como limitar sua interferência no

mercado apenas ao que se lhe afigura como bem de primeira necessidade:

leite, manteiga, ovos e carne. Precisa necessariamente

incluir os bens de luxo, porquanto, se não limitasse seus preços, o

capital e a mão-de-obra abandonariam a produção dos artigos de

primeira necessidade e acorreriam à produção dessas mercadorias

que o governo reputa supérfluas. Portanto, a interferência isolada

no preço de um ou outro bem de consumo sempre gera efeitos – e

é fundamental compreendê-lo – ainda menos satisfatórios que as

condições que prevaleciam anteriormente: antes da interferência, o

leite e os ovos são caros; depois, começam a sumir do mercado.

O governo considerava esses artigos tão importantes que interferiu;

queria torná-los mais abundantes, ampliar sua oferta. O resultado

foi o contrário: a interferência isolada deu origem a uma situação

que – do ponto de vista do governo – é ainda mais indesejável que

a anterior, que se pretendia alterar. E o governo acabará por chegar

a um ponto em que todos os preços, padrões salariais, taxas de juro,

em suma, tudo o que compõe o conjunto do sistema econômico, é

determinado por ele. E isso, obviamente, é socialismo.



O que lhes apresentei aqui, nesta explanação esquemática e teórica,

foi precisamente o que ocorreu nos países que tentaram impor

preços máximos, países cujos governos foram teimosos o bastante

para avançarem passo a passo até a própria derrocada. Foi o que

aconteceu, na Primeira Guerra Mundial, com a Alemanha e a Inglaterra.

Analisemos a situação que existia nos dois países. Ambos

experimentavam a inflação. Como os preços subiam, os dois

governos impuseram controles sobre eles. Tendo começado com

apenas alguns preços, nada mais que leite e ovos, foram forçados a

avançar cada vez mais. Mais a guerra se prolongava, maior se tornava

a inflação. E após três anos de guerra, os alemães – de maneira

sistemática, como é de seu estilo – elaboraram um grande plano.

Chamaram-no Plano Hindenburg (naquela época, tudo na Alemanha

que parecia bom ao governo era batizado de Hindenburg).

O Plano Hindenburg estabelecia o controle governamental sobre

todo o sistema econômico do país: preços, salários, lucros..., tudo.



E a burocracia tratou imediatamente de pôr em prática este plano.

Mas, antes de concluí-lo, veio a derrocada: o Império Alemão desintegrou-

se, o aparelho burocrático esfacelou-se, a revolução produziu

seus efeitos terríveis – tudo chegou ao fim. Os fatos, na Inglaterra,

inicialmente ocorreram dessa mesma maneira, mas, depois de algum

tempo, na primavera de 1917, os Estados Unidos entraram na guerra

e abasteceram os ingleses com quantidades suficientes de tudo.

Dessa forma, o caminho do socialismo, o caminho da servidão, foi

obstado. Antes da ascensão de Hitler ao poder, o controle de preços

foi mais uma vez introduzido na Alemanha pelo chanceler Brüning,

pelas razões de costume. O próprio Hitler aplicou-o antes mesmo do

início da guerra: na Alemanha de Hitler não havia empresa privada

ou iniciativa privada. Na Alemanha de Hitler havia um sistema de

socialismo que só diferia do sistema russo na medida em que ainda

eram mantidos a terminologia e os rótulos do sistema de livre economia.

Ainda existiam “empresas privadas”, como eram denominadas. Mas

o proprietário já não era um empresário; chamavam-no “gerente” ou

“chefe” de negócios (Betriebsführer).



Todo o país foi organizado numa hierarquia de führers; havia o

Führer supremo, obviamente Hitler, e em seguida uma longa sucessão

de führers, em ordem decrescente, até os führers do último escalão. E,

assim, o dirigente de uma empresa era o Betriebsführer. O conjunto de

seus empregados, os trabalhadores da empresa, era chamado por uma

palavra que, na Idade Média, designara o séquito de um senhor feudal:

o Gefolgschaft. E toda essa gente tinha de obedecer às ordens expedidas

por uma instituição que ostentava o nome assustadoramente

longo de Reichsführerwirtschaftsministerium (Ministério da Economia

do Império), a cuja frente estava o conhecido gorducho Goering, enfeitado

de joias e medalhas. E era desse corpo de ministros de nome

tão comprido que emanavam todas as ordens para todas as empresas:

o que produzir, em que quantidade, onde comprar matérias-primas

e quanto pagar por elas, a quem vender os produtos e a que preço.

Os trabalhadores eram designados para determinadas fábricas e recebiam

salários decretados pelo governo. Todo o sistema econômico era

agora regulado, em seus mínimos detalhes, pelo governo.

O Betriebsführer não tinha o direito de se apossar dos lucros; recebia

o equivalente a um salário e, se quisesse receber uma soma

maior, diria, por exemplo: “Estou muito doente, preciso me submeter

a uma operação imediatamente, e isso custará quinhentos

marcos”. Nesse caso, era obrigado a consultar o führers do distrito

(o Gauführer ou Gauleiter), que o autorizaria – ou não – a fazer uma

retirada superior ao salário que lhe era destinado. Os preços já não

eram preços, os salários já não eram salários – não passavam de expressões

quantitativas num sistema de socialismo.



Permitam-me agora contar-lhes como esse sistema entrou em

colapso. Um dia, após anos de combate, os exércitos estrangeiros

chegaram à Alemanha. Procuraram conservar esse sistema econômico

de direção governamental; mas para isso teria sido necessária

a brutalidade de Hitler. Sem ela, o sistema não funcionou. Enquanto

isso acontecia na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial,

a Grã-Bretanha fazia exatamente a mesma coisa: a partir do controle

do preço de algumas mercadorias, o governo britânico começou,

passo a passo (assim como Hitler procedera em tempo de paz, antes

mesmo de deflagrada a guerra), a controlar cada vez mais a economia,

até que, por ocasião do término da guerra, tinham chegado a

algo muito próximo do puro socialismo.



A Grã-Bretanha não foi conduzida ao socialismo pelo governo

do Partido Trabalhista, estabelecido em 1945. Ela se tornou socialista

durante a guerra, ao longo do governo que tinha à frente, como

primeiro-ministro, Sir Winston Churchill. O governo trabalhista

simplesmente manteve o sistema de socialismo já introduzido pelo

governo de Sir Winston Churchill. E isso a despeito da grande resistência

do povo. As estatizações efetuadas na Grã-Bretanha não tiveram

grande significado. A estatização do Banco da Inglaterra foi

inócua visto que essa instituição financeira já estava sob completo

controle governamental. E o mesmo se deu com a estatização das estradas

de ferro e da indústria do aço. O “socialismo de guerra”, como

era chamado – denotando o sistema de intervencionismo implantando

passo a passo – já estatizara praticamente todo o sistema.

A diferença entre o sistema alemão e o britânico não foi significativa,

porquanto seus gestores tinham sido designados pelo

governo e, em ambos os casos, eram obrigados a cumprir as or55

dens do governo em todos os detalhes. Como eu disse antes, o

sistema dos nazistas alemães conservou os rótulos e termos da

economia capitalista de livre mercado. Mas essas expressões adquiriram

um significado muito diverso: já não passavam agora

de decretos governamentais.



Isto também se aplica ao sistema britânico. Quando o Partido

Conservador foi reconduzido ao poder, alguns desses controles foram

suprimidos. Temos hoje na Grã-Bretanha tentativas, por um lado, de

conservar os controles e, por outro, de aboli-los (mas não se deve esquecer

que as condições existentes na Inglaterra são muito diferentes

das que prevalecem na Rússia). O mesmo se passou em outros países

que, por dependerem da importação de alimentos e de matériasprimas,

foram obrigados a exportar bens manufaturados. Em países

profundamente dependente do comércio de exportações, um sistema

de controle governamental simplesmente não funciona.

Asim, a subsistência de alguma liberdade econômica (e ainda

existe uma substancial liberdade em países como a Noruega, a

Inglaterra, a Suécia) é fruto da necessidade de preservar o comércio

de exportação. Aliás, se escolhi anteriormente o exemplo do leite,

não foi por ter alguma predileção especial pelo produto, mas

porque praticamente todos os governos – ou sua grande maioria

– regulamentaram, nas últimas décadas, os preços do leite, dos

ovos ou da manteiga.



Quero lembrar, em poucas palavras, um outro exemplo, o do controle

do aluguel. Uma das consequências do controle dos aluguéis

por parte do governo é que pessoas que teriam – por causa de alterações

na situação familiar – de mudar de apartamentos maiores

para outros menores, já não o fazem. Considere-se, por exemplo,

um casal cujos filhos saíram de casa em outras cidades. Casais como

este tendiam a se mudar, passando a habitar apartamentos menores

e mais baratos. Com a imposição do controle sobre os aluguéis, essa

necessidade desaparece.



Em Viena, no começo da década de 20, o controle do aluguel

estava firmemente estabelecido. Assim, a quantia que um locador

recebia por um apartamento de dimensões médias, submetido a

controle de aluguel, não excedia o dobro do preço de uma passagem

de bonde – sistema de transporte pertencente à municipalidade.

Pode-se imaginar que não se tinha incentivo algum para mudar

de apartamento. E, por outro lado, não se construíam novas

casas. Condições semelhantes prevaleceram nos Estados Unidos

após a Segunda Guerra Mundial e perduram até hoje em muitas

cidades americanas. Uma das principais razões por que muitas

cidades nos Estados Unidos se encontram em enorme dificuldade

financeira reside na adoção do controle sobre os aluguéis, com a

decorrente escassez de moradias. Ela se produziu pelas mesmas

razões que acarretaram a escassez do leite quando seu preço foi

controlado. Isto significa: sempre que se interfere no mercado, o governo

é progressivamente impelido ao socialismo.



E esta é a resposta aos que dizem: “Não somos socialistas, não

queremos que o governo controle tudo. Mas por que não poderia

ele interferir um pouco no mercado? Por que não poderia abolir

determinadas coisas que nos desagradam?” Essas pessoas falam de

uma política de “meio-termo”. O que não se percebe é que a interferência

isolada, isto é, a interferência num único pequeno detalhe do

sistema econômico, produz uma situação que ao próprio governo – e

àqueles que estão reivindicando a sua interferência – parecerá pior

que aquelas condições que se pretendia abolir: os que propunham o

controle dos aluguéis ficam irritados ao se darem conta da escassez

de apartamentos e moradias em geral.



Mas essa escassez de moradias foi gerada precisamente pela interferência

do governo, pela fixação dos aluguéis num padrão inferior

ao que se iria pagar num sistema de livre mercado. A ideia de que

existe, entre o socialismo e o capitalismo, um terceiro sistema – como o

chamam seus defensores –, o qual, sendo equidistante do socialismo e

do capitalismo, conservaria as vantagens e evitaria as desvantagens de

um e de outro, é puro contra-senso. Os que acreditam na existência

possível desse sistema mítico podem chegar a ser realmente líricos

quando tecem loas ao intervencionismo. Só o que se pode dizer é que

estão equivocados. A interferência governamental que exaltam dá

lugar a situações que desagradariam a eles mesmos.



Uma das questões que abordarei mais tarde é a do protecionismo:

o governo procura isolar o mercado interno do mercado mundial.

Introduz tarifas que elevam o preço interno da mercadoria acima

do preço em que é cotada no mercado mundial, o que possibilita

aos produtores nacionais a formação de cartéis. Logo em seguida, o

mesmo governo investe contra os cartéis, declarando: “Nestas condições,

impõe-se uma legislação anticartel.”



Foi precisamente esse o procedimento da maioria dos governos

europeus. Nos Estados Unidos, somam-se a isso razões adicionais

para a legislação antitruste e para a campanha governamental contra

o fantasma do monopólio. É absurdo ver o governo – que gera,

por meio do próprio intervencionismo, as condições que possibilitam

a emergência de cartéis nacionais – voltar-se contra o meio

empresarial, dizendo: “Há cartéis, portanto é necessária a interferência

do governo nos negócios”. Seria muito mais simples evitar

a formação de cartéis sustando a interferência governamental no

mercado – interferência esta que vem a gerar as possibilidades de

formação desses cartéis. A ideia da interferência governamental

como “solução” para problemas econômicos dá margem, em todos

os países, a circunstâncias no mínimo extremamente insatisfatórias

e, com frequência, caóticas. Se não for detida a tempo, o governo

acabará por implantar o socialismo.



Não obstante, a interferência do governo nos negócios continua

a gozar de grande aceitação. Mal acontece no mundo algo que

desagrada às pessoas é comum ouvir-se o comentário: “O governo

precisa fazer alguma coisa a respeito. Para que temos governo? O

governo deveria fazer isso”. Temos aqui um vestígio característico

do modo de pensar de épocas passadas, de eras anteriores à liberdade

moderna, ao governo constitucional moderno, anteriores ao

governo representativo ou ao republicanismo moderno.

Ao longo de séculos, manteve-se a doutrina – afirmada e acatada

por todos – de que um rei, um rei ungido, era o mensageiro de

Deus; era mais sábio que os seus súditos e possuía poderes sobrenaturais.

Até princípios do século XIX, pessoas que sofriam certas

doenças esperavam ser curadas pelo simples toque da mão do rei.



Os médicos costumavam ser mais eficazes: mesmo assim, permitiam

aos seus pacientes experimentar o rei. Essa doutrina da superioridade

de um governo paternal e dos poderes sobre-humanos dos

reis hereditários extinguiu-se gradativamente – ou, pelo menos, assim

imaginávamos. Mas ela ressurgiu. O professor alemão Werner

Sombart (a quem conheci muito bem), homem de renome mundial,

foi doutor honoris causa de várias universidades e membro honorário

da American Economic Association. Esse professor escreveu

um livro que tem tradução para o inglês – publicada pela Princeton

University Press –, para o francês e provavelmente também para

o espanhol. Ou melhor, espero que tenha, para que todos possam

conferir o que vou dizer. Nesse livro, publicado não nas “trevas” da

Idade Média, mas no nosso século, esse professor de economia diz

simplesmente o seguinte: “O Führer, nosso Führer” – refere-se, é

claro, a Hitler – “recebe instruções diretamente de Deus, o Führer

do universo”.



Já me referi antes a essa hierarquia de führers e nela situei Hitler

como o “Führer Supremo”. Mas, ao que nos informa Werner Sombart,

há um Führer em posição ainda mais elevada. Deus, o Führer

do universo. E Deus, escreve ele, transmite suas instruções diretamente

a Hitler. Naturalmente, o professor Sombart não deixou

de acrescentar, com muita modéstia: “não sabemos como Deus se

comunica com o Führer. Mas o fato não pode ser negado.”

Ora, se ficamos sabendo que semelhante livro pôde ser publicado

em alemão – a língua de um país outrora exaltado como “a nação dos

filósofos e dos poetas” –, e o vemos traduzido em inglês e francês, já

não nos espantará que mesmo um pequeno burocrata venha, um dia, a

se considerar mais sábio e melhor que os demais cidadãos, e deseje interferir

em tudo, ainda que ele não passe de um reles burocratazinho,

em nada comparável ao famoso professor Werner Sombart, membro

honorário de tudo quanto é entidade. Haveria um remédio contra

tudo isso? Eu diria que sim. Há um remédio. E esse remédio é a força

dos cidadãos: cabe-lhes impedir a implantação de um regime tão autoritário

que se arrogue uma sabedoria superior à do cidadão comum.

Esta é a diferença fundamental entre a liberdade e a servidão. As nações

socialistas atribuíram a si mesmas a designação de democracia.



Os russos chamam seu sistema de democracia popular; provavelmente

sustentam que o povo está representado na pessoa do ditador.

Penso que aqui, na Argentina, um ditador recebeu a resposta que

merecia. Esperamos que outros ditadores, em outras nações, recebam

resposta semelhante.



Se a oferta de caviar fosse tão abundante quanto a de batatas, o

preço do caviar – isto é, a relação de troca entre caviar e dinheiro, ou

entre caviar e outras mercadorias – se alteraria consideravelmente.

Nesse caso, seria possível adquiri-lo a um preço muito menor que

o exigido hoje. Da mesma maneira, se a quantidade de dinheiro

aumenta, o poder de compra da unidade monetária diminui, e a

quantidade de bens que pode ser adquirida com uma unidade desse

dinheiro também se reduz.



Quando, no século XVI, as reservas de ouro e prata da América

foram descobertas e exploradas, enormes quantidades desses metais

preciosos foram transportadas para a Europa. A consequência

desse aumento da quantidade de moeda foi uma tendência geral à

elevação dos preços. Do mesmo modo, quando, em nossos dias, um

governo aumenta a quantidade de papel-moeda, a consequência é

a queda progressiva do poder de compra da unidade monetária e a

correspondente elevação dos preços. A isso se chama de inflação.

Infelizmente, nos Estados Unidos, bem como em outros países, alguns

preferem ver a causa da inflação não no aumento da quantidade

de dinheiro, mas na elevação dos preços.



Entretanto, nunca se apresentou qualquer contestação séria à

interpretação econômica da relação entre os preços e a quantidade

de dinheiro, ou da relação de troca entre a moeda e outros bens,

mercadorias e serviços. Nas condições tecnológicas atuais, nada é

mais fácil que fabricar pedaços de papel e imprimir sobre eles determinados

valores monetários. Nos Estados Unidos, onde todas

as notas têm o mesmo tamanho, imprimir uma nota de mil dólares

62 Ludwig von Mises

não custa mais ao governo que imprimir uma de um dólar. Tratase

exclusivamente de um processo de impressão, a exigir, nos dois

casos, idênticas quantidades de papel e de tinta.



No século XVIII, quando se fizeram as primeiras tentativas

de emitir cédulas bancárias e atribuir-lhes a qualidade de moeda

corrente – isto é, o direito de serem honradas em transações

de troca do mesmo modo que as moedas de ouro e prata –, os

governos e as nações acreditavam que os banqueiros detinham

algum conhecimento secreto que lhes permitia produzir riqueza

a partir do nada. Quando os governos do século XVIII se viam

em dificuldades financeiras, julgavam ser suficiente, para delas

se livrarem, entregar a um banqueiro engenhoso a condução de

sua administração financeira. Alguns anos antes da Revolução

Francesa, quando a realeza da França atravessava problemas financeiros,

o rei da França procurou um desses banqueiros engenhosos

e nomeou-o para uma função importante. Esse homem

era, sob todos os aspectos, o oposto das pessoas que vinham regendo

a nação até aquele momento. Para começar, não era francês,

era um estrangeiro – um genovês. Em segundo lugar, não

pertencia à aristocracia, era um simples plebeu. E, o que contava

mais ainda na França do século XVIII, não era católico, e sim

protestante. E assim Monsieur Necker, pai da famosa Madame

de Staël, tornou-se o ministro das finanças, e todos esperavam

que resolvesse os problemas financeiros do país. Mas, a despeito

do elevado grau de confiança desfrutado por Monsieur Necker,

os cofres reais permaneceram vazios. O grande erro de Decker

consistiu na tentativa de prestar auxílio financeiro aos colonos

da América em sua guerra de independência contra a Inglaterra

sem elevar os impostos. Aquela era certamente uma maneira errada

de procurar resolver os problemas financeiros da França.

Não há nenhuma maneira secreta para a solução dos problemas

financeiros de um governo: Se deseja fazer algo benéfico –

construir um hospital, por exemplo –, o meio de que o governo

dispõe para arrecadar o dinheiro necessário é cobrar tributos dos

cidadãos e construir o hospital com a receita assim constituída.



Nesse caso, não ocorrerá nenhuma “revolução dos preços”,

porque, quando o governo arrecada dinheiro para a construção

do hospital, os cidadãos – onerados por esse tributo adicional –

são obrigados a reduzir seus gastos. O contribuinte individual

é forçado a reduzir ou o seu consumo, ou os seus investimentos,

ou a sua poupança. Quando se apresenta no mercado como um

comprador, o governo substitui o cidadão: este passa a comprar

menos. Mas isto se dá porque o governo está comprando mais.

Evidentemente, o governo não compra exatamente os mesmos

bens que os cidadãos comprariam; em média, no entanto, não se

verifica nenhuma elevação de preços em decorrência da construção

do hospital pelo governo.



Escolho o exemplo de um hospital precisamente porque é comum

ouvir dizer: “Faz diferença se o governo usa seu dinheiro

para bons ou maus propósitos”. Proponho fazermos de conta que

o governo sempre usa o dinheiro que emitiu para os melhores fins

– fins com que todos concordamos. Acontece que não é o modo

como o dinheiro é gasto, é antes o modo como é obtido pelo governo

que dá lugar a essa consequência que chamamos de inflação,

e que hoje quase ninguém, no mundo todo, considera benéfica.

Por exemplo, o governo poderia, sem fomentar a inflação, usar o

dinheiro arrecadado através de impostos para contratar novos funcionários,

ou para elevar os salários dos que já estão a seu serviço.



Esses funcionários, tendo tido um aumento em seus salários,

passam, então, a poder comprar mais. Quando o governo cobra

impostos dos cidadãos e aplica essa soma no aumento do salário

de seu pessoal, os contribuintes passam a ter menos o que gastar,

mas os funcionários públicos passam a ter mais: os preços em geral

não subirão. Mas, se o governo não busca, para esse fim, receita

proveniente de impostos, se, ao contrário, recorre a dinheiro recém-

impresso, consequentemente, algumas pessoas começam a ter

mais dinheiro, enquanto todas as demais continuam a ter o mesmo

que antes. Assim, as que receberam o dinheiro recém-impresso

vão competir com aquelas que eram compradoras anteriormente.



E uma vez que não há maior número de mercadorias que antes,

mas há mais dinheiro no mercado – e uma vez que há pessoas que

podem agora comprar mais do que ontem – haverá uma demanda

adicional para uma quantidade inalterada de bens. Consequentemente,

os preços tenderão a subir. Isso não pode ser evitado, seja

qual for o uso que se faça do dinheiro recém emitido. Mas há algo

ainda mais importante. Essa tendência de elevação dos preços se

estabelecerá passo a passo, uma vez que não se trata de um movimento

ascendente geral desse tão falado “nível dos preços”. Esta

expressão metafórica nunca deveria ser usada.



Quando se fala de “nível dos preços”, a imagem que as pessoas

formam mentalmente é a de um líquido que sobe ou desce, segundo

o aumento ou a redução de sua quantidade, mas que, como um

líquido num reservatório, eleva-se sempre por igual. Mas, no caso

dos preços, nada há que se assemelhe a “nível”. Os preços não se alteram

na mesma medida e ao mesmo tempo. Há sempre preços que

mudam mais rapidamente, caem ou sobem mais depressa que outros.

E há uma razão para isso. Considerem o caso do funcionário

público que recebeu parte do novo dinheiro acrescentado à oferta

de dinheiro. As pessoas não compram num mesmo dia precisamente

as mesmas mercadorias e nas mesmas quantidades. O dinheiro

suplementar que o governo imprimiu e introduziu no mercado não

é usado na compra de todas as mercadorias e serviços. É usado na

aquisição de certas mercadorias, cujos preços subirão, ao passo que

outras continuarão ainda com os preços de antes da introdução do

novo dinheiro no mercado. De sorte que, quando a inflação começa,

diferentes grupos da população são por ela afetados de diferentes

maneiras. Os grupos que recebem o novo dinheiro em primeiro

lugar ganham uma vantagem temporal.



O governo, quando emite dinheiro para custear uma guerra, tem

de comprar munições. Os primeiros a receber o dinheiro adicional

são, então, as indústrias de munição e os que nelas trabalham. Esses

grupos passam a ocupar uma posição privilegiada. Auferem maiores

lucros e ganham maiores salários: seus negócios prosperam. Por

quê? Porque foram os primeiros a receber o dinheiro adicional. E,

tendo agora mais dinheiro à sua disposição, estão comprando mais.



E compram de outras pessoas, que fabricam e vendem as mercadorias

que lhes interessam. Estas outras pessoas constituem um

segundo grupo. E este segundo grupo considera a inflação muito

benéfica para seus negócios. Por que não? Não é esplêndido vender

mais? E o proprietário de um restaurante situado nas vizinhanças

de uma fábrica de munições, por exemplo, diz: “é realmente maravilhoso!

Os trabalhadores do setor de munições estão com mais

dinheiro; estão frequentando meu estabelecimento como nunca; estão

todos prestigiando meu restaurante; isto me deixa muito feliz”.

Não vê razão alguma para se sentir de outro modo.

A situação é a seguinte: aqueles para quem o dinheiro chega em

primeiro lugar têm sua renda aumentada e podem continuar comprando

muitas mercadorias e serviços a preços que correspondem

ao estado anterior do mercado, à situação vigente às vésperas da inflação.

Encontram-se, portanto, em situação privilegiada. E assim

a inflação se expande, passo a passo, de um grupo para outro da população.

E todos os que têm acesso ao dinheiro adicional na primeira

hora da inflação são beneficiados, uma vez que estão comprando

alguns artigos a preços ainda correspondentes ao estágio prévio da

relação de troca entre dinheiro e mercadorias.



Mas há outros grupos da população para quem esse dinheiro

chega muitíssimo mais tarde. Essas pessoas se veem numa situação

desfavorável. Antes de terem acesso ao dinheiro adicional, são

obrigadas a pagar preços mais altos que os anteriores por algumas

mercadorias que desejam adquirir (ou praticamente todas), ao passo

que sua renda permanece a mesma, ou não aumenta na mesma

proporção dos preços. Considere-se, por exemplo, um país como os

Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial: por um lado,

a inflação desse período favoreceu os trabalhadores das fábricas de

munição, as fábricas de munição e os fabricantes de armamentos;

por outro lado, prejudicou certos grupos da população. E os maiores

prejudicados foram os professores e os religiosos.



Como todos sabem, um sacerdote é pessoa de muita humildade,

que está a serviço de Deus e não deve falar demais em dinheiro.

Analogamente, os professores são pessoas dedicadas, de quem se

espera maior preocupação com a educação dos jovens que com os

próprios salários. Por conseguinte, os professores e os religiosos

estiveram entre os grupos mais penalizados pela inflação, visto que

as várias escolas e igrejas foram as últimas instituições a se darem

conta da necessidade de elevar os salários. Quando os dignitários

eclesiásticos e as associações escolares finalmente chegaram à conclusão

de que era preciso aumentar também os salários dessa gente

dedicada, as perdas que tinham sofrido até então já não podiam ser

reparadas. Por muito tempo, eles tinham sido obrigados a comprar

menos que antes, a reduzir seu consumo de alimentos melhores e

mais caros, a restringir sua compra de roupas – já que os preços

tinham sido reajustados, enquanto sua renda, seus salários, ainda

não tinham sido aumentados (esta situação foi consideravelmente

alterada, ao menos no que diz respeito aos professores).



A cada momento, portanto, são diferentes os grupos da população

que estão sendo diretamente afetados pela inflação. Para

alguns deles, a inflação não é tão má assim, e eles chegam até a defender

seu prolongamento, visto serem os primeiros a dela se beneficiarem.

Veremos na próxima palestra como essa disparidade

de consequências afeta vitalmente a política que conduz à inflação.

Subjacente a todas as modificações produzidas pela inflação, está

o fato de que, além de haver grupos que são por ela favorecidos,

há outros que a exploram diretamente. A palavra “explorar” não

pretende refletir uma censura a essas pessoas, pois só o governo e

ninguém mais pode ser considerado culpado e responsável pelo

estabelecimento da inflação.



Sempre há, sem dúvida, pessoas que percebem o que está ocorrendo

mais cedo que as demais e, então, promovem a inflação. Seus

lucros excepcionais decorrem do fato de que haverá sempre desigualdade

no processo inflacionário. O governo pode considerar

que, como método de arrecadar fundos, a inflação é melhor que a

tributação: esta é sempre impopular e de difícil execução. Em muitas

nações grandes e ricas, os legisladores muitas vezes discutiram,

por meses a fio, várias modalidades de novos impostos, tornados

necessários em decorrência de um aumento de gastos decidido pelo

parlamento. Após discutir inúmeros métodos de angariar dinheiro

por meio da tributação, finalmente chegaram à conclusão de que

talvez o melhor fosse obtê-lo através da inflação.



É evidente que a palavra “inflação” não era pronunciada. Um

político no poder, ao recorrer à inflação, não declara: “Vou adotar a

inflação como método.” Os procedimentos técnicos empregados na

produção da inflação são tão complexos, que o cidadão comum não

percebe onde ela teve início. Uma das maiores inflações da história,

a que teve lugar no Reich alemão após a Primeira Guerra Mundial,

não teve seu pico durante a guerra. Foram os níveis a que chegou no

pós-guerra que ocasionaram a catástrofe. O governo não anunciou:

“Vamos lançar mão da inflação”. Simplesmente tomou dinheiro

emprestado, indiretamente, do banco central. Não lhe competia

perguntar como o banco central reuniria e liberaria aquela soma. E

o banco central simplesmente imprimiu-a.



Hoje, as técnicas de produção da inflação têm como complicadores

a existência da moeda fiduciária. Isso envolve uma outra

técnica, mas o efeito é o mesmo. Com uma penada, o governo cria

papel-moeda sem lastro, aumentando assim o volume de moeda

e de crédito. Basta-lhe emitir a ordem, e lá está o dinheiro sem

lastro. O governo não se aflige diante do fato de que algumas pessoas

sofrerão perdas; a iminente elevação dos preços não o perturba.

Os legisladores proclamam: “Esse sistema é magnífico!”. Mas

esse magnífico sistema tem um defeito básico: dura pouco. Se a

inflação pudesse perdurar indefinidamente, não haveria por que

criticar os governos por promoverem-na, mas o único fato bem estabelecido

acerca desse fenômeno é que, mais cedo ou mais tarde,

ele chega inevitavelmente ao fim.



Em última instância, a inflação se encerra com o colapso do

meio circulante – dando lugar a uma catástrofe, a uma situação

como a ocorrida na Alemanha em 1923. Em 1° de agosto de 1914, o

dólar correspondia a quatro marcos e vinte pfennigs. Nove anos e

três meses depois, em novembro de 1923, a mesma moeda estava cotada

em 4,2 trilhões de marcos. Em outras palavras, o marco já não

valia coisa alguma. Já não tinha nenhum valor. Alguns anos atrás,

um famoso autor escreveu: “No final das contas, estaremos todos

mortos”. Lamento confirmar que é a pura verdade. Mas a questão

é: quanto durará o momento presente? No século XVIII, houve

uma famosa senhora, Madame de Pompadour, a quem se atribuí o

seguinte dito: “Après nous, le déluge” (“Depois de nós, o dilúvio”).

Madame de Pompadour teve a felicidade de morrer pouco tempo

depois. Mas sua “sucessora”, Madame du Barry, sobreviveu um

pouco mais, para, no final das contas, ser decapitada. Para muitos

o “final das contas” logo se converte no presente – e quanto mais a

inflação avança, mais se antecipa o “final das contas”.



Quanto pode durar o pouco mais? Por quanto tempo pode um

banco central levar à frente um processo inflacionário? Provavelmente

poderá fazê-lo enquanto o povo estiver convencido de que o

governo, mais cedo ou mais tarde – mas certamente não demasiado

tarde – sustará a impressão de dinheiro, detendo, assim, o decréscimo

do valor de cada unidade monetária. O povo, quando deixa

de acreditar que o governo será capaz de deter a inflação, ou mesmo

que ele tenha qualquer intenção de detê-la, começa a se dar conta de

que os preços amanhã serão mais altos que hoje. As pessoas põemse,

então, a comprar a quaisquer preços, provocando uma alta em

níveis tais que o sistema monetário entra em colapso.



Tomemos o caso da Alemanha, que o mundo inteiro testemunhou.

Muitos livros descreveram os acontecimentos daquele período.

(Embora sendo austríaco, e não alemão, vi tudo de dentro: a

situação da Áustria não diferia muito da alemã, e tampouco eram

diferentes as condições de muitos outros países europeus.) Durante

muitos anos, o povo alemão acreditou que sua inflação não passava

de uma situação provisória, que logo chegaria ao fim. Acreditou nisso

por nove anos, até o verão de 1923. Então, finalmente, as pessoas

começaram a duvidar. Como a inflação continuava, a população

julgou mais sensato comprar tudo que estivesse à venda, em vez de

guardar o dinheiro no bolso. Ademais, as pessoas raciocinavam que

não era conveniente emprestar dinheiro, ser credor. Em contrapartida,

era excelente negócio tomar dinheiro emprestado, ser devedor.

Assim, a inflação continuou a se alimentar de si mesma.



A inflação prosseguiu na Alemanha até, precisamente, o dia 28

de agosto de 1923. O povo acreditara que o dinheiro inflacionário

era dinheiro verdadeiro, mas descobriu, então, que as condições tinham

mudado. No outono de 1923, as fábricas do país pagavam

aos seus trabalhadores, cada manhã, uma diária antecipada. E o

trabalhador, que se fazia acompanhar pela mulher até a fábrica, passava-

lhe imediatamente seu ganho, todos os milhões que acabara de

receber. A mulher, então, dirigia-se prontamente a uma loja, para

comprar fosse o que fosse. Ela constatava o que, na época, a maioria

da população sabia: o marco perdia, da noite para o dia, 50% de seu

poder de compra. O dinheiro derretia-se nos bolsos do povo, como

uma barra de chocolate sobre um forno quente. Essa fase final da

inflação alemã não durou muito; depois de alguns dias, todo o pesadelo

se encerrara: o marco perdera todo valor e foi preciso estabelecer

uma nova moeda.



Lord Keynes, o mesmo homem que disse que no final das contas

estaremos todos mortos, foi um representante do extenso rol de

autores inflacionistas do século XX. Todos combateram o padrãoouro.

Ao atacá-lo, Keynes chamou-o de “relíquia bárbara”. Mesmo

hoje, a grande maioria das pessoas considera ridículo falar de um

retorno ao padrão-ouro. Nos Estados Unidos, por exemplo, poderemos

ser considerados como visionários se dissermos: “Mais cedo ou

mais tarde, os Estados Unidos terão de retornar ao padrão-ouro.”

No entanto, o padrão-ouro tem uma extraordinária virtude: na

sua vigência, a quantidade de dinheiro disponível é independente

das políticas governamentais e dos partidos políticos. Essa é a

sua vantagem. Constitui uma forma de proteção contra governos

esbanjadores. Sob o padrão-ouro, se um governo resolve fazer gastos

em um novo empreendimento, o ministro das finanças pode

perguntar: “E onde vou conseguir o dinheiro? Diga-me, primeiro,

onde encontrarei dinheiro para esse gasto adicional”. Num sistema

inflacionário, nada é mais simples para os políticos que ordenar ao

órgão governamental encarregado da impressão do papel-moeda a

emissão de quanto dinheiro lhes seja necessário para seus projetos.

O padrão-ouro é muito mais propício a um governo financeiramente

seguro: seus titulares podem dizer ao povo e aos políticos: “não

podemos fazer tal coisa, salvo se aumentarmos os impostos”.



Sob condições inflacionárias, o povo se habitua a considerar o

governo uma instituição que tem recursos ilimitados à sua disposição:

o estado, o governo podem tudo. Se, por exemplo, a nação deseja

um novo sistema de rodovias, espera-se do governo sua implantação.

Mas onde poderá o governo obter o dinheiro? Pode-se dizer

que hoje, nos Estados Unidos – e mesmo no passado, no governo

McKinley –, o Partido Republicano é relativamente favorável ao dinheiro

lastreado e ao padrão-ouro, enquanto o Partido Democrático

é favorável à inflação. Obviamente, a uma inflação não de papel, e

sim de prata. Contudo, foi um presidente democrata dos Estados

Unidos, o presidente Cleveland que, em fins da década de 1880, vetou

uma decisão do Congresso de conceder uma pequena soma de

auxílio – cerca de dez mil dólares – a uma comunidade que sofrera

uma catástrofe. Esse presidente justificou seu veto escrevendo as

seguintes palavras: “É dever do cidadão manter o governo, mas não

é dever do governo manter os cidadãos”. Estas são palavras que

todo estadista deveria escrever numa parede de seu gabinete, para

mostrar aos que viessem pedir dinheiro.



Sinto-me bastante embaraçado diante da necessidade de simplificar

esses problemas. São tantos e tão complexos os problemas envolvidos

no sistema monetário! E eu certamente não teria escrito

volumes inteiros a respeito deles se eles fossem tão simples quanto

parecem sê-lo aqui. Mas os fundamentos são precisamente estes:

aumentando-se a quantidade de dinheiro, provoca-se o rebaixamento

do poder de compra da unidade monetária. É isso que desagrada

àqueles cujos negócios privados são desfavoravelmente afetados por

essa situação. São os que não se beneficiam da inflação que dela se

queixam. Se a inflação é má, e se todos sabem disso, por que se teria

convertido numa espécie de estilo de vida em quase todos os países?

Mesmo alguns dos países mais ricos sofrem da doença. Os Estados

Unidos são hoje seguramente a mais rica nação do mundo, com o

mais alto padrão de vida. Mas, quando se viaja pelo país, constatase

uma incessante referência à inflação e à necessidade de detê-la.

Mas apenas se fala; não se age.



Cabe, aqui, a apresentação de alguns fatos: após a Primeira

Guerra Mundial, a Grã-Bretanha restabeleceu a equivalência entre

o ouro e a libra, numa correspondência que vigorava antes da

guerra. Isto é, elevou o valor da libra. Com isso, elevou-se o poder

de compra dos salários de todos os trabalhadores. Num mercado

desobstruído, tal alteração teria acarretado uma queda do salário

nominal em dinheiro. Esta queda, por sua vez, teria compensado

a alteração. Como resultado final, o salário real dos trabalhadores

teria permanecido inalterado. Não temos tempo para discutir

agora as razões disso. O fato é que os sindicatos da Grã-Bretanha

não admitiram um ajustamento dos padrões salariais ao poder de

compra mais elevado da unidade monetária; assim sendo, os salários

reais foram consideravelmente acrescidos em decorrência

daquela medida monetária. Isso representou uma verdadeira catástrofe

para a Inglaterra, uma vez que a Grã-Bretanha é um país

predominantemente industrial, obrigado, por um lado, a importar

matérias-primas, produtos semiacabados e alimentos para sobreviver,

e, por outro, a exportar bens manufaturados para pagar essas

importações. Com a elevação do valor internacional da libra, os

preços dos produtos ingleses subiram nos mercados externos, causando

um declínio das vendas e exportações. Na verdade, para todos

os efeitos, o que a Grã-Bretanha fez foi fixar os próprios preços

à revelia do mercado mundial.



Foi impossível derrotar os sindicatos. É sabido o poder que,

hoje, tem um sindicato. Assiste-lhe direito – praticamente o privilégio

– do recurso à violência. E a determinação de um sindicato

tem portanto, ousemos dizê-lo, força equivalente à de um decreto

governamental. O decreto governamental é uma ordem para cuja

aplicação o aparelho governamental – a polícia – está pronta. É preciso

obedecer-lhe, ou se terá problemas com a polícia.



Lamentavelmente temos hoje, em quase todos os países do mundo,

um segundo poder, depois do governo, com condições para exercer

a força: são os sindicatos trabalhistas. Essas entidades determinam

os salários, bem como as greves que os devem impor, da mesma

maneira que o governo poderia decretar um salário mínimo. Não

discutirei o sindicato agora; tratarei dele mais tarde. Quero apenas

deixar claro que a política sindical consiste em elevar os padrões

salariais acima do nível que estes alcançariam num mercado desobstruído.

Em consequência disso, uma parte considerável da população

potencialmente ativa só pode ser empregada por pessoas físicas

ou por indústrias que tenham condições de suportar prejuízos. E

uma vez que os negócios não têm como se manter sob a sangria

de prejuízos, eles fecham as portas e seus trabalhadores perdem o

emprego. A fixação de padrões salariais superiores aos que se estabeleceriam

num mercado desimpedido redunda inevitavelmente no

desemprego de parcela ponderável da população ativa.



Na Grã-Bretanha, a imposição de altos padrões salariais pelos

sindicatos trabalhistas teve como consequência um desemprego

prolongado, que durou anos a fio. Milhões de trabalhadores ficaram

desempregados, os índices de produção caíram. Até os experts

ficaram perplexos. Diante deste quadro, o governo inglês deu um

passo que se lhe afigurou como uma medida de emergência indispensável:

desvalorizou a moeda corrente do país. O poder de compra

dos salários em dinheiro – em cuja manutenção os sindicatos tanto

haviam insistido – deixou de ser o mesmo. Os salários reais, os

salários em mercadorias, foram reduzidos. Agora, o trabalhador já

não podia comprar o mesmo que antes, embora os padrões nominais

dos salários tivessem permanecido os mesmos. Procurou-se, através

da adoção dessa medida, promover o retorno dos padrões salariais

reais aos níveis do mercado livre para que, consequentemente, tivesse

lugar o desaparecimento do desemprego. Essa medida – a desvalorização

– foi adotada por muitos outros países, como a França, os

Países Baixos e a Bélgica. A Tchecoslováquia chegou a recorrer a ela

duas vezes no período de um ano e meio. A desvalorização tornouse

um método sub-reptício, digamos assim, de frustrar o poder dos

sindicatos. No entanto, como veremos, este método também não

pode ser considerado verdadeiramente eficiente.



Alguns anos depois, os trabalhadores – e também os sindicatos

– começaram a compreender o que se passava. O povo começou a

se dar conta de que a desvalorização do dinheiro reduzia seu salário

real. Os sindicatos tinham força suficiente para se opor a isso.

Em muitos países, inseriu-se nos contratos salariais uma cláusula

que estipulava que os salários em dinheiro deveriam ser automaticamente

majorados quando os preços também o fossem. A isto se

chama indexar. Os sindicatos haviam tomado consciência da existência

de índices. Assim, aquele método de reduzir o desemprego

inaugurado pela Grã-Bretanha em 1931 – e adotado posteriormente

por quase todos os governos importantes –, já não mais funciona

nos nossos dias como método de “resolver o desemprego”.



Em 1936, em sua obra General Theory of Employment, Interest and

Money, Lord Keynes deploravelmente elevou esse método – aquelas

medidas de emergência do período 1929-1933 – à categoria de prin73

cípio, ao status de sistema fundamental de política. Justificava sua

teoria dizendo mais ou menos o seguinte: “O desemprego é um mal.

Se quiser que desapareça, inflacione o meio circulante”. Keynes

percebeu muito bem que certos padrões salariais podem ser demasiado

altos para o mercado, ou seja, podem ser altos demais para ser

lucrativo a um empregador ampliar a quantidade de empregados

que contrata e, portanto, serão, também altos demais do ponto de

vista do conjunto da população economicamente ativa, uma vez que

estes padrões salariais impostos pelos sindicatos, em níveis superiores

aos do mercado, resultam em que apenas uma parcela dos que

anseiam por salários conseguem emprego.



Keynes, então, afirmou aproximadamente o seguinte: “Sem

dúvida, o desemprego em massa, prolongando-se ano após ano,

é uma situação muito insatisfatória”. Mas, ao invés de sugerir

que os níveis salariais podiam e deviam ser ajustados às condições

de mercado, afirmou: “Se os trabalhadores não forem suficientemente

espertos para perceber a desvalorização da moeda, eles não

oferecerão resistência a uma queda dos níveis salariais reais, visto

que os níveis nominais permanecerão os mesmos”. Em outras

palavras, Lord Keynes estava dizendo que, se receberem a mesma

quantidade de libras esterlinas que ganhavam antes da desvalorização

da moeda, as pessoas não se darão conta de que passaram, de

fato, a ganhar menos.



Num linguajar antiquado, Keynes propôs que se ludibriassem

os trabalhadores. Em vez de declarar abertamente que os padrões

salariais devem ser ajustados às condições do mercado – porque,

se não for assim, parte da população economicamente ativa ficará

inevitavelmente desempregada –, afirmou, na verdade: “O pleno

emprego só pode ser alcançado se houver inflação. Ludibriem os

trabalhadores”. O fato mais interessante, contudo, é que, quando

sua General Theory foi publicada, a burla já não era possível, uma vez

que as pessoas passaram a ter consciência da inflação. Mas a meta

do pleno emprego permaneceu.



Que vem a ser “pleno emprego”? Esta expressão relaciona-se

com o mercado desobstruído, não manipulado pelos sindicatos ou

pelo governo. Nesse mercado, os padrões salariais para cada tipo

de trabalho tendem a atingir um nível tal que é possível, a todos os

que desejam emprego, obtê-lo. Por outro lado, todo empregador

terá, então, condições de contratar tantos trabalhadores quantos

lhe forem necessários. Se ocorrer um aumento da demanda de

mão-de-obra, o padrão salarial tenderá a ser maior, se houver necessidade

de menor número de trabalhadores, esse padrão tenderá

a cair. O único método que permite a instauração de uma situação

de “pleno emprego” é a preservação de um mercado de trabalho

livre de empecilhos. Isto se aplica a todo gênero de trabalho e a

todo gênero de mercadoria.



Que faz um negociante, se deseja vender determinada mercadoria

por cinco dólares a unidade? A expressão técnica que é aplicada

no mundo dos negócios dos Estados Unidos para o fato de não se

conseguir vender uma mercadoria pelo preço estipulado é “o estoque

mantém-se inalterado”. Mas é preciso que se altere. O negociante

não pode conservar aqueles artigos, porque tem necessidade

de adquirir novas mercadorias; as modas mudam. Assim, ele os

vende por um preço mais baixo. Se não conseguir vender a mercadoria

por cinco dólares, certamente a venderá por quatro. Se for impossível

vendê-la por quatro, será obrigado a vendê-la por três. Não

há outra alternativa, desde que esteja empenhado em manter seu

negócio. Pode sofrer prejuízos, mas estes decorrem do fato de que

fez uma previsão errada do mercado existente para seu produto.

O mesmo acontece com os milhares e milhares de jovens que,

dia após dia, estão vindo dos distritos agrícolas para a cidade, na

expectativa de ganhar dinheiro. É o fenômeno de migração interna,

que tem lugar em todas as nações industrializadas. Nos Estados

Unidos, eles vêm para a cidade com a certeza de que poderão ganhar,

digamos, cem dólares por semana. Suas expectativas podem se frustrar.

Então, aquele que não conseguiu um emprego que pagasse cem

dólares por semana, ver-se-á obrigado a tentar conseguir algum que

pague noventa, oitenta dólares, talvez até menos. Por outro lado, se

essa pessoa declarasse, como fazem os sindicatos: “cem dólares por

semana, ou nada”, talvez só lhe restasse permanecer desempregada.

Diga-se de passagem, muita gente não se incomoda com a situação

de desemprego, uma vez que o governo paga auxílios-desemprego

– com fundos arrecadados através de taxas especiais impostas aos

empregadores – que por vezes são quase tão altos quanto os salários

que receberiam caso estivessem trabalhando.



Nos Estados Unidos, só se aceita a inflação porque determinado

grupo de pessoas acredita que é só através dela que o pleno emprego

pode ser alcançado. No entanto, ainda a este respeito, uma questão

tem sido amplamente debatida: O que é preferível, um dinheiro lastreado

com desemprego ou a inflação com pleno emprego? Trata-se,

na verdade, de um círculo vicioso. Tentemos analisar o problema.

Logo de início, deve-se colocar a seguinte questão: como podemos

melhorar a situação dos trabalhadores e de todos os demais grupos

da população? A resposta é: mantendo o mercado de trabalho livre

de empecilhos e assim alcançando o pleno emprego. Nosso dilema é:

os padrões salariais devem ser determinados pelo mercado, ou devem

ser definidos por pressão e compulsão sindical? Portanto, o cerne da

questão não reside na alternativa “inflação ou desemprego”.



Aliás essa análise distorcida do problema vem sendo proposta na

Inglaterra, nos países industrializados da Europa e até nos Estados

Unidos. Há mesmo quem diga: “Vejam só: até os Estados Unidos

estão recorrendo à inflação. Por que não deveríamos fazer o mesmo?”.

A estes deveríamos responder em primeiro lugar: “Um dos

privilégios do homem rico é poder se dar ao luxo de ser insensato

por muito mais tempo que o pobre”. E é esta a situação dos Estados

Unidos. A política financeira desse país é muito ruim, e está piorando.

Mas certamente trata-se de um país capaz de arcar com os

custos de sua insensatez por um prazo um pouco mais longo que o

que seria tolerado por alguns outros países.



O mais importante a lembrar é que a inflação não é um ato de

Deus, que a inflação não é uma catástrofe da natureza ou uma doença

que se alastra como a peste. A inflação é uma política, – uma

política premeditada, adotada por pessoas que a ela recorrem por

considerá-la um mal menor que o desemprego. Mas o fato é que, a

não ser em curtíssimo prazo, a inflação não cura o desemprego. A

inflação é uma política. E uma política pode ser alterada. Assim

sendo, não há razão para nos deixarmos vencer por ela. Se a temos

na conta de um mal, então é preciso estancá-la. É preciso equilibrar

o orçamento do governo. Evidentemente, o apoio da opinião pública

é necessário para isso. E cabe aos intelectuais ajudar o povo a

compreender. Uma vez assegurado o apoio da opinião pública, os

representantes eleitos do povo certamente terão condições de abandonar

a política da inflação.



Devemos lembrar que, no final das contas, poderemos estar todos

mortos. Aliás, não restam dúvidas de que estaremos mesmo

mortos. Mas deveríamos cuidar de nossos assuntos terrenos – neste

breve intervalo em que nos é dado viver – da melhor maneira possível.

E uma das medidas necessárias para esse propósito é abandonar

as políticas inflacionárias.
 

Flango Chines

Bam-bam-bam
Mensagens
1.387
Reações
2.494
Pontos
293
Há quem atribua aos programas de liberdade econômica um

caráter negativo. Dizem: “Que querem de fato os liberais? São

contra o socialismo, a intervenção governamental, a inflação, a

violência sindical, as tarifas protecionistas... Dizem ‘não’ a tudo”.

Esta me parece uma apresentação unilateral e superficial do problema.

É, sem dúvida, possível formular um programa liberal de

forma positiva. Quando alguém afirma: “Sou contra a censura”,

não se torna negativo por isso. Na verdade, esta pessoa é a favor de

os escritores terem o direito de determinar o que desejam publicar,

sem a interferência do governo. Isso não é negativismo, é precisamente

liberdade (é óbvio que, ao empregar o termo “liberal”

com relação às condições do sistema econômico, tenho em mente

o velho sentido clássico da palavra).



Hoje, grande parte das pessoas julga inadequadas as consideráveis

diferenças de padrão de vida existentes entre muitos países.

Dois séculos atrás, as condições da Grã-Bretanha eram muito piores

que as condições atuais da Índia. Mas em 1750 os britânicos

não se atribuíam os rótulos de “subdesenvolvidos” ou de “atrasados”,

pois não tinham como comparar a situação de seu país com

a de outros, que se encontrassem em condições econômicas mais

satisfatórias. Hoje, todos os povos que não atingiram o padrão de

vida médio dos Estados Unidos acreditam haver algo errado na

sua situação econômica. Muitos deles se intitulam “países em desenvolvimento”

e, nessa qualidade, reivindicam ajuda dos chamados

países desenvolvidos ou super desenvolvidos. Permitam-me

explicar a realidade dessa situação. O padrão de vida é mais baixo

nos chamados países em desenvolvimento porque os ganhos médios

para os mesmos gêneros de trabalhos são mais baixos nesses

países que em alguns outros da Europa Ocidental, que no Canadá,

no Japão, e especialmente nos Estados Unidos. Se investigarmos

as razões dessa diferença, seremos obrigados a reconhecer que ela

não decorre de uma inferioridade dos trabalhadores ou de outros

empregados. Reina entre certos grupos de trabalhadores norteamericanos

a tendência a se julgarem melhores que os outros povos

– e que é graças aos próprios méritos que ganham salários mais

altos que os trabalhadores dos demais países.



Bastaria a um trabalhador norte-americano visitar um outro país

– digamos a Itália, de onde tantos deles são originários – para constatar

que não são suas qualidades pessoais, mas as condições do país,

que lhe possibilitam receber salários menos ou mais elevados. Se

um siciliano migrar para os Estados Unidos, em pouco tempo poderá

alcançar os padrões salariais correntes neste país. E, se retornar

à Sicília, o mesmo homem verificará que sua permanência nos

Estados Unidos não lhe conferiu qualidades que lhe permitissem

auferir, na Sicilia, salários superiores aos de seus conterrâneos.

Essa situação econômica tampouco pode ser explicada a partir

do pressuposto de que os empresários americanos sejam superiores

aos empresários dos demais países. É fato que – exceção feita ao

Canadá, à Europa Ocidental e a certas regiões da Ásia – o equipamento

das fábricas e os processos tecnológicos são, de modo geral,

inferiores aos utilizados nos Estados Unidos. Mas isso não é fruto

da ignorância dos empresários desses países “subdesenvolvidos”.

Eles têm perfeita consciência de que as fábricas dos Estados Unidos

e do Canadá são muito mais bem equipadas. Muitos recebem

informações apropriadas sobre tudo isso, uma vez que são obrigados

a se manterem em dia com a tecnologia. As vezes, ao faltarem

as informações, esses empresários buscam outros meios disponíveis

para suprir suas deficiências: recorrem, então, a manuais e revistas

técnicas que divulgam esse conhecimento.



A diferença, repetimos, não reside na inferioridade pessoal nem

na ignorância. A diferença está na disponibilidade de capital, na

quantidade acessível de bens de capital. Em outras palavras, o montante

de capital investido per capita é maior nas chamadas nações

avançadas que nas nações em desenvolvimento.



Um empresário não pode pagar a um trabalhador mais que a

soma adicionada pelo trabalho desse empregado ao valor do produto.

Não lhe pode pagar mais que aquilo que os clientes se dispõem

a pagar pelo trabalho adicional desse trabalhador individual.

Se lhe pagar mais, a paga de seus clientes não lhe permitirá recuperar

seus gastos. Sofrerá prejuízos, e além disso, como já ressaltei

várias vezes, e é do conhecimento geral, um negociante submetido

a prejuízos é obrigado a mudar seus métodos de negociar. Caso

contrário, vai à bancarrota.



Os economistas dizem que “os salários são determinados pela

produtividade marginal da mão-de-obra”. Esta afirmativa não é

mais que outra formulação do que acabamos de expor. Não se pode

negar o fato de que a escala salarial é determinada pelo montante

em que o trabalho de um indivíduo aumenta o valor do produto.

Dispondo de instrumentos de alta qualidade e eficiência, uma

pessoa poderá realizar, em uma hora de trabalho, muito mais que

outra que, também durante uma hora, trabalhe com instrumentos

menos aperfeiçoados e menos eficientes. É óbvio que cem homens

que trabalhem numa fábrica de calçados nos Estados Unidos produzam

muito mais, no mesmo prazo, que cem sapateiros na Índia,

obrigados a utilizar ferramentas antiquadas, num processo menos

sofisticado. Os empregadores de todas essas nações em desenvolvimento

estão perfeitamente cônscios de que melhores instrumentos

tornariam suas empresas mais lucrativas. Certamente gostariam de

poder não só aumentar o número de suas fábricas como também

adquirir instrumentos mais modernos e sofisticados. O único empecilho

é a escassez de capital.



A diferença entre as nações mais desenvolvidas e as menos desenvolvidas

se estabelece em função do tempo. Os ingleses começaram

a poupar antes de todas as outras nações. Consequentemente,

também começaram antes a acumular capital e a investi-lo em negócios.

Este foi o fator primordial para que se alcançasse, na Grã-

Bretanha, um padrão de vida bastante elevado numa época em que,

em todos os outros países europeus, prevalecia ainda um padrão

consideravelmente baixo. Gradualmente, todas as demais nações

começaram a analisar o que ocorria na Grã-Bretanha e não lhes foi

difícil descobrir a razão da riqueza desse país. Assim, puseram-se

a imitar os métodos dos negociantes ingleses. De qualquer modo,

o fato de outras nações só terem começado mais tarde seus investimentos

e de os britânicos não terem parado de investir capital fez

permanecer uma grande diferença entre as condições econômicas

da Inglaterra e as desses outros países. Mas ocorreu algo que veio

anular a superioridade da Grã-Bretanha.



Aconteceu, então, o fato mais importante da história do século

XIX – e não me refiro apenas à história de um só país. Trata-se da

expansão, no século XIX, do investimento externo. Em 1817, o grande

economista inglês Ricardo ainda considerava ponto pacífico que só

se poderia investir capital nos limites de um país. Não considerava

a hipótese de os capitalistas virem a investir no estrangeiro. Mas,

algumas décadas mais tarde, o investimento de capital no estrangeiro

começou a desempenhar um papel de importância primordial no

mundo dos negócios. Sem esse investimento de capital, as nações

menos desenvolvidas que a Grã-Bretanha teriam sido obrigadas a

iniciar seu desenvolvimento utilizando-se dos mesmos métodos e

tecnologia usados pelo britânicos em princípio e meados do século

XVIII. Seria preciso procurar imitá-los lentamente, passo a passo.

E sempre se estaria muito aquém do nível tecnológico da economia

britânica, de tudo o que os britânicos já tinham realizado.



Teriam sido necessárias muitas e muitas décadas para que esses

países atingissem o padrão de desenvolvimento tecnológico

alcançado, mais de um século antes, pela Grã-Bretanha. Assim,

o investimento externo constituiu-se num fator preponderante de

auxílio para que esses países iniciassem seu desenvolvimento. O

investimento externo significava que capitalistas investiam capital

britânico em outras partes do mundo. Primeiro, investiram-no

naqueles países europeus que, do ponto de vista da Grã-Bretanha,

se apresentavam como os mais carentes de capital e os mais atrasados

em seu desenvolvimento. É do conhecimento de todos que

as estradas de ferro da maioria dos países da Europa – e também

as dos Estados Unidos – foram construídas com a ajuda do capital

britânico. Aliás, o mesmo se passou aqui na Argentina. As

companhias de gás, em todas as cidades da Europa, eram também

britânicas. Em meados da década de 1870, um escritor e poeta

inglês criticou seus compatriotas dizendo: “Os britânicos perderam

o antigo vigor e já não têm uma só ideia nova. Deixaram

de ser uma nação importante ou de vanguarda”. A isto, Herbert

Spencer, o eminente sociólogo, respondeu: “Olhe para a Europa

continental. Todas as capitais europeias têm iluminação porque

uma companhia britânica lhes fornece gás”. Isso se passou, é claro,

numa época que hoje se nos afigura como a época “remota” da

iluminação a gás. Spencer disse ainda mais a esse crítico: “Você

afirma que os alemães estão muito à frente da Grã-Bretanha. Olhe

para a Alemanha: até mesmo Berlim, a capital do Reich alemão, a

capital do Qeist, ficaria às escuras se uma companhia britânica de

gás não tivesse entrado no país e iluminado as ruas”.

Foi também o capital britânico que, nos Estados Unidos, implantou

as estradas de ferro e deu início a diversos ramos industriais.

É evidente que, ao importar capital, o país passa a ter uma

balança comercial que os economistas qualificam de “desfavorável”.

Isso significa que suas importações excedem as exportações.



A “balança comercial favorável” da Grã-Bretanha devia-se ao fato

de que suas fábricas enviavam muitos tipos de equipamento para

os Estados Unidos e tinham como pagamento simplesmente ações

de companhias norte-americanas. Esse período da história dos Estados

Unidos durou, aproximadamente, até a década de 1890. Mas

quando este país, com a ajuda do capital britânico – e mais tarde

com a ajuda das próprias políticas pró-capitalistas –, expandiu seu

sistema econômico de uma maneira inédita, os norte-americanos

começaram a comprar de volta o capital acionário que haviam vendido

a estrangeiros. Os Estados Unidos passaram a ter, então, um

excesso de exportações em relação às importações. A diferença a seu

favor era paga pela importação – a repatriação, como a chamavam –

das ações ordinárias norte-americanas.



Essa fase durou até a Primeira Guerra Mundial. O que aconteceu

depois é uma outra história. É a história dos auxílios

norte-americanos aos países beligerantes durante a Primeira e a

Segunda Guerras Mundiais, bem como nas entre guerras e após

elas: os empréstimos, os investimentos feitos na Europa, além

do lend-lease, da ajuda externa, do Plano Marshall, dos alimentos

enviados para outros países e de todos os demais subsídios. Friso

isto porque não são poucos os que acreditam ser vergonhoso ou

degradante ter capital estrangeiro operando em seu país. Devemos

nos dar conta de que em todos os países, exceto a Inglaterra,

o investimento de capital de origem estrangeira sempre

desempenhou um papel da mais considerável importância para a

implantação de indústrias modernas.



Se afirmo que o investimento externo foi o maior acontecimento

histórico do século XIX, faço-o no desejo de lembrar tudo aquilo

que nem sequer existiria se não tivesse havido qualquer investimento

externo. Todas as estradas de ferro, inúmeros portos, fábricas e

minas da Ásia, o canal de Suez e muitas outras coisas no hemisfério

ocidental não teriam sido construídos, não fosse o investimento

externo. O investimento externo é feito na expectativa de que

não será expropriado. Ninguém investiria coisa alguma se soubesse

de antemão que seus investimentos seriam objeto de expropriação.



No século XIX e no início do século XX, não se cogitava disso ao

se aplicar no estrangeiro. Desde o princípio havia, por parte de

alguns países, certa hostilidade em relação ao capital estrangeiro.

No entanto, apesar da hostilidade, estes países, em sua maior parte,

compreendiam muito bem que os investimentos externos lhes propiciavam

imensas vantagens. Em alguns casos, os investimentos

externos não eram destinados diretamente a capitalistas de outros

países: realizavam-se indiretamente, através de empréstimos concedidos

ao governo do país estrangeiro. Neste caso, era o governo que

aplicava o dinheiro em investimentos. Foi este, por exemplo, o caso

da Rússia. Por razões puramente políticas, os franceses investiram

nesse país – nas duas décadas que precederam a Primeira Guerra

Mundial – cerca de vinte bilhões de francos de ouro, sobretudo

na forma de empréstimos ao governo. Todos os grandes empreendimentos

desse governo – como, por exemplo, a ferrovia que liga

a Rússia, indo dos montes do Ural, através do gelo e da neve da

Sibéria, até o Pacífico – foram realizados basicamente com capital

estrangeiro emprestado ao governo russo. Como é fácil presumir,

os franceses nem sequer imaginavam que, de um momento para outro,

se implantaria um governo russo comunista que simplesmente

declararia não pretender pagar os débitos contraídos por seus predecessores

do governo czarista.



A partir da Primeira Guerra Mundial, teve inicio um período

de guerra declarada aos investimentos estrangeiros. Uma vez que

não há qualquer medida capaz de impedir um governo de expropriar

capital investido, praticamente inexiste proteção legal para

os investimentos externos no mundo de hoje. Os capitalistas dos

países exportadores de capital não previram isso: se o tivessem

feito, teriam sustado todos os investimentos externos há quarenta

ou cinquenta anos atrás. Na verdade, os capitalistas não acreditavam

que algum país pudesse ser antiético o bastante para descumprir

uma dívida, para expropriar e confiscar capital estrangeiro.

Com este tipo de ação, inaugurou-se um novo capítulo na história

econômica do mundo. Encerrado o glorioso período do século

XIX, em que o capital estrangeiro fomentou, em todas as partes

do mundo, a implantação de modernos métodos de transporte, de

fabricação, de mineração e de tecnologia agrícola, inaugurou-se

uma nova era em que governos e partidos políticos passaram a ter

o investidor estrangeiro na conta de um explorador a ser escorraçado

do país. Os russos não foram os únicos a incorrer nessa atitude

anticapitalista. Basta lembrar, por exemplo, a expropriação dos

campos de petróleo norte-americanos no México, bem como tudo

o que se passou aqui, neste país (Argentina).



A situação no mundo de hoje, gerada pelo sistema de expropriação

do capital estrangeiro, consiste ou na expropriação direta ou

naquela realizada indiretamente, por meio do controle do câmbio

exterior ou da discriminação de taxas. Este é sobretudo um problema

de nações em desenvolvimento. Tomemos, por exemplo, a

maior dessas nações: a Índia. Sob o sistema britânico, investiu-se,

neste país, predominantemente capital britânico, embora também

tenha havido investimentos de capital originário de outros países

da Europa. Além disso, os britânicos exportaram para a Índia algo

extremamente importante, que precisa ser mencionado neste contexto:

exportaram métodos modernos de combate a doenças contagiosas.

O resultado foi um extraordinário aumento da população

do país que, por sua vez, gerou um terrível agravamento dos seus

problemas. Ante essa situação cada vez mais grave, a Índia optou

pela expropriação como meio de enfrentar suas dificuldades. Mas

esta expropriação não foi sempre efetuada de maneira direta: a hostilização

do governo aos capitalistas estrangeiros se mostrava nos

empecilhos criados para seus investimentos. Como consequência,

só restava aos capitalistas liquidarem seus negócios.

A Índia podia, é óbvio, obter capital por um outro método: o

da acumulação interna. Mas trata-se de um país tão hostil à acumulação

interna de capital quanto aos capitalistas estrangeiros.



O governo indiano declara pretender industrializar o país, mas o

que de fato tem em mente é instituir empresas socialistas. Alguns

anos atrás, o famoso estadista Jawaharlal Nehru publicou uma

coletânea de discursos. O livro foi lançado no intuito de tornar

os investimentos estrangeiros na Índia mais atraentes. O governo

indiano não é contrário ao capital estrangeiro antes que este

seja investido. A hostilidade só começa quando já está investido.

Nesse livro – cito literalmente – o Sr Nehru diz: “Desejamos, é

claro, socializar. Mas não somos contrários a iniciativa privada.

Desejamos encorajar de todas as maneiras a iniciativa privada.

Queremos afiançar aos empresários que investem no país que

não os expropriaremos ou os socializaremos num prazo de dez

anos, talvez até por mais tempo.” E ele supunha estar fazendo um

convite estimulante.



No entanto, o problema real – como sabem todos aqui presentes

– está na acumulação interna de capital. Em todos os países,

são extremamente altos os impostos que, hoje, pesam sobre as

companhias. Na verdade, elas sofrem uma dupla tributação. Além

de haver uma severa taxação sobre seus lucros, há, ainda, outra taxação

sobre os dividendos que pagam aos acionistas. E esta tributação

é feita de maneira progressiva. A tributação progressiva da

renda e dos lucros tem como resultado o fato de que precisamente

aquelas parcelas da renda que se tenderia a poupar e a investir são

consumidas no pagamento de tributos. Tomemos o exemplo dos

Estados Unidos. Há alguns anos, havia um imposto sobre “excesso

de lucros”: de cada dólar ganho, a companhia retinha apenas

dezoito centavos de dólar. Quando esses 18 centavos eram pagos

aos acionistas, aqueles que possuíam um grande número de ações

tinham de pagar, sobre essa cota, como imposto, um percentual de

16, 18 ou até mais. Assim, de um dólar de lucro, os acionistas retinham

cerca de sete centavos de dólar, ficando o governo com os

93 restantes. A maior parte desses 93% que, nas mãos do acionista,

teria sido economizada e investida, é utilizada pelo governo nas

despesas comuns. É esta a política dos Estados Unidos.

Espero ter deixado claro que a política dos Estados Unidos não é

um exemplo a ser imitado por outros países. Quero apenas ressalvar

que um país rico tem mais condições de suportar más políticas que

um país pobre. Nos Estados Unidos, a despeito desses métodos de

tributação, ainda se verifica, todos os anos, alguma acumulação adicional

de capital que reverte em investimentos. Permanece ainda,

consequentemente, uma tendência à elevação do padrão de vida.



Mas em muitos outros países o problema é extremamente mais

critico. Além de não haver – ou de não haver em volume suficiente

– poupança interna, o investimento de capital oriundo do estrangeiro

é severamente reduzido em decorrência da franca hostilidade

existente em relação ao investimento externo. Como podem estes

países falar de industrialização, da necessidade de criar novas fábricas,

de atingir melhores condições econômicas, de elevação do

padrão de vida, de obtenção de padrões salariais mais elevados, de

implantar melhores meios de transporte, se adotam uma prática que

terá exatamente o efeito oposto? O que suas políticas fazem efetivamente,

quando criam obstáculos ao ingresso do capital estrangeiro,

é impedir ou retardar a acumulação interna de capital.

O resultado final é, certamente, extremamente negativo. Como

não podia deixar de ser, decorre de tudo isto uma acentuada perda

de confiança: existe hoje, no mundo todo, um crescente descrédito

na viabilidade de se investir no exterior. Ainda que os países interessados

em conseguir novos capitais se empenhassem em mudar

imediatamente suas políticas e fizessem toda a sorte de promessas,

é muito duvidoso que pudessem, mais uma vez, estimular os capitalistas

estrangeiros a neles investirem.



É evidente que existem métodos para evitar que as coisas cheguem

a este ponto. Uma medida possível seria o estabelecimento

de alguns estatutos internacionais – e não somente de acordos – que

retirassem os investimentos externos da jurisdição nacional. Isto

poderia ser feito por intermédio das Nações Unidas. Mas a ONU

não passa de um lugar de encontro para discussões inócuas. Tendo

em vista a enorme importância do investimento externo, percebendo

com clareza que só ele pode trazer melhorias para as condições

políticas e econômicas do mundo, precisamos tentar fazer algo em

termos de legislação internacional.

Esta é uma questão legal, de cunho técnico, que estou levantando

apenas para mostrar que a situação não é desesperadora.

Se o mundo quiser efetivamente tornar possível que os países em

desenvolvimento elevem seu padrão de vida, chegando ao “estilo

de vida americano”, isso poderá ser feito. É necessário apenas

compreender como.



Uma única coisa falta para tornar os países em desenvolvimento

tão prósperos quanto os Estados Unidos: capital. No entanto, é

imprescindível que haja liberdade para empregá-lo sob a disciplina

do mercado, não sob a do governo. É preciso que estas nações acumulem

capital interno e viabilizem o ingresso do capital estrangeiro.

No entanto, faz-se necessário frisar, mais uma vez, que o desenvolvimento

da poupança interna só tem lugar quando as camadas

populares se sentem respaldadas por um sistema econômico que

propicie a existência de uma unidade monetária estável. Em outras

palavras, não se pode admitir nenhuma modalidade de inflação.

Grande parte do capital empregado nas empresas norte-americanas

é de propriedade dos próprios trabalhadores e de outras pessoas

de recursos modestos. Bilhões e bilhões de depósitos de poupança,

títulos e apólices de seguro operam nessas empresas. Hoje, no

mercado monetário dos Estados Unidos, os maiores emprestadores

de dinheiro já não são os bancos, mas as companhias seguradoras.



E, do ponto de vista econômico – e não do legal –, o dinheiro das

seguradoras é propriedade do segurado. E praticamente todos os

cidadãos norte-americanos são, de uma forma ou de outra, segurados.

O requisito fundamental para que haja, no mundo, uma maior

igualdade econômica é a industrialização. E esta só se torna possível

quando há maior acumulação e investimento de capital. Talvez

eu os tenha surpreendido por não mencionar uma medida reputada

primordial na industrialização de um país: o protecionismo. Mas

as tarifas e controles do câmbio exterior são exatamente meios de

impedir a importação de capital e a industrialização do país. A única

maneira de fomentar a industrialização é dispor de mais capital. O

protecionismo não faz mais que desviar investimentos de um ramo

de negócios para outro.



Por si mesmo, o protecionismo não acrescenta coisa alguma ao

capital de um país. Para implantar uma nova fábrica, precisa-se

de capital. Para modernizar uma já existente, precisa-se de capital,

não de tarifas. Não se trata, aqui, de discutir toda a questão do

livre-câmbio ou do protecionismo. Espero que a maior parte dos

manuais de economia que se encontram no mercado, ao alcance de

todos, já a apresentem adequadamente. A proteção não introduz

alterações positivas na situação econômica de um país.



Também o sindicalismo certamente não vem a promover qualquer

melhoria nessa situação. Se as condições de vida são insatisfatórias

e os salários são baixos, o assalariado que tenha sua atenção

voltada para os Estados Unidos e que leia sobre o que ali se passa,

ao ver em filmes, como a casa de um americano médio é equipada

de todos os confortos modernos, pode sentir uma ponta de inveja.

E tem toda razão ao dizer: “Deveríamos ter a mesma coisa”. Mas

só se pode obter esta melhoria através do aumento do capital. Os

sindicatos recorrem à violência contra os empresários e contra os

que chamam de “fura-greves”. Mas, a despeito de sua força e de sua

violência, não conseguem elevar de maneira contínua os salários de

todos os assalariados.



Igualmente ineficazes são os decretos governamentais que estipulam

pisos salariais. O que os sindicatos conseguem de fato produzir

(quando são bem sucedidos na luta pela elevação dos salários) é um

desemprego duradouro, permanente. Os sindicatos não têm como

industrializar o país, não têm como elevar o padrão de vida dos trabalhadores.



E este é o ponto crítico. É preciso compreender que

todas as políticas de um país desejoso de elevar seu padrão de vida

devem estar voltadas para o aumento do capital investido per capita.

Aliás, este investimento de capital per capita continua a crescer nos

Estados Unidos, apesar de todas as más políticas ai adotadas. E o

mesmo ocorre no Canadá e em alguns países da Europa Ocidental.

Mas, lamentavelmente, vem-se reduzindo em países como a Índia.

Lemos todos os dias nos jornais que a população mundial apresenta

um crescimento de cerca de 45 milhões de pessoas – ou até

mais – por ano. Aonde isso nos vai levar? Quais serão os resultados

e as consequências? Lembrem do que falei sobre a Grã-Bretanha.

Em 1750, os britânicos supunham que seis milhões de pessoas constituíam

uma população excessiva para as Ilhas Britânicas: todos estariam

fadados à fome e à peste. No entanto, nas vésperas da última

Guerra Mundial, em 1939, cinquenta milhões de pessoas viviam nas

Ilhas Britânicas com um padrão de vida incomparavelmente superior

ao padrão com que se vivia em 1750. Isto era um efeito da

chamada industrialização – termo, por sinal, bastante inadequado.

O progresso da Grã-Bretanha foi gerado pelo aumento do investimento

de capital per capita. Como eu já disse antes, as nações só

têm uma maneira de alcançar a prosperidade: através do aumento

do capital, com o decorrente aumento da produtividade marginal e

o crescimento dos salários reais. Num mundo sem barreiras migratórias,

haveria uma tendência à equiparação dos padrões salariais de

todos os países. Atualmente, se não existissem barreiras à migração,

é provável que vinte milhões de pessoas procurassem ingressar nos

Estados Unidos a cada ano, atraídas pelos melhores salários ai oferecidos.

Tal afluência provocaria a redução dos salários nesse país e

uma correspondente elevação em outros.



Embora não haja tempo suficiente nesta exposição para tratarmos

das barreiras migratórias, é importante deixar claro que há outro

caminho capaz de levar à equiparação salarial no mundo inteiro.

E este outro caminho, que passa a valer quando não existe a liberdade

para migrar, é a migração de capital. Os capitalistas tendem a

se deslocar para aqueles países onde a mão-de-obra é abundante e

barata. E, pelo próprio fato de introduzirem capital nesses países,

provocam uma tendência à elevação dos padrões salariais. Isso funcionou

no passado e funcionará no futuro do mesmo modo.



Quando houve, pela primeira vez, investimento de capital britânico

na Áustria ou na Bolívia, por exemplo, os padrões salariais

ali estabelecidos eram muito inferiores aos que prevaleciam na

Grã-Bretanha. Este investimento adicional originou, então, uma

tendência à alta dos padrões salariais nesses países, tendência está

que se refletiu no mundo inteiro. É um fato bastante conhecido

que, imediatamente após a introdução, por exemplo, da United

Fruit Company na Guatemala, o resultado foi uma tendência geral

a maiores padrões salariais. A partir dos salários pagos pela United

Fruit Company criou-se, para os demais empregadores, a necessidade

de pagar, também, salários mais elevados. Portanto, não há absolutamente

razão para qualquer pessimismo em relação ao futuro dos

países “subdesenvolvidos”.



Concordo plenamente com os comunistas e com os sindicalistas

quando proclamam que o necessário é elevar o padrão de vida. Pouco

tempo atrás, num livro publicado nos Estados Unidos, dizia um professor:

“Temos agora o bastante de todas as coisas; por que deveria a

população do mundo continuar trabalhando tanto? Já temos tudo.”

Não tenho a menor dúvida de que esse professor tenha tudo. Mas há

outros povos, em outros países – e também muitas pessoas nos Estados

Unidos – que desejam e deveriam ter um melhor padrão de vida.

Fora dos Estados Unidos – na América Latina e, mais ainda, na

Ásia e na África – todos desejam a melhoria das condições do seu

país. Um padrão de vida mais alto acarreta, também, padrões superiores

de cultura e de civilização. Assim, concordo plenamente

com a meta final de elevar o padrão de vida em toda parte. Mas

discordo no tocante às medidas a serem adotadas para a consecução

deste objetivo. Que medidas levarão a atingir esta meta?

Certamente não é a proteção, nem a interferência governamental,

nem o socialismo, ou a violência dos sindicatos (eufemisticamente

chamada de barganha coletiva, mas que se constitui, de fato, numa

barganha sob a mira do revólver).



Alcançar esta meta final de elevação do padrão de vida em toda

parte é um processo bastante lento. Para alguns, talvez demasiadamente

lento. Mas não há atalhos para o paraíso terrestre. Leva

tempo, é necessário trabalhar. No entanto, não será preciso tanto

tempo quanto muitos imaginam. A equiparação virá finalmente.



Por volta de 1840, na região ocidental da Alemanha – na Suábia

e em Wurtemberg, que eram na época áreas das mais industrializadas

do mundo –, dizia-se: “Jamais conseguiremos atingir

o nível dos britânicos. Os ingleses têm uma cabeça de vantagem

e estarão sempre à nossa frente”. Trinta anos mais tarde, diziam

por sua vez os britânicos: “Essa concorrência alemã é intolerável,

temos de dar um jeito nisso”. Por essa época, é claro, o padrão

alemão experimentava uma rápida elevação, muito embora apenas

se aproximasse do padrão britânico. Hoje, a renda per capita alemã

nada fica a dever à britânica.



No centro da Europa, existe um pequeno país, a Suíça, muito

pouco aquinhoado pela natureza. Não tem minas de carvão, não

tem minérios, não tem recursos naturais. Mas, ao longo de séculos,

seu povo praticou uma política capitalista e erigiu o mais elevado

padrão de vida da Europa continental. Esse país situa-se, agora,

entre os mais destacados centros de civilização do mundo. Não

vejo por que um país como a Argentina – muito maior que a Suíça,

tanto em população quanto em extensão territorial – não poderia

alcançar o mesmo elevado padrão de vida ao cabo de alguns anos

de boas políticas. Mas – como já o frisei – é imprescindível que as

políticas sejam boas.


No Século das Luzes, nos anos em que os norte-americanos instituíram

sua independência, e alguns anos mais tarde, quando as

colônias espanholas e portuguesas se transformaram em nações independentes,

predominava na civilização ocidental um espírito de

otimismo. Nessa época, todos os filósofos e estadistas estavam plenamente

convencidos de que vivíamos o alvorecer de uma nova era de

prosperidade, progresso e liberdade. Alimentava-se naqueles dias a

esperança de que as novas instituições políticas – os governos representativos

constitucionais estabelecidos nas nações livres da Europa

e da América – atuariam de forma muito benéfica, e que a liberdade

econômica promoveria a permanente melhoria das condições materiais

dá humanidade. Sabemos perfeitamente que algumas dessas

expectativas eram demasiado otimistas. Não há dúvida de que experimentamos,

nos séculos XIX e XX, um progresso sem precedentes

das condições econômicas, progresso este que tornou possível a uma

população muito maior viver num padrão de vida muito superior ao

de épocas anteriores. Mas sabemos, também, que muitas das esperanças

dos filósofos do século XVIII foram atrozmente estilhaçadas

– esperanças de que não haveria mais guerras e de que as revoluções

se tornariam desnecessárias. Essas esperanças não se concretizaram.

Durante o século XIX, houve um período em que as guerras diminuíram,

tanto em número quanto em gravidade. Mas o século

XX trouxe um ressurgimento do espírito belicoso, e temos boas razões

para dizer que talvez ainda não tenhamos chegado ao fim das

provações que a humanidade deverá atravessar.



O sistema constitucional introduzido em fins do século XVIII e

início do XIX frustrou a humanidade. A maioria das pessoas – e dos

autores – que tratou desse problema parece pensar que não houve relação

entre os aspectos político e econômico do problema. Tende-se,

por conseguinte, a considerar o fenômeno da deterioração do parlamentarismo

– governo exercido pelos representantes do povo – como

se fosse um fenômeno desvinculado da situação econômica e das concepções

econômicas que determinam as atividades das pessoas.



Essa independência, no entanto, não existe. O homem não é um

ser que tenha, por um lado, uma dimensão econômica e, por outro,

uma dimensão política, dissociadas uma da outra. Na verdade,

aquilo a que comumente se dá o nome de deterioração da liberdade,

do governo constitucional e das instituições representativas, nada

mais é que a consequência da mudança radical das ideias políticas e

econômicas. Os eventos políticos são a consequência inevitável da

mudança das políticas econômicas.



As ideias que nortearam os estadistas, filósofos e juristas que, no

século XVIII e princípio do século XIX, elaboraram os fundamentos

do novo sistema político, partiam do pressuposto de que, numa nação,

todos os cidadãos honestos têm uma mesma meta final. Essa meta

final na qual todos os homens decentes se deveriam empenhar é o

bem-estar de toda a nação, assim como o das demais nações. Aqueles

líderes morais e políticos estavam, portanto, firmemente convencidos

de que uma nação livre não está interessada em conquista. Julgavam

a luta partidária algo simplesmente natural, uma vez que lhes parecia

totalmente normal a existência de diferenças de opinião no tocante à

melhor maneira de se conduzirem os negócios do estado.



As pessoas que tinham ideias semelhantes acerca de um problema

cooperavam, e a essa cooperação dava-se o nome de partido.

Por outro lado, a estrutura partidária não era permanente: não se

baseava na posição ocupada pelos indivíduos no conjunto da estrutura

social e podia sofrer alterações, caso as pessoas se dessem

conta de que sua posição original fundamentara-se em pressupostos

errôneos, ou em ideias equivocadas. Desse ponto de vista,

muitos consideravam as discussões desenroladas nas campanhas

eleitorais e, posteriormente, nas assembleias legislativas, um importante

fator político. Não concebiam os discursos dos membros

de um congresso como meros pronunciamentos que anunciavam

ao mundo as aspirações de um partido político. Viam-nos como

tentativas de convencer os grupos adversários de que as ideias

apresentadas pelo orador eram mais corretas, mais propícias ao

bem comum que outras ideias antes apresentadas.



Discursos políticos, editoriais em jornais, folhetos e livros eram

escritos no intuito de persuadir. Não havia por que acreditar ser impossível

para alguém convencer a maioria da absoluta correção das

próprias ideias, desde que estas fossem bem fundamentadas. Foi

nessa perspectiva que as normas constitucionais foram formuladas

nos órgãos legislativos do princípio do século XIX.



No entanto, partia-se do pressuposto de que o governo não iria

interferir nas condições econômicas do mercado. Era preciso, também,

que todos os cidadãos tivessem um único objetivo político:

o bem-estar de todo o país e de toda a nação. E foi precisamente

essa a filosofia social e econômica que o intervencionismo veio a

suplantar, gerando uma filosofia totalmente diversa. Segundo as

concepções intervencionistas, é dever do governo apoiar, subsidiar,

conceder privilégios a grupos especiais. O estadista do século

XVIII pensava que os legisladores tinham ideias específicas sobre

o bem comum. Hoje, entretanto, constatamos, na realidade da vida

política – praticamente na de todos os países do mundo onde não

vigora simplesmente uma ditadura comunista – uma situação em

que já não existem partidos políticos autênticos, no velho sentido

clássico, mas tão somente grupos de pressão.



Um grupo de pressão é um grupo de pessoas desejoso de obter

um privilégio à custa do restante da nação. Esse privilégio pode

consistir numa tarifa sobre importações competitivas, pode consistir

em leis que impeçam a concorrência de outros. Seja como for,

confere aos membros de um grupo uma posição especial. Dá-lhes

algo que é negado, ou deve ser negado – segundo os desígnios do

grupo de pressão – a outros grupos.



Nos Estados Unidos, o sistema bipartidário dos velhos tempos

aparentemente ainda se conserva. Mas isso é apenas uma camu-

flagem da situação real. Na verdade, a vida política desse país –

bem como a de todos os demais – é determinada pela luta e pelas

aspirações de grupos de pressão. Nos Estados Unidos, continuam

a existir um Partido Republicano e um Partido Democrata,

mas cada um deles abriga representantes dos mesmos grupos de

pressão. Estes representantes estão mais interessados em cooperar

com outros representantes do mesmo grupo, mesmo que sejam

filiados ao partido adversário, que com os esforços dos próprios

companheiros de partido.



Assim, por exemplo, se conversarmos nos Estados Unidos com

pessoas que efetivamente conheçam as atividades do Congresso,

elas nos dirão: “Tal político, tal membro do Congresso representa

os interesses dos grupos ligados à prata”. Ou dirão que tal outro

político representa os plantadores de trigo. Como é óbvio, cada um

desses grupos de pressão constitui, necessariamente, uma minoria.

Num sistema baseado na divisão do trabalho, todo grupo especial

que almeja privilégios não pode deixar de ser uma minoria. E as minorias

não têm qualquer possibilidade de êxito, senão pela colaboração

com outras minorias congêneres, ou seja, com outros grupos

de pressão semelhantes. Nas assembleias legislativas, procura-se

compor uma coalizão entre vários grupos de pressão, de tal modo

que possam vir a se converter em maioria. Mas, passado algum tempo,

essa coalizão pode se desintegrar, uma vez que há questões que

tornam impossível o acordo entre vários grupos. Novas coalizões,

então, se formam.



Foi o que ocorreu na França em 1871, numa situação que se configurou,

aos olhos dos historiadores, como “a queda da Terceira República”.

Não se tratou, porém, de um declínio da Terceira República;

houve simplesmente uma mostra de que o sistema de grupos

de pressão não é algo que se possa aplicar com sucesso ao governo

de uma grande nação.



Temos, nos órgãos legislativos, representantes do trigo, da carne,

da prata, do petróleo, mas, antes de tudo, de diversos sindicatos. Só

uma coisa não está representada no legislativo: a nação como um

todo. Apenas vozes isoladas se põem ao lado do conjunto da nação.



E todos os problemas, mesmo os de política exterior, são encarados

do ponto de vista dos interesses especiais dos grupos de pressão.

Nos Estados Unidos, alguns dos estados de menor população estão

interessados no preço da prata. Mas nem todos os habitantes

desses estados têm esse interesse. Todavia, o país despendeu, por

muitas décadas, considerável soma de dinheiro, à custa dos contribuintes,

para comprar prata a um preço superior ao do mercado.



Para mencionar mais um exemplo, só uma pequena parcela da população

norte-americana dedica-se à agricultura; o restante é constituído

por consumidores – não produtores – de produtos agrícolas.

Não obstante, esse país tem uma política que envolve o gasto de

bilhões e bilhões de dólares com a finalidade de manter os preços

dos produtos agrícolas acima do preço potencial de mercado.

Não se pode dizer que esta é uma política de favorecimento de

uma pequena minoria, visto que esses interesses agrícolas não são

uniformes. Os que se dedicam à produção de leite não estão interessados

num alto preço para os cereais; ao contrário, prefeririam

que esse produto fosse mais barato. Um criador de galinhas desejaria

um preço mais baixo para a ração que compra. Há muitos

interesses específicos incompatíveis no interior desse grupo, por

pequeno que seja. E apesar de tudo, uma hábil diplomacia cria

condições que permitem a pequenos grupos obterem privilégios

a expensas da maioria. Uma situação especialmente interessante

nos Estados Unidos relaciona-se ao açúcar. Talvez apenas um

dentre quinhentos norte-americanos esteja interessado num preço

mais alto para o açúcar. Provavelmente os outros 499 querem um

preço mais baixo. Contudo, a política do país empenha-se, mediante

tarifas e outras medidas especiais, numa elevação do preço

do açúcar. Essa política não prejudica somente os interesses dos

499 que são consumidores de açúcar: gera também um gravíssimo

problema de política exterior. O objetivo da política exterior norte-

americana é a cooperação com todas as demais repúblicas. Ora,

algumas delas têm interesse em vender açúcar aos Estados Unidos

e desejariam vendê-lo em maiores quantidades. Este exemplo

ilustra como os interesses dos grupos de pressão são capazes de

determinar até mesmo a política exterior de uma nação.


Ao longo de anos, em todas as partes do mundo, se tem escrito

sobre democracia – sobre o governo popular representativo.

Esses textos trazem queixas das deficiências do regime, mas a democracia

que criticam é apenas aquela em que o intervencionismo

é a política que rege o país.



Hoje, poderíamos ouvir as seguintes palavras: “No princípio do

século XIX, nos parlamentos da França, Inglaterra, Estados Unidos

e outras nações, faziam se pronunciamentos sobre os grandes problemas

da humanidade. Lutava-se contra a tirania, pela liberdade,

pela cooperação com todas as outras nações livres. Mas hoje somos

mais práticos no parlamento!”. Não há dúvida de que somos mais

práticos; hoje não se fala sobre liberdade; fala-se sobre a majoração

do preço do amendoim. Se isso é ser prático, então é óbvio que os

parlamentos mudaram consideravelmente, mas não para melhor.

Essas mudanças políticas, fruto do intervencionismo, reduziram

consideravelmente o poder que tem as nações e os representantes

para resistir às aspirações de ditadores e às ações de tiranos. Há representantes

em órgãos legislativos exclusivamente interessados em

satisfazer eleitores que desejam, por exemplo, um preço alto para o

açúcar, para o leite e para a manteiga, e um preço baixo para o trigo

(subsidiado pelo governo). Estes parlamentares nunca poderão representar

verdadeiramente o povo: jamais lhes será possível representar

a totalidade de seu eleitorado.



Os eleitores favoráveis a esses privilégios não levam em conta

que há também outros eleitores, com posições totalmente divergentes,

que, tendo pretensões diametralmente opostas, não permitem

que seus representantes tenham um êxito absoluto.

Acresce que este sistema, além de, por um lado, trazer um constante

aumento dos gastos públicos, dificulta, por outro, o estabelecimento

de impostos. Esses representantes dos grupos de pressão

almejam muitos privilégios especiais para seus respectivos grupos,

mas não desejam onerar suas bases de sustentação política com uma

carga tributária demasiado pesada. Não era ideia dos fundadores do

moderno governo constitucional, no século XVIII, que um legis97

lador devesse representar não o conjunto da nação, mas apenas os

interesses específicos do distrito em que fora eleito. Essa foi, aliás,

uma das consequências do intervencionismo. Segundo a concepção

original, cada membro do parlamento deveria representar toda a nação.

Era eleito em determinado distrito somente porque ali era bem

conhecido, sendo escolhido por pessoas que nele confiavam.



Mas não se pretendia que esse representante ingressasse no

governo com o objetivo de proporcionar algo especial para seu

eleitorado, para reivindicar uma nova escola, um novo hospital

ou um novo manicômio – causando assim considerável elevação

dos gastos governamentais no seu distrito. Os grupos políticos de

pressão permitem entender por que é quase impossível, a quase

todos os governos, deter a inflação. Quando as autoridades eleitas

procuram restringir despesas, limitar gastos, os que defendem

interesses especiais – uma vez que serão beneficiários diretos de

determinados itens do orçamento – apresentam-se para declarar

que tal projeto específico não pode ser posto em prática, ou que tal

outro deve ser implementado.



A ditadura, claro, não é solução para os problemas econômicos,

como não é resposta para os problemas da liberdade. Um ditador

pode começar fazendo toda a sorte de promessas, mas, ditador que

é, não as cumprirá. Em vez disso, suprimirá imediatamente a liberdade

de expressão, de tal modo que os jornais e os oradores no

parlamento já não possam assinalar – nos dias, meses ou anos subsequentes

– que no primeiro dia de sua ditadura, ele dissera algo

diverso do que passou a praticar dali por diante.



A terrível ditadura que um país tão importante como a Alemanha

foi obrigada a sofrer no passado recente vem-nos à mente

quando consideramos o declínio da liberdade em tantos países, nos

nossos dias. A triste consequência é a deterioração da liberdade e

a decadência da nossa civilização, de que tanto se fala hoje em dia.

Diz-se que toda civilização acabará, finalmente, por entrar em

processo de deterioração e de desintegração. Tal ideia tem eminentes

defensores. Um deles foi um professor alemão, Spengler,

e outro, muito mais conhecido, foi o historiador inglês Toynbee.

Eles nos asseveram que nossa civilização já está velha. Spengler

comparou a civilização a plantas que crescem, crescem, mas cujas

vidas finalmente se encerram. O mesmo, diz ele, se aplica às civilizações.

A aproximação metafórica entre uma civilização e uma

planta é completamente arbitrária.

Antes de mais nada, é muito difícil distinguir no próprio âmbito

da história da humanidade, civilizações diferentes, independentes.

As civilizações não são independentes; são interdependentes, exercendo

umas sobre as outras constante influência. Não se pode, portanto,

falar de declínio de uma civilização do mesmo modo como se fala

da morte de determinada planta.



Mas, mesmo refutando-se as doutrinas de Spengler e Toynbee,

resta ainda uma comparação muito usual: a comparação entre civilizações

em deterioração. Não há dúvida de que, no século II

DC, o Império Romano gerou uma florescente civilização, a qual se

constituiu na mais elevada das que se desenvolveram nas regiões da

Europa, Ásia e África. Houve concomitantemente elevadíssima civilização

econômica, baseada num certo grau de divisão do trabalho.

Embora esta civilização econômica possa parecer extremamente

primitiva quando comparada às condições atuais, ela teve características

certamente notáveis. Alcançou o mais alto grau de divisão

do trabalho jamais atingido até o advento do capitalismo moderno.

Não é menos verdade que essa civilização se deteriorou, sobretudo

no século III. E foi esta desintegração no seio de seu império que

tornou impossível aos romanos resistirem à agressão externa. Embora

esta agressão não fosse pior que outras muitas vezes repelidas

nos séculos precedentes, os romanos já não tiveram condições de

lhe opor resistência, desgastados que estavam pelo que se passara no

interior do seu império.



Que acontecera? Qual teria sido o problema? Qual poderia ter

sido a causa de desintegração de um império que, sob todos os aspectos,

construíra uma civilização sem outra que se lhe igualasse

até o século XVIII? A verdade é que essa civilização foi destruída

por algo semelhante, quase idêntico, aos perigos que rondam

hoje a nossa civilização: por um lado houve intervencionismo; por

outro, inflação. O intervencionismo no Império Romano consistia

no fato de que, seguindo o modelo político dos seus predecessores

gregos, os romanos impunham o controle dos preços. Era

um controle brando, praticamente sem consequências, porque,

durante séculos, não se procurou reduzir os preços a um nível

abaixo de seu nível de mercado.



Quando a inflação teve início, no século III, os romanos ainda

não dispunham dos nossos recursos técnicos para promovê-la – não

tinham como imprimir dinheiro. Lançavam mão do método que

consistia em enfraquecer o teor da liga metálica com que se cunhavam

as moedas, sem dúvida um sistema de inflacionar muito menos

eficaz que o atual, que pode, através de modernas máquinas impressoras,

destruir com tanta facilidade o valor do dinheiro. Mas seu

antigo método era eficiente o bastante para surtir o mesmo efeito,

ou seja, para exercer o controle de preços. Deste modo, os preços

que as autoridades toleravam passaram a estar abaixo do preço potencial

a que a inflação elevara as várias mercadorias.



O resultado, obviamente, foi que a oferta de produtos alimentícios

nas cidades reduziu-se. As populações urbanas foram obrigadas

a retornar ao campo e às atividades agrícolas. Os romanos nunca se

deram conta do que estava ocorrendo. Não compreenderam. Não

tinham desenvolvido instrumentos mentais que lhes permitissem

interpretar os problemas da divisão do trabalho e as consequências

da inflação no mercado de preços. Tinham, no entanto, clareza suficiente

para reconhecer o quanto era nefasta aquela inflação e deterioração

da moeda corrente.



Os imperadores, então, baixaram leis que proibiam o deslocamento

dos habitantes da cidade para o campo, mas tais leis não tiveram

efeito. Aliás, não havia lei capaz de impedir que as pessoas

que passavam fome, pois nada tinham para comer, abandonassem

a cidade e retornassem à agricultura. O habitante da cidade já não

podia trabalhar nas indústrias urbanas de processamento como artesão.

Os prejuízos dos mercados nas cidades eram tais que já se

tornara impossível comprar qualquer mercadoria.


Assim, do século III em diante, as cidades do Império Romano

entraram em decadência, e a divisão do trabalho tornou-se muito

mais precária que a de antes. Finalmente, o sistema medieval da

casa de família auto-suficiente, a villa, como foi chamada em leis

posteriores, emergiu. Portanto, se compararmos nossas condições

com as do Império Romano, teremos razões para dizer: “Iremos pelo

mesmo caminho”. Há muitos fatos semelhantes. Mas há também

enormes diferenças, que não estão relacionadas com a estrutura; política

dominante na segunda metade do século III. Nesse período,

havia o assassinato de um imperador a cada três anos em média. O

assassino ou o responsável pela morte tornava-se seu sucessor. Cerca

de três anos depois, a história se repetia. Diocleciano, quando

tornou-se imperador, no ano 284 DC, tentou por algum tempo, sem

sucesso, resistir à deterioração do Império.



As diferenças entre as condições atuais e as de Roma do século

III são enormes, porque as medidas que causaram a desintegração

do Império Romano não foram premeditadas. Não eram, eu diria,

medidas assumidas em consequência de doutrinas condenáveis mas

bem formalizadas. As ideias intervencionistas, as ideias socialistas,

as ideias inflacionistas de nossos dias foram engendradas e formalizadas

por escritores e professores. E são ensinadas nas universidades.

Poder-se-ia então observar: “A situação atual é muito pior’’.



Eu respondo: “Não, não é pior”. É melhor, na minha opinião, porque

ideias podem ser derrotadas por outras ideias. Ninguém duvidava,

na época dos imperadores romanos, de que a determinação de

preços máximos era uma boa política, e de que assistia ao governo o

direito de adotá-la. Ninguém discutia isso.



Mas agora, quando temos escolas, professores e livros prescrevendo

tais e tais caminhos, sabemos muito bem que se trata de um

problema a discutir. Todas essas ideias nefastas que hoje nos afligem,

que tornaram nossas políticas tão nocivas, foram elaboradas

por técnicos do meio acadêmico. Um famoso autor espanhol falou

a respeito da “revolta das massas”. Devemos ser muito cuidadosos

no uso desse termo, porque essa revolta não foi feita pelas massas:

foi feita pelos intelectuais, que, não sendo homens do povo, elaboraram

doutrinas. Segundo a doutrina marxista, só os proletários têm

boas ideias, e a mente proletária, sozinha, engendrou o socialismo.



Todos esses autores socialistas, sem exceção, eram “burgueses”, no

sentido em que eles próprios, socialistas, usam o termo.

Karl Marx não teve origem proletária. Era filho de um advogado.

Não precisou trabalhar para chegar à universidade. Fez seus

estudos superiores do mesmo modo como o fazem hoje os filhos das

famílias abastadas. Mais tarde, e pelo resto de sua vida, foi sustentado

pelo amigo Friedrich Engels, que – sendo um industrial –, era

do pior tipo “burguês”, segundo as ideias socialistas. Na linguagem

do marxismo, era um explorador.



Tudo o que ocorre na sociedade de nossos dias é fruto de ideias,

sejam elas boas, sejam elas más. Faz-se necessário combater as más

ideias. Devemos lutar contra tudo o que não é bom na vida pública.

Devemos substituir as ideias errôneas por outras melhores,

devemos refutar as doutrinas que promovem a violência sindical.

É nosso dever lutar contra o confisco da propriedade, o controle

de preços, a inflação e contra tantos outros males que nos assolam.

Ideias, e somente ideias, podem iluminar a escuridão. As boas ideias

devem ser levadas às pessoas de tal modo que elas se convençam de

que essas ideias são as corretas, e saibam quais são as errôneas. No

glorioso período do século XIX, as notáveis realizações do capitalismo

foram fruto das ideias dos economistas clássicos, de Adam

Smith e David Ricardo, de Bastiat e outros. Precisamos, apenas,

substituir más ideias por ideias melhores. A geração vindoura conseguirá

fazer isso. Não apenas espero que assim seja: tenho mesmo

muita confiança neste futuro. Nossa civilização, não está condenada,

malgrado o que dizem Spengler e Toynbee. Nossa civilização

sobreviverá, e deve sobreviver. E sobreviverá respaldada em ideias

melhores que aquelas que hoje governam a maior parte do mundo,

ideias que serão engendradas pela nova geração.



Já considero um ótimo sinal o simples fato de eu hoje estar aqui,

nesta grande cidade que é Buenos Aires, a convite deste centro, falando

sobre a livre economia. Há cinquenta anos atrás, ninguém no

mundo ousava dizer uma palavra sequer em favor de uma economia

livre. Hoje, em alguns dos países mais avançados do mundo, já temos

instituições que são centros para a propagação destas ideias

Infelizmente, não me foi possível dizer muito sobre essas questões

tão importantes. Seis palestras podem ser excessivas para um

auditório, mas não são bastantes quando se quer expor toda a filosofia

que embasa o sistema de livre economia. Por outro lado,

certamente não são bastantes para que se possa refutar tudo o que

de insensato vem sendo escrito, nos últimos cinquenta anos, acerca

dos problemas econômicos de que estamos tratando.



Estou muito agradecido a este centro pela oportunidade de me

dirigir a tão distinta plateia e espero que, dentro de alguns anos,

o número dos defensores das ideias em prol da liberdade tenha

crescido consideravelmente, neste e em outros países. Quanto a

mim, tenho plena confiança no futuro da liberdade, tanto política

quanto econômica.
 

Goris

Ei mãe, 500 pontos!
Mensagens
21.829
Reações
76.870
Pontos
553
Ótimo topico, como deixe ele passar em branco?

Enviado de meu MotoG3 usando Tapatalk
 

Flango Chines

Bam-bam-bam
Mensagens
1.387
Reações
2.494
Pontos
293
Ótimo topico, como deixe ele passar em branco?

Enviado de meu MotoG3 usando Tapatalk

Como muita gente provavelmente não conhece Mises, resolvi postar o livro mais básico.
Mas acho que a maioria da galera não curtiu muito o Wall of Text.
Pelo menos fica aqui como referência para quem quiser ler ou encontrar parte do texto facilmente.
 

Goris

Ei mãe, 500 pontos!
Mensagens
21.829
Reações
76.870
Pontos
553
Eu mesmo só comecei a ler, é bastante coisa e hoje andei ocupado.

Mas o esquema de separar é ótimo, ajuda ajuda saber até onde li.
 


-Mauricio

Ei mãe, 500 pontos!
Mensagens
2.865
Reações
6.462
Pontos
703
Muitos amigos que leram Mises passaram a seguir o Instituto.

Muito bom. Leiam também Hayek, Friedman, Rothbard, Kinsella...
 

Flango Chines

Bam-bam-bam
Mensagens
1.387
Reações
2.494
Pontos
293
Eu mesmo só comecei a ler, é bastante coisa e hoje andei ocupado.

Mas o esquema de separar é ótimo, ajuda ajuda saber até onde li.

É uma leitura bem rápida e didática, já que são transcrições de palestras.
Vale a pena baixar do site.
Fica bem bonitinho, parecendo livro.

Muitos amigos que leram Mises passaram a seguir o Instituto.

Muito bom. Leiam também Hayek, Friedman, Rothbard, Kinsella...

Teve quem não passou a seguir?
O que alegaram?
 

-Mauricio

Ei mãe, 500 pontos!
Mensagens
2.865
Reações
6.462
Pontos
703
É uma leitura bem rápida e didática, já que são transcrições de palestras.
Vale a pena baixar do site.
Fica bem bonitinho, parecendo livro.



Teve quem não passou a seguir?
O que alegaram?

Dos meus amigos não.

Mas já discuti com pessoas que disseram que leram Mises, mas que continuam a falar que o problema é o capitalismo. Ou essas pessoas não pensam muito bem ou elas são beneficiárias do Estado (burocratas, cotistas, servidores públicos, políticos, bolsistas etc.)
 
Topo Fundo