Aos 88 anos, Eva Schloss, amiga de infância de Anne Frank, afirma que mundo não aprendeu nada com o nazismo
Entrevista com
Eva Schloss, escritora e sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz
Jamil Chade, correspondente em Genebra, O Estado de S.Paulo
04 Fevereiro 2018 | 05h00
GENEBRA - “O ódio está fazendo com que tenhamos um clima muito parecido ao que existia nos anos 30, às vésperas da 2.ª Guerra.” O alerta é de
Eva Schloss, sobrevivente do
Holocausto e amiga de
Anne Frank. Nos últimos anos, ela se dedicou a falar sobre os horrores da guerra. Agora, para que sua mensagem permaneça, ela fez parte de um projeto que transformará sua imagem em holograma, que correrá escolas de todo o mundo condenando a intolerância. A seguir, trechos da entrevista ao
Estado:
Aos 88 anos, o que leva a sra. a contar sua história pelo mundo?
O mundo está vivendo um período de insegurança. Muito ódio, preconceito e conflitos ao mesmo tempo. Parece o tempo de Hitler. O ódio está fazendo com que tenhamos um clima parecido ao que existia nos anos 30, às vésperas da Segunda Guerra.
Hoje, há muito preconceito. Claro, o fenômeno do terrorismo faz as pessoas terem medo. Foi incrível ver Angela Merkel receber 1 milhão de refugiados. No início, a população aceitou. Mas depois de alguns atentados, o clima mudou.
A ascensão da extrema direita na Alemanha lhe preocupa?
Claro! E muito. Mas não se trata apenas de um problema da Alemanha. Vemos isso na Hungria, na Áustria, na Holanda, na França. Hoje, eles não são maioria ainda. Esperamos que mudanças ocorram, que as pessoas sejam razoáveis.
O mundo não aprendeu com a guerra?
Não. As pessoas não aprenderam nada. Em tecnologia, demos um salto incrível. Mas temos uma outra cultura. O mundo viu a chegada de uma abundância inédita. Mas as pessoas se tornaram ainda mais mesquinhas. Os bancos hoje ganham com nosso dinheiro e, ao mesmo tempo, não dão de volta nenhum tipo de juros aos clientes que depositam suas economias. Isso tudo leva ao ódio e à corrupção.
Sobrevivente do Holocausto, Eva Schloss foi amiga de Anne Frank Foto: ACTION PRESS/PM VIRO
Sempre teremos de ser lembrados dos horrores para evitá-los?
Você ficaria surpreso com as coisas que vejo pelo mundo. No ano passado, estive no Japão e fiquei impressionada com o fato de eles não conhecerem nada de história, muito menos sobre o que ocorreu na Europa. Espero que um dia a sociedade mude e não haja mais a necessidade de falar em ódio. Mas, até la, precisamos repetir essa mensagem e lembrar o que ocorre quando levamos o ódio ao extremo.
Antes de ser deportada para um campo de concentração, o que se sabia sobre Auschwitz?
Não sabíamos que seríamos divididos, que nossa família seria desmembrada. Sabíamos da existência de Auschwitz, que ali estavam morrendo milhares de judeus. Não éramos autorizados a escutar a BBC. Mas, mesmo assim, era deles que ouvíamos as histórias dos campos de concentração.
Quais são suas memórias de quando chegou ao campo?
Ficamos em choque quando colocaram homens de um lado e mulheres de outro. Não sabíamos que isso ocorreria. As mulheres foram para Birkenau, enquanto os homens foram para Auschwitz. Eram próximos. Mas, obviamente, para nós, eram dois mundos separados. Foi um momento horrível. Dar adeus a seu próprio pai, sem saber se jamais voltaria a vê-lo. Lembro-me apenas de ele dizer: Eva, Deus vai te proteger.
Como era a vida no campo?
Os guardas nos acordavam cedo. Não havia relógios, não sabíamos que dia era. Mas isso não fazia diferença. Todos os dias eram iguais. Ficávamos diante das camas, de pé. Enquanto isso, os soldados contavam quantas pessoas estavam no campo. Isso levava duas horas. Só depois é que recebíamos o café da manhã, um líquido que não tinha gosto de nada. Depois, nos levavam para trabalhar. Não havia comida durante o dia. Não havia pausa e, no verão, nossas cabeças raspadas pareciam aumentar o calor. Tive queimaduras na cabeça. Ao voltar para as barracas, ficávamos de pé, diante das camas, enquanto os soldados voltavam a contar. O jantar não passava de um pedaço de pão.
No que a sra. pensava antes de dormir?
Era desesperador. Por dois anos, antes de sermos capturados, ficamos escondidos. Eu já entendia que era perseguida por ser judia. Eles nos diziam que viveríamos assim até o último de nossos dias. E isso não demoraria a chegar. Eu sabia que eu não aguentaria muito. No fim, tive sorte. No dia 27 de janeiro de 1945, Auschwitz foi libertada pelos russos. Nem todos tiveram essa sorte. Alguns campos foram libertados meses depois e as pessoas não aguentaram. Anne Frank e sua irmã foram levadas de Auschwitz e colocadas em um campo que seria libertado muito depois. Se ela tivesse ficado, teria sobrevivido. Em janeiro, pelo que sabemos, ela ainda estava bem. Ela morreu em março.
O que a sra. lembra dela?
Nunca a vi no campo de concentração. Eram muitos os setores e não nos misturavam com as pessoas que chegavam. Para você ter uma ideia, não sabíamos nem mesmo sobre o Dia D ou que alguns países estavam sendo libertados. Quando conheci Anne, tínhamos 11 anos. Ficamos amigas, como duas meninas que se encontram para brincar.
Vocês eram parecidas?
Não. Eu era quieta e envergonhada. Eu já tinha sido alvo de antissemitismo e de perseguição. Ela abandonou tudo na Alemanha quando ainda tinha 4 anos. Portanto, conseguiu evitar o sofrimento inicial. A família dela se estabeleceu em Amsterdã. Ela tinha muita confiança em si mesma. Ela era interessada nos meninos, gostava muito de roupas. Era vaidosa. Eu era mais um estilo moleque, bem diferente. Mas éramos próximas. Por dois anos, estivemos juntas, até que nossas famílias se esconderam em locais diferentes.
Para vocês, o que era a guerra?
No começo, não falávamos disso. Tínhamos de estar em casa antes das 20 horas por conta do toque de recolher. Não gostávamos. Mas, às vezes, isso nos permitia dormir na casa da outra, ficar por mais tempo juntas. Mas, depois que tivemos de nos esconder, tudo mudou. Acho que antes não tínhamos consciência do perigo em que estávamos. E, claro, nossos pais nos mentiam constantemente para nos proteger.
Nos anos 50, o pai de Anne se casou com sua mãe. Como foi sua relação com ele?
Eu tinha a impressão de que, quando ele me olhava, tentava entender como sua filha não tinha conseguido sobreviver.
http://internacional.estadao.com.br...e-hoje-lembra-muito-o-dos-anos-30,70002176552[/QUOTE]
Uma pessoa que viveu as duas épocas deve ser necessariamente respeitada. Desdenhar a vivência dela é uma clara demonstração de ignorância exagerada.
Ainda assim, enxergar as semelhanças não autoriza que fechemos os olhos para as diferenças. Isso porque o ódio a certos grupos de pessoas sempre vai lembrar o dos anos 30, diante do tamanho da tragédia daquela época. Mas será que esse tipo de comportamento só aconteceu no período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial?
É bom lembrar que, nos anos 60, ainda havia o "separados, mas iguais" nos EUA.
Nos anos 70, houve o caso Skolkie naquela mesma nação.
Nos anos 90, os distúrbios de Los Angeles tiveram pano de fundo racial (lembro-me de como as cenas eram pesadas quando transmitidas pelo telejornal).
Nos anos 90, no Brasil, também havia o ódio a nordestinos pelos "skinheads" (como eram chamados pela imprensa).
A guerra da Bósnia também se deu nos anos 90 e em plena Europa (conflito que envolveu fortemente um ódio étnico-religioso-nacionalista).
Por que estou falando isso? Porque, atualmente, registram-se muitos casos de manifestação de ódio contra minorias étnicas (marcha com neonazistas nos EUA, onda de xenofobia na Europa, etc.), mas não tenho certeza se é uma repetição do passado remoto ou mais recente.
Além disso, sempre existe um contexto e, como muitos falaram aqui, o século XXI está marcado por atentados terroristas nos grandes centros ocidentais, o que poderia explicar uma maior expressividade nessa manifestação do ódio.
Ao mesmo tempo, também pode ser que, atualmente, a difusão dos meios de comunicação acabem por acentuar a percepção desse fenômeno.
Em suma, mesmo a opinião dela sendo embasada por alguém que vivenciou as duas épocas, ainda tenho dúvidas se a análise que ela fez vislumbrou o cenário geral (semelhanças e diferenças).
No fim, vale o alerta, mesmo se tiver sido exagerado. Manter incólume a sofisticada democracia ocidental é uma tarefa diária, complexa e, muitas vezes, contra-intuitiva. Exige grandeza, altruísmo e vigilância perene para que os instintos não sejam capazes de sobrepujar os valores que consagramos como auto-evidentes. Nos períodos de grande crise, aqueles valores são postos à prova de maneira mais contundente.