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O legado Obama
Em oito anos, primeiro presidente negro dos EUA recuperou a economia e melhorou a imagem do país; aumento da desigualdade e omissão na Síria estão entre fracassos
LUCIANA COELHO
EDITORA DE “MUNDO”
15.jan.2017 - 02h00
Um legado sempre é refém das expectativas que lança.
Sob essa régua, Barack Hussein Obama, 55, o 44º presidente dos Estados Unidos, estará em desvantagem quando, neste 20 de janeiro, deixar a Casa Branca.
Passaram-se 2.922 dias desde que o político havaiano então com 47 anos discursou para 1,8 milhão de pessoas em Washington numa manhã fria de 2009. Pediu responsabilidade coletiva sobre os rumos do país. A esperança que inspirava surtiu efeitos concretos.
Um deles é a imagem dos EUA no exterior. Segundo pesquisa do instituto Pew, 63% dos entrevistados em dez países têm imagem positiva dos EUA, e 77% deles dizem confiar em Obama. Sob George W. Bush (2001-09), apenas entre britânicos e poloneses a visão positiva dos EUA predominava.
O outro é o poder do democrata de, em tempos de ceticismo, inspirar com palavras e despertar interesse por política. Sobretudo os jovens, entre os quais sua taxa de apoio permanece acima de 70%, apesar das batalhas perdidas em uma queda de braço constante com um Congresso majoritariamente opositor.
Isso não minimiza o fato de que ele foi incapaz de reduzir a desigualdade, o que levou parte significativa desse eleitorado a preterir, nas primárias democratas de 2016, a candidata de Obama, Hillary Clinton.
Para os americanos, segundo aferiu o Gallup, Obama fracassou, entre outras áreas, no combate à criminalidade; o que fez pelos direitos civis de gays e lésbicas foi mencionado como um dos maiores avanços.
Essa ideia de uma nação que acolhe todos e faz disso sua força foi repetida no discurso final de Obama, na última terça (10), no qual lembrou que a democracia só se sustenta com respeito a vozes dissonantes.
O público aponta ganhos também no campo da energia e na questão climática, e, mais modestamente, na economia, com o estancamento da crise e a melhoria do nível de emprego.
Para a América Latina, onde passou boa parte de seus mandatos ausente, fica como herança maior o restabelecimento paulatino das relações com Cuba, algo que seu sucessor não deve reverter.
O carisma de Obama, seu apreço pelas câmeras e o antagonismo com Donald Trump devem impedi-lo de sumir de cena. Na era da pós-verdade, sua pós-presidência será crucial para agigantá-lo ou apequená-lo.
ESPERANÇA
Barack Obama se tornou o 44º presidente dos EUA em 20/1/2009 sob a bandeira da esperança e a expectativa de agir, como diria 11 meses depois ao receber o Nobel da Paz, para tornar a história mais justa.
Avaliar seu legado sem o distanciamento do tempo pode levar a leituras equivocadas. Passados oito anos, a esperança deu lugar à dúvida, inflada pelo prospecto de um sucessor com ideias muito distintas das suas.
Obama assumiu um país em profunda crise econômica e cuja política externa era refém das guerras travadas no Afeganistão e no Iraque.
Ambos os fardos borraram a imagem dos EUA e limitaram seu poder de influência, ainda que sua hegemonia geopolítica tenha prevalecido.
No comércio, a China ganhava o centro do palco; em temas como mudança climática, Europa e Brasil se tornavam a voz ressonante; e, em direitos humanos, Washington se tornou alvo de críticas por causa da prisão de Guantánamo.
A crise passou, mas seus resultados ainda são sentidos por muitos; aos poucos o país se retirou das guerras, embora seus drones ainda bombardeiem civis e a violência da guerra na Síria contamine a região; Osama bin Laden foi morto, mas a ameaça terrorista, não. E Guantánamo permanece aberta, ainda que com menos detentos.
Feitos importantes, como a ascensão da questão climática ao topo da agenda e o equilíbrio da relação com a China, incluindo uma nova aliança comercial entre Washington e os vizinhos asiáticos de Pequim, carecem de impacto imediato visível.
Mais grave, o primeiro presidente negro dos EUA deixa o cargo com 52% dos cidadãos afirmando que o país retrocedeu na questão racial, segundo pesquisa feita neste mês pelo Gallup. A América pós-racial de seus discursos, como admitiu no último deles, nunca chegou a existir.
Obama conclui seu mandato sem ter conseguido ser o líder transformador que ambicionava. Mostrou-se, porém, um dedicado presidente de transição.
Para Joseph Nye, professor de Harvard cujos livros esmiúçam o poder e a Presidência dos EUA e que assim classificou Obama, isso não é necessariamente ruim: mais vale um operador hábil que conduza o país em meio a crises, escreveu, do que alguém que mude a rota para uma tormenta pior.
Obama em 5.mar.2008, aos 46 anos, como pré-candidato democrata (Dan Winters)
AS FOTOS
O fotógrafo Dan Winters fez a foto de 2008 a pedido da revista “Time”, logo após uma derrota de Obama. Na noite anterior, em 4 de março, o então senador e pré-candidato presidencial havia perdido a primária democrata do Estado do Texas para sua rival, Hillary Clinton.
Em julho de 2016, Winters foi convidado pela revista “New York Magazine” a fotografar novamente Obama, agora presidente em seu segundo mandato.
A operação descrita pelo fotógrafo faz lembrar um filme de Hollywood.
Para tirar o máximo dos cinco minutos dados pela Casa Branca para a sessão de fotos, Winters relata que viajou a Washington uma semana antes da data.
No dia marcado, ele e sua equipe passaram quase cinco horas ajustando luzes e equipamentos para que nada saísse errado na hora de receber o presidente.
POLÍTICA INTERNA
Popularidade do presidente sobrevive a promessas não cumpridas
RAUL JUSTE LORES
DE SÃO PAULO
15.jan.2017 - 02h00
Com a eleição de Donald Trump, que passou anos questionando se Barack Obama era estrangeiro, e a derrota de Hillary Clinton, para quem ele e sua mulher, Michelle, participaram de diversos comícios, pode parecer que o atual presidente sairá por uma porta secundária da Casa Branca.
Ainda mais com as promessas de Trump de acabar com vários programas e leis aprovados pelo antecessor.
Mas a popularidade do primeiro presidente negro do país raramente esteve tão alta. Pesquisas apontam que Obama tem uma aprovação de 56% na reta final do segundo mandato.
Nos últimos 50 anos, apenas dois antecessores saíram mais em alta, de acordo com levantamento do instituto Gallup: Bill Clinton (66%) e Ronald Reagan (60%). George W. Bush, o antecessor imediato, saiu com 29% de aprovação.
“A recuperação econômica foi aumentando a popularidade dele aos poucos”, disse à Folha o cientista político Arthur Lupia, professor da Universidade de Michigan.
“Mas o que o fez subir quase dez pontos no último ano, sem dúvida, foi a campanha horrenda que tivemos, de acusações e bravatas infantis dos dois lados. Perto dos concorrentes, ele era um adulto, moderado, cauteloso. Com tanto escândalo de Trump e Hillary, Obama virou um político exemplar até para quem não gostava dele.”
A recuperação econômica até favoreceu um dos grupos mais refratários ao presidente: a classe média branca com mais de 60 anos de idade.
“As Bolsas de Valores tiveram muitos ganhos nos últimos três anos. Como boa parte dos fundos de pensões e nossos aposentados investem em ações, certamente estão todos mais ricos que em 2008, quando o mercado desmoronou.”
Mas diversas promessas de campanha jamais foram cumpridas.
Além da prisão de Guantánamo ainda aberta, ele não conseguiu legalizar ou criar uma reforma imigratória abrangente para 11 milhões de imigrantes sem papéis, nem aumentar o salário mínimo, tampouco ampliar o controle da venda de armas ou aprovar a licença-maternidade paga obrigatória —é facultativa para as empresas.
Apesar de o desemprego ter baixado a 4,7% em dezembro, o que os economistas chamam de “pleno emprego” (tinha chegado a 10% em outubro de 2009, ainda pelos efeitos da grande recessão de 2008), a recuperação foi desigual: nas cidades grandes e nos Estados das duas costas, a economia está quase totalmente recuperada, ainda que a renda não tenha subido muito.
Mas nos Estados do Meio-Oeste, do Sul evangélico e do “cinturão da ferrugem”, que vem se desindustrializando desde os anos 80, o desemprego ainda é alto e a renda caiu mais, na troca de empregos nas linhas de montagem (que eram bem pagos) por funções em serviços, de supermercados a lanchonetes, com baixos salários.
A revolução tecnológica do Vale do Silício só chega a Detroit, Cleveland ou Saint Louis na figura de mais robôs substituindo operários.
OBAMACARE
Já o programa-símbolo de seu governo e do qual o presidente mais se orgulha, o sistema universal de saúde (Obamacare), acabou sugando o oxigênio de Obama para outras empreitadas.
Para a esquerda democrata (e para o próprio Obama), deveria ter sido criado uma espécie de INSS americano, uma agência federal que recebesse as contribuições e operasse o sistema; para a direita republicana, sempre se tratou de um novo imposto que encareceria os atuais planos para subsidiar generosamente as minorias e imigrantes sem cobertura médica (com tons raciais quase abertamente admitidos).
Como Obama não conseguiu convencer nem a bancada do seu partido a criar a agência, o acordo retalhou sua visão. Acabou saindo um programa que obriga todos os americanos adultos a comprarem um plano de saúde (com mais jovens saudáveis pagando, a conta seria repartida). De acordo com a renda, você recebe os subsídios (se for pobre) ou deduz de impostos (classe média baixa).
Obama considerou uma vitória, pois há 50 anos diferentes governos tentaram aprovar algo parecido.
Trump chegou a dizer que manteria “algumas partes do plano”, mas já tem trabalhado para desmontá-lo por completo.
AMBIENTE
A política ambiental ganhou muito destaque no segundo mandato. O Acordo de Paris, o primeiro na história em que 196 países concordaram em reduzir as emissões de gases, deve-se muito à diplomacia de Obama em convencer a China sobre os benefícios mútuos. Seu antecessor, George W. Bush, tinha se negado a assinar o Acordo de Kyoto, em 2001.
Em um país onde quase metade da população se declara “cética” com a mudança climática, foi na política doméstica que a agenda ambientalista foi mais assertiva e polêmica.
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A era Obama
5.nov.2008 - O então presidente eleito Barack Obama discursa para uma multidão de apoiadores em Chicago e agradece a vitória nas urnas (Timothy A. Clary - 5.nov.2008/AFP)
20.jan.2009 - Obama (à esq.) faz o juramento à Constituição americana e toma posse como o 44º presidente dos Estados Unidos; à dir., sua mulher, Michelle, e as filhas Sasha e Malia (Chuck Kennedy - 20.jan.2009/AFP)
20.jan.2009 - O casal Obama dança valsa no baile da posse (Brian Snyder - 20.jan.2009/Reuters)
20.mar.2011 - A família Obama visita o Cristo Redentor, no Rio, durante a passagem do presidente americano pelo Brasil (Pablo Martinez Monsivais - 20.mar.2011/Associated Press)
20.mar.2011 - Obama e Michelle assistem a uma apresentação de capoeira na Cidade de Deus, no Rio (Shana Reis - 20.mar.2011/Divulgação)
20.mar.2011 - Durante sua visita ao Rio de Janeiro, Obama joga futebol com crianças da Cidade de Deus (Jason Reed - 20.mar.2011/Reuters)
20.mar.2011 - Obama discursa para convidados no Theatro Municipal do Rio, no centro da cidade, durante sua visita ao Brasil (Lalo de Almeida - 20.mar.2011/Folhapress)
1º.mai.2011 - Obama em pronunciamento à nação sobre a captura e morte de Osama bin Laden durante operação militar americana no Paquistão (Pablo Martinez Monsivais - 1º.mai.2011/Associated Press)
26.out.2012 - A primeira-dama Michelle Obama fala em comício em Las Vegas durante a campanha de reeleição do marido (John Gurzinski - 26.out.2012/AFP)
28.out.2012 - O presidente e candidato à reeleição reage ao perceber que discou o número de telefone errado durante mutirão de ligações na campanha de 2012 (Pablo Martinez Monsivais - 28.out.2012/Associated Press)
6.nov.2012 - Obama, acompanhado da mulher e filhas, comemora sua reeleição em festa em Chicago (Spencer Platt - 6.nov.2012/AFP)
30.jun.2015 - A então presidente Dilma Rousseff e Obama falam à imprensa durante visita da brasileira à Casa Branca; Dilma cancelou uma visita de Estado em 2013 após a revelação de que ela foi alvo de espionagem americana (Roberto Stuckert Filho - 30.jun.2015/PR)
21.mar.2016 - Obama brinca com o ditador cubano, Raúl Castro, depois de entrevista coletiva em Havana, parte dos eventos da primeira visita de um presidente americano em exercício à ilha comunista em 88 anos (Ramon Espinosa - 21.mar.2016/Associated Press)
27.mai.2016 - Obama participa de cerimônia no memorial das vítimas da bomba atômica em Hiroshima acompanhado do primeiro-ministro japonês Shinzo Abe; foi a primeira visita de um presidente americano em exercício à cidade na qual, em 1945, os EUA lançaram a bomba atômica (Carolyn Kaster - 27.mai.2016/Associated Press)
7.out.2016 - Obama vota antecipadamente, em Chicago, nas eleições de 2016, quando apoiou a democrata Hillary Clinton, que terminou derrotada pelo republicano Donald Trump (Jim Watson - 7.out.2016/AFP)
26.dez.2016 - Durante suas férias de Natal, Obama costuma ir ao Havaí, Estado onde nasceu; aqui, ele joga golfe em clube na cidade de Kailua (Hugh Gentry - 26.dez.2016/Reuters)
27.dez.2016 - Em outro fato inédito, o premiê Shinzo Abe torna-se o primeiro líder do Japão a visitar o memorial instalado sobre os destroços do navio USS Arizona, em homenagem às vítimas do ataque japonês à base de Pearl Harbor, no Havaí, durante a Segunda Guerra Mundial (Nicholas Kamm - 27.dez.2016/AFP)
10.jan.2017 - Obama se emociona em seu discurso de despedida, em Chicago, cidade onde sua carreira política teve início. “Sim, nós fizemos”, disse o presidente, em referência ao lema da campanha de 2008 (“Sim, nós podemos”) (Joshua Lott - 10.jan.2017/AFP)
Sem conseguir aprovar novas leis no Congresso, Obama passou a mexer em regulações ou lançar mão de ordens executivas, uma espécie de decreto presidencial, para dificultar a vida dos poluidores.
Trump já nomeou um cético do aquecimento global para dirigir a Agência de Proteção Ambiental e indicou que não gosta das proibições de se explorar petróleo no Ártico.
JUSTIÇA
Seus dois procuradores-gerais —que nos EUA equivalem ao ministro da Justiça–-, Eric Holder e Loretta Lynch, ambos negros, fizeram mudanças importantes —de reverter a política de privatização de prisões federais a relaxar o indiciamento por uso de drogas.
Extinguiram o confinamento em solitária para menores de 21 anos e passaram a proibir que a maioria das agências federais inclua em entrevistas de emprego a pergunta “já esteve preso?”.
O relaxamento ou substituição de sentenças em oito anos da gestão foi maior que a dos oito antecessores juntos. Ambos determinaram que policiais federais não agissem nos Estados que aprovaram o uso recreativo da maconha, “um laboratório de ideias que precisam ser testadas”, segundo Holder.
Lynch determinou a investigação de vários departamentos de polícia locais por racismo. O número de presidiários no país começou a cair pela primeira vez desde os anos 70 em 2010.
Mas muito do sistema judicial e policial está fora do domínio federal, cabendo aos Estados e municípios.
O procurador-geral de Trump, Jeff Sessions, senador pelo Alabama, é contrário ao aborto, legal desde 1973, e foi impedido na magistratura nos anos 80 por declarações racistas.
DIVERSIDADE
Nos temas de diversidade, Obama fez alguns progressos. As duas novas juízas da Corte Suprema que ele indicou são mulheres, uma delas a latina Sonia Sotomayor.
Brigou para que todos os métodos anticoncepcionais fossem incluídos pelos planos cobertos no Obamacare —mesmo os pagos por empresas ou fundações religiosas.
“A primeira lei assinada por Obama foi a de equidade salarial para as mulheres. O Congresso não regulamentou e acabou virando simbólica”, diz a professora Kelly Dittmar, da Universidade Rutgers.
“No segundo mandato, quando ele já estava governando por decretos presidenciais, sem passar pelo Congresso, ele determinou que todos fornecedores do governo federal tivessem pagamento igualitário.”
Mas ficaram várias promessas por cumprir. “A licença-maternidade paga que ele defendia, a responsabilidade por creche para os filhos, dias pagos para mães que precisam ficar em casa para cuidar da criança doente, o Congresso jamais aprovou”, lembra Dittmar.
“E ele deveria ter sido mais enfático na defesa dos direitos reprodutivos das mulheres, sempre atacados neste país, apesar da legalização do aborto”, finaliza.
FEZ OU NÃO FEZ?
Sim, ele pôde
* O desemprego caiu de 10% (2009) a 4,7% (dezembro), o PIB cresce e o deficit foi reduzido. O sistema financeiro e a indústria automobilística foram salvos, mas, vale dizer, a retomada foi incapaz de reverter a desigualdade e criar opções de emprego e renda em regiões que fecharam indústrias, o que ajudou na vitória de Trump
* Vetou a construção de oleodutos, impôs à indústria automobilística limites de emissões nos novos modelos e fechou ou dificultou o funcionamento de minas e usinas de carvão
* Na política externa, Obama pode se orgulhar de três feitos: a morte de Bin Laden, o restabelecimento das relações com Cuba e o acordo nuclear com o Irã
* Carismático, conectado e disposto a compor cenas com potencial de viral, Obama soube trabalhar sua imagem e foi um dos presidentes americanos mais pop
Há controvérsias
Para 22 milhões, o Obamacare deu a primeira cobertura de consultas e exames, sem carência, e com contribuição baixa; para dezenas de milhões que já tinham cobertura, significou altas em planos, hospitais e médicos
Não, ele não pôde
* Após mais uma chacina no país, Obama enviou ao Congresso projeto para controlar a venda de armas. Nem o Senado, onde então tinha maioria, aprovou
* Sem conseguir aprovar a reforma imigratória no Congresso, ficou distante de um caminho para dar cidadania a 11 milhões de imigrantes sem papéis
* Ameaçou o ditador sírio Bashar al-Assad, depois mudou de ideia, e cruzou os braços enquanto a guerra matava mais
POLÍTICA EXTERNA
Acordos com Cuba e Irã são êxito; omissão na guerra síria, fracasso
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO
15.jan.2017 - 02h00
Em junho de 2014, conversando com jornalistas no avião presidencial, o Air Force One, o presidente Barack Obama resumiu sua estratégia para a política externa dos Estados Unidos: “Não faça besteira”.
Ao assumir em 2009, Obama havia herdado de George W. Bush um caminhão de “besteiras”: os conflitos no Iraque e no Afeganistão, duas guerras intermináveis e altamente impopulares.
Obama se elegeu com a promessa de tirar os EUA dessas guerras e não se enfiar em nenhuma outra.
“Desde a Segunda Guerra, alguns dos nossos erros mais caros não vieram do nosso comedimento, mas sim da nossa precipitação ao mergulharmos em aventuras militares sem pesar as consequências”, resumiu Obama em um discurso na academia militar de West Point, em 2014.
Segundo a “doutrina Obama”, os EUA não fariam intervenções militares em nações que não representassem uma ameaça direta à segurança do país. O governo americano trabalharia em conjunto com aliados, usaria “proxies” (outros países ou milícias) para combater os inimigos, como os soldados curdos no Iraque, ou faria ataques “cirúrgicos” com drones.
Mas essa mesma cautela no uso do poder militar americano, bem-vinda após anos de excessos de Bush, pode comprometer o legado de Obama na política externa americana.
“Inação pode ser uma besteira trágica”, disse à Folha Scott Lucas, professor de política internacional da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. Lucas se refere à omissão de Obama no conflito da Síria, que já matou quase 500 mil pessoas desde seu início, em 2011, e levou 4,8 milhões a deixarem o país.
A recente queda de Aleppo —os rebeldes, muitos deles apoiados pelos EUA, foram derrotados pelas forças do ditador Bashar al-Assad apoiadas pela Rússia e pelo Irã— pode ter manchado de forma irreversível a “doutrina Obama”.
Em 2012, o presidente americano advertiu Assad, com palavras duras, de que o uso de armas químicas seria “uma linha vermelha” que desencadearia mudança de ação por parte dos EUA.
Um ano depois, foram divulgados fortes indícios de que Assad havia usado armas químicas contra civis em Ghouta. Mesmo assim, Obama resolveu não intervir.
Para muitos, isso minou a credibilidade de Obama e a reputação dos EUA, embora seja difícil prever se uma intervenção naquela época teria feito diferença.
“A Síria é a Ruanda de Obama”, disse à Folha Dennis Jett, ex-embaixador dos EUA em Moçambique e no Peru e professor de relações internacionais na Pennsylvania State University. Quando houve o genocídio de 800 mil pessoas em Ruanda em 1994, os EUA decidiram não intervir e isso passou para a história como um dos grandes erros do governo Bill Clinton.
“Por que nós não derrubamos os aviões do regime sírio que estavam jogando bombas de barril nos civis e nos hospitais? Em Ruanda, pelo menos havia a desculpa de que não se sabia o que estava acontecendo; com a Síria, Obama não pode dizer que não sabe do massacre.”
Obama também é criticado por não ter fornecido armas suficientes para a oposição a Assad.
O presidente insiste que uma intervenção militar americana não teria impedido a carnificina nem abreviado a guerra. E que apoiar a oposição moderada a Assad e buscar soluções diplomáticas foi o melhor caminho.
“Eu sempre me sinto responsável e me pergunto todos os dias: há alguma coisa que eu possa fazer que irá salvar vidas?”, disse Obama, em sua última entrevista coletiva. “Mas não dava para resolver essa crise facilmente sem mandar para lá um grande número de soldados americanos”, disse.
“O que levou o conflito sírio a se estender e o tornou tão sangrento não foi a decisão do presidente Obama de não intervir, foi a decisão dos russos e dos iranianos de intervir”, afirmou à Folha o subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, Thomas Shannon.
Em 2011, Obama tinha sido compelido por alguns de seus assessores, pelo Reino Unido e pela França a fazer uma intervenção na Líbia. Ele se arrependeu e prometeu não mais ser sugado para conflitos.
Após a derrubada do ditador Muammar Gaddafi, houve um breve período de paz e a Líbia mergulhou no caos. Hoje, tem três governos, guerra civil, fronteiras sem fiscalização e impunidade para os traficantes de pessoas e armas.
“Fica uma imagem de um líder muito avesso a riscos e que não se dispunha a exercer o poder americano; de que os EUA deixaram de ser a potência indispensável”, aponta Aaron Miller, pesquisador do Woodrow Wilson Center que foi assessor de seis secretários de Estado em assuntos de Oriente Médio.
“Mas isso não é totalmente verdadeiro —ele recebeu um legado muito ruim e fez o que era possível.”
PAZ E GUERRA
Para muitos, a Síria não vai impedir Obama de entrar para a história como um grande líder que deixou sua marca no cenário global.
Em seu discurso inaugural, ele afirmou aos “inimigos” dos EUA: “Se vocês estiverem dispostos a se abrir, nós estenderemos a mão”.
Foi exatamente isso que ele fez ao reaproximar o país de Cuba e assinar o acordo nuclear com o Irã, dois feitos históricos.
Em dezembro de 2014, Obama anunciou a reaproximação entre Cuba e EUA, 53 anos após os dois países terem rompido relações diplomáticas. Oito meses depois, foi reaberta a embaixada americana em Havana e no final deste ano, pousou na capital cubana o primeiro voo comercial regular entre os dois países.
Já o acordo nuclear entre EUA, Reino Unido, Rússia, França, China e Alemanha, de um lado, e o Irã, foi anunciado em 2015.
Após uma série de sanções, o Irã concordou em aceitar inspeções em suas instalações nucleares, reduzir seu estoque de combustível nuclear e limitar o enriquecimento de urânio. Em troca, conseguiu “descongelar” bilhões de dólares em receita de exportação de petróleo e outros bens. O acordo pelo menos adiou o momento em que o país poderá ter suas armas nucleares, abrindo uma corrida armamentista na região.
Além de tirar os EUA do Iraque —e em grande parte do Afeganistão, onde restam poucas tropas–-, Obama ordenou a arriscada operação que resultou na morte de Osama bin Laden no Paquistão.
Não se pode dizer que o Nobel da Paz de 2009 foi um pacifista, como provocam os “falcões” americanos: bombardeou ao menos sete países usando drones.
Só em 2016, segundo relatório do Council on Foreign Relations, os EUA despejaram 26 mil bombas pelo mundo.
Sob Obama, o terrorismo cresceu. Cada vez mais ousado e letal, o Estado Islâmico nasceu e prosperou a partir do caos deixado pelos EUA no Iraque.
GUANTÁNAMO E TRUMP
Mesmo tarefas inacabadas tiveram grande impacto.
Ao assumir, em 2009, Obama prometeu fechar a prisão na base de Guantánamo, em Cuba, onde os EUA mantêm desde 2002 detentos acusados de participar de atividades terroristas, muitos deles sem acusação formal ou direito a julgamento.
O democrata tentou várias vezes acabar com a prisão, mas sempre foi bloqueado pelo Congresso americano. Mesmo assim, foi fechando Guantánamo a conta-gotas, ao acelerar a transferência de presos para países dispostos a recebê-los. Quando assumiu, herdou de Bush 242 detentos na prisão. Deve deixar o cargo com apenas 42.
O enigma é saber se Trump irá reverter essas iniciativas. Ele prometeu “encher” Guantánamo “com uns caras maus” e reinstituir a tortura como forma de interrogar suspeitos.
Grande parte da aproximação dos EUA com Cuba se deu a partir de decretos presidenciais de Obama —as medidas não seriam aprovadas pelo Congresso, de maioria republicana. Esses decretos podem ser desfeitos por Trump.
O acordo com o Irã é mais complexo, porque teve a participação de outros países. Mesmo assim, Trump pode lentamente deixar o acordo definhar e voltar a aplicar sanções contra o país.
BRASIL
Espionagem revelada em 2013 foi trauma na relação com Brasília
ISABEL FLECK
DE SÃO PAULO
15.jan.2017 - 02h00
Assim que veio à tona, em setembro de 2013, a revelação de que os EUA teriam espionado a presidente Dilma Rousseff, o governo brasileiro reagiu com “indignação” e cancelou a primeira visita de Estado que um mandatário brasileiro faria ao país após quase duas décadas.
O mal-estar só pareceria dissipado um ano e nove meses depois, quando Dilma afirmou, em visita à Casa Branca, que as coisas haviam “mudado” desde o escândalo. Em troca, ouviu de Barack Obama que o Brasil é, para os EUA, uma potência global.
O episódio da espionagem foi certamente o mais marcante na relação entre os dois países durante a era Obama. E, apesar de, em 2013, até mesmo opositores terem considerado a resposta do governo adequada, hoje muitos afirmam que o ressentimento brasileiro durou mais do que deveria.
O atual embaixador do Brasil em Washington, Sergio Amaral, é um dos que questiona se o governo brasileiro deveria ter mantido o “resfriamento” da relação por tanto tempo. “Esse episódio, de certa forma, serviu como escusa para uma postura anterior de desconfiança [em relação aos EUA]”, diz Amaral.
Assim que assumiu o Itamaraty, José Serra afirmou que a diplomacia brasileira não seguiria mais “preferências ideológicas de um partido político”, mas o ex-chanceler (2011-2013) e ex-embaixador nos EUA (2007-2009) Antonio Patriota contesta a versão de que havia resistência aos EUA durante os governos Lula e Dilma.
“Nunca houve uma posição ideológica de descuidar do mundo desenvolvido. O que ocorreu é que, no governo Lula, houve um período de muita criatividade diplomática e ela foi exercida predominantemente no processo de integração sul-americano”, diz.
Para o ex-chanceler, inclusive, foi a boa “base” criada na relação bilateral desde os governos de George W. Bush e Lula que ajudou a superar o desafio do escândalo de espionagem.
O obstáculo, contudo, não foi o único nos últimos oito anos. O fato de o governo Obama não ter encampado o Acordo de Teerã, alcançado entre Brasil, Turquia e Irã em 2010, mesmo tendo sinalizado de forma positiva anteriormente, causou “estranhamento” em Brasília.
Não ajudou também a escolha, pelo Brasil, dos caças suecos Gripen NG em detrimento dos F-18, da Boeing —pelos quais o próprio Obama havia feito lobby durante sua visita ao Brasil com a família em 2011.
À Folha, o ex-embaixador no Brasil e atual subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, Thomas Shannon, disse que a ligação entre as sociedades dos dois países ajudou a manter o diálogo em meio a essas “situações difíceis”.
“Essa diplomacia social é o que nos levou a superar todas essas coisas, o problema do Acordo de Teerã, quando houve divergências significativas entre nosso governo e o governo Lula em relação ao Irã, e, depois, com [Edward] Snowden [que revelou a espionagem].”
A postura dos dois lados foi de manter o foco nas “convergências”, com a assinatura de acordos de cooperação nas visitas de Obama ao Brasil, em 2011, e de Dilma aos EUA em 2015.
Interlocutores americanos e brasileiros avaliam que, nos dois últimos anos da gestão Obama, especialmente após a reaproximação entre os EUA e Cuba, mas também com a mudança de governo no Brasil, a relação retomou o espaço que havia perdido.
Para Amaral, abriram um “novo capítulo” na relação bilateral as mudanças dos EUA “na linha do que a gente preconizava”, como Cuba, e a “maturidade alcançada” agora no que ele diz ter sido sempre uma “política pendular” do Brasil em relação aos EUA.
Colaborou Patrícia Campos Mello
Link: http://arte.folha.uol.com.br/mundo/2017/o-legado-obama/#/brasil