Guimarães destaca que um medicamento ou uma vacina contém relativamente poucos componentes. No caso dos medicamentos, são os princípios ativos e outros ingredientes farmacêuticos que revestem o produto.
Já algumas vacinas têm ainda uma substância que potencializa a produção de anticorpos, chamada de adjuvante. "Tanto no caso de medicamentos quanto no de vacinas, a Índia e a China dominam o mercado mundial de princípios ativos", afirma.
O pesquisador afirma que todos os países com indústria farmacêutica dependem de princípios ativos indianos e chineses, mesmo os mais ricos, ainda que tenham certa produção local. "No caso das vacinas, os países que as produzem localmente (no Brasil, o Butantã e a Fiocruz), também dependem da China e da Índia, como se vê no caso da vacina Oxford/AstraZeneca", diz.
Para Denise Garrett, epidemiologista e vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, a autossuficiência em vacinas pode ser uma realidade em alguns países, mas não será a do Brasil e nem de muitas nações no caso do coronavírus. "A pressão no momento é para que se compre doses prontas porque não dá para esperar".
O processo de transferência de tecnologia para produção local é complexo. No caso da Coronavac, envolveria a aprendizagem de manipular o princípio ativo, que é o vírus inativado que faz a vacina. "Teria que aprender a inativar esse vírus, que é um processo crucial e dependendo da maneira que isso ocorre, pode ter problemas. É algo que demanda tempo, aprendizado, técnicos irem para o local, virem para o Brasil, uma troca de conhecimento complexa".
Ela explica que o País não pode se dar ao luxo de ter uma produção nacional no atual momento, mas defende que esse deve ser um objetivo a longo prazo. O Brasil tem autossuficiência em vacinas como a da influenza e da febre amarela, enquanto outros países detêm tecnologias referentes a outras vacinas. "Alguns países são autossuficientes para algumas vacinas, outros para outras. Depende da vacina e da tecnologia".
Ela explica que até mesmo uma quebra de patente, que permitiria a produção em outros locais, levaria tempo porque as novas vacinas precisam passar por testes. "Será uma produção nova e é preciso fazer estudos novamente".
Se houvesse investimentos desde o início da pandemia, o Brasil poderia ter desenvolvido uma vacina própria, avalia Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência. "Temos expertise, profissionais capacitados, excelentes cientistas, duas grandes fábricas, um dos melhores programas de imunização no mundo", diz. "Combinando tudo isso com investimento adequado o Brasil poderia sim ter produzido sua própria vacina do zero e não ficar dependendo de ninguém para importar".
Autossuficiência como objetivo
No artigo 'Autossuficiência em vacinas: a história de uma utopia', o pesquisador Luiz Jacintho da Silva, doutor em medicina preventiva pela USP e então professor na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, afirma que a autossuficiência é uma "questão ultrapassada num mundo globalizado". "Mas dispor de um complexo industrial e de pesquisa para o desenvolvimento e a produção de imunobiológicos é uma questão de segurança nacional, percebida e reconhecida por governos tão diferentes como os dos Estados Unidos e de Cuba", destaca.
Em comparação com Rússia, Índia e China, outras potências regionais, o autor afirmou que o Brasil é o mais distante da autossuficiência. "Os demais adotaram políticas rígidas de defesa da indústria autóctone, e hoje é praticamente impossível vender vacinas nesses países sem estabelecer acordos de transferência de tecnologia".