Incriminados na delegacia
O soldado Adair entrou na PM em 2011 e já respondeu a 15 procedimentos de investigação interna por má conduta, que resultaram em oito punições. Em duas oportunidades, foi punido com detenção. A última em 2017, quando agrediu uma vítima de roubo. Já o soldado Khaique está na PM desde 2016 e, até a ação daquele dia, não tinha respondido a nenhum inquérito policial militar.
Um laudo pericial feito dois dias depois do episódio na padaria pelo Instituto Geral de Perícias, o IGP, em Balneário Camboriú, cidade vizinha a Itajaí, constatou diversas lesões corporais no casal. Beatriz apresentava fratura no dente, lesões nos braços e no tórax, escoriações nos lábios, hematomas na boca e no ouvido direito. A comerciante relatou em depoimentos que ficou uma semana sem audição no ouvido direito. O laudo aponta ainda que ela estava com o olho direito inchado, com “leve restrição de abertura”, sinalizando uma “hemorragia conjuntival à direita”. Em Antônio, o IGP constatou lesões no nariz e na boca e um hematoma de cor “verde” no olho esquerdo.
O delegado que recebeu a ocorrência dos PMs descartou os crimes de associação ao tráfico, tráfico e desobediência e indiciou o casal por resistência e desacato, com espaço para saída sob fiança. O inquérito foi parar na mesa do promotor Luis Eduardo Couto de Oliveira Souto, de Itajaí, que denunciou o casal pelos mesmos crimes. Souto nos disse por e-mail que não foi informado da existência da gravação que mostra as agressões dos policiais e que não a assistiu antes de encaminhar a denúncia à justiça.
A ação dos PMs na delegacia não impediu o casal de denunciar o caso. Em depoimento na 2ª Delegacia de Polícia de Itajaí seis dias após a abordagem, Beatriz relatou as agressões. Esse boletim de ocorrência deu origem a outra denúncia do Ministério Público – desta vez contra os PMs que agrediram Beatriz e Antônio. Meses depois, em depoimento à Corregedoria da PM, contou que uma viatura passou a ficar parada na esquina da padaria em dias alternados, com faróis apagados.
Com acesso às mesmas provas que os colegas da promotoria de Itajaí, os promotores responsáveis pela denúncia contra Adair e Khaique, ligados a uma área do MP que lida exclusivamente com as forças de segurança do estado, avaliaram o que qualquer um com acesso ao vídeo é capaz de determinar: que ação foi “covarde e desproporcional”. Para a promotoria, os PMs incluíram informações falsas no boletim de ocorrência ao afirmarem que existiram xingamentos, resistência e agressão física por parte de Antônio e Beatriz com o intuito de “criar um cenário capaz de justificar suas condutas”.
A denúncia do MP afirma que as agressões físicas ocorreram porque “os policiais iniciaram a discussão com as vítimas, as quais estavam no estabelecimento comercial de sua propriedade e seu local de trabalho”.
Os PMs Adair e Khaique foram denunciados por falsidade ideológica, lesão corporal e violência arbitrária. Além das agressões, o Ministério Público os denunciou por terem inserido informação falsa no BO na delegacia com o intuito de mascarar a truculência e justificar a sua ação contra os comerciantes. A denúncia foi recebida pela Vara Militar em 13 de novembro de 2020.
O MP pediu ainda que a Corregedoria-Geral da PM abra um Procedimento Administrativo Disciplinar contra os policiais, já que o comando local considerou legítima a ação dos PMs, e pediu que seja analisado o afastamento de Adair e Khaique das funções operacionais e imediata submissão deles a tratamento psicológico “em vista da violência empregada e descontrole emocional na situação”.
Em depoimento à corregedoria da PM, uma funcionária da padaria relatou que foi abordada por dois policiais um mês depois das agressões. Ela e o marido estavam indo para o trabalho, às 4h30, quando passaram pela dupla. Os policiais abordavam pessoas na rua e pararam o casal de moto. Após identificar que a funcionária trabalhava na padaria de Beatriz, o policial perguntou há quanto tempo ela trabalhava lá e se havia presenciado a prisão dos proprietários. A funcionária também afirmou ter visto duas vezes uma viatura parada na esquina da padaria com os faróis apagados. Segundo Beatriz, essa funcionária teria relatado a ela que o policial que a parou na rua seria o soldado Khaique.
Outra funcionária, que estava grávida no dia das agressões e presenciou a cena, contou em depoimento que um dos policiais jogou um frasco de vidro de pimenta que ficava em cima do balcão da padaria em sua direção, mas não a acertou. O vidro, segundo ela, se espatifou na parede. Ao passar ao lado do PM Adair para sair da padaria, conta ter sido atingida por um jato de spray de pimenta lançado pelo policial e chamada de “vagabunda”. Ela relatou só ter sido liberada após falar três vezes ao soldado Khaique: “moço, eu estou grávida”.
Em denúncia apresentada contra os PMs em 6 de novembro de 2020, o Ministério Público de Santa Catarina afirma que houve uso incorreto do spray de pimenta, desrespeitando a distância mínima, o que “poderia ter causado conjuntivite, cegueira e até a morte da vítima”.
‘Uso progressivo da força’
O caso que levou a duas denúncias distintas do MP foi encaminhado ainda ao Comando da Polícia Militar em Itajaí. Mesmo com a gravação e os depoimentos contraditórios dos policiais, a corregedoria entendeu que a ação foi correta. Na conclusão do inquérito nº 410/IPM produzido pelo capitão Rafael Marcon e aprovado pelo tenente-coronel Alfredo Von Knoblauch, o Comando da PM de Itajaí considerou que os policiais Adair e Khaique aplicaram o “uso pogressivo da força”, que não houve “indícios de crime” e muito menos “transgressão disciplinar”.
“A despeito das gravações da câmera serem fortes, tendo em vista ter sido realizado o uso progressivo da força, entendemos que foram necessárias para fazer cessar as agressões perpetradas por Beatriz, bem como para evitar uma tragédia tendo em vista a mesma ter se agarrado no armamento do policial militar”, afirma o texto.
Beatriz e Antônio continuam respondendo ao processo aberto na 2ª Vara Criminal de Itajaí por desacato e resistência. A denúncia assinada pelo promotor Souto não deixa claro se o casal agrediu os dois policiais ou um deles, não traz informações sobre os laudos periciais e não especifica qual foi a base de informação para essa conclusão.
Por e-mail, Souto justificou que mesmo sob “eventual excesso” dos policiais, os atos de Beatriz e Antônio ainda podem ser enquadrados em crimes previstos em lei. “Cabe ressaltar que eventual excesso praticado pelos agentes públicos não torna, por si só, atípica as condutas perpetradas pelos denunciados, sobretudo porque as versões trazidas pelas partes serão discutidas durante a instrução criminal, oportunidade em que serão avaliadas as provas”, afirmou.
Em fevereiro de 2021, os comerciantes entraram com uma ação contra o estado de Santa Catarina por danos morais e responsabilidade da Administração Pública no valor de R$ 35 mil. No último despacho, de 25 de fevereiro, a justiça solicitou cópia do vídeo da ocorrência e intimou as partes envolvidas para saber se há interesse em realizar audiência por videoconferência por causa da pandemia.
Por mensagem, Beatriz nos respondeu que já contou a sua história à Corregedoria da PM e que dois advogados acompanham o caso. Também procuramos uma das advogadas de Beatriz e Antônio, que nos informou que o casal prefere não comentar as agressões.
O Comando da Polícia Militar de Santa Catarina não comentou a atuação dos policiais registrada no vídeo e nos respondeu por e-mail que o caso está “devidamente finalizado no âmbito institucional, agora transcorre na esfera judiciária”. Segundo a PM, eles “não foram afastados pois não tem nenhum prejuízo processual sobre os mesmos”.
Os dois PMs seguem trabalhando no atendimento de ocorrências por telefone no Centro de Operações Policiais Militares de Itajaí.