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Abro esse tópico aqui no VT na esteira do que já existe na pasta 'Política e Religião' (sequer sei por que foi aberto lá). A razão é a de dar mais exposição ao debate. Já adianto que será um wall of text, mas pode valer a pena para quem se interessar sobre a ascensão e queda do MJ e tiver estômago para ver o documentário. Antes de mais nada, alguns disclaimers:
a) Minha opinião não é imparcial, e não quero convencer ninguém sobre coisa alguma. Apenas postar minhas impressões sobre o assunto;
b) Minha perspectiva é a de alguém que cresceu no auge do sucesso do Michael Jackson, durante os anos 80, e que acompanhou sua derrocada ao longo da década seguinte (ou seja, tenho memórias que ajudam a colocar a coisa toda sob contexto);
c) Quem quiser ver o documentário, que o faça de mente aberta. O viés de confirmação vai escudar os dois lados (tanto os 'die hard fans' quanto quem crê na sua culpa). A neurociência hoje em dia já admite que mesmo fatos concretos pouco influem num debate, e mudanças de posicionamento são raras. Em outras palavras, as pessoas tendem a acreditar naquilo que lhes convém, selecionando fatos da narrativa que corroborem seu ponto de vista. De qualquer forma, se quiser permanecer um fã sem ganhar a semente da dúvida, não assista.
d) Quem quiser pular todo o histórico, pode ir direto a "E sobre o documentário em si?", em negrito mais abaixo.
Quem cresceu nos anos 80, deve se recordar do status do Michael Jackson no período imediatamente pós-Thriller (1982). Apesar dele já ter certa fama desde os anos 70, primeiro com o Jackson 5 (renomeado The Jacksons), e em seguida, com a carreira solo, o que se seguiu a partir dali transcende a imaginação. Com quase 50 milhões de álbuns vendidos (dependendo da fonte, o mais vendido da história), aquilo o colocou num nível de estrelato que não se via desde os Beatles. Nenhum - repito, nenhum - artista contemporâneo dos últimos 30 anos sequer chega perto de ter a dimensão dele em seu auge. Não é exagero dizer que chegou a ser a personalidade mais popular da face da Terra. O videoclipe de Thriller marcou minha infância, e tenho certeza, a de um número incontável de pessoas. Ele era idolatrado, um semideus para um sem-número de pessoas.
Bom, realmente não me recordo do que aconteceu entre os anos de 1982 a 87, ano em que saiu o álbum Bad. Não havia internet naquela época, e as notícias seguiam um rumo consideravelmente mais lento, especialmente fora dos grandes centros. Mas me lembro do seguinte: de como fiquei chocado (eu e todo mundo) com a mudança de aparência dele da época de 'Thriller' para 'Bad': de um sujeito negro com traços relativamente normais para um branco com feições muito mais delicadas. Pouca gente entendia o porquê, e ele era acusado simplesmente de negar a própria raça. Hoje se sabe que ele realmente sofria de vitiligo (e provavalmente lúpus, segundo diversas fontes), e possivelmente usou cremes branqueadores para adquirir um tom de pele mais uniforme ao longo do tempo. De qualquer forma, como se soube depois, ele também tinha problemas de auto-aceitação, o que pode ter sido fator primordial para as 'N' cirurgias plásticas que se submeteu.
Ponto é que, desde o acidente sofrido por ele durante a gravação de comercial da Pepsi em 1984 - e que, segundo alguns, o levou ao vício em analgésicos -, diversas coisas estranhas sobre seu comportamento errático passaram ao escrutínio público. Como ele foi tratado numa câmera hiperbárica para se recuperar das queimaduras e teria gostado do resultado, fontes diziam que ele adquiriu o equipamento para aumentar sua longevidade. E de fato, existem diversas fotos dele aparentemente dormindo em uma (aqui, aqui e aqui). Há mesmo quem diga que foi o próprio que vazou a história, um mero golpe publicitário para chamar a atenção para um álbum de sucessos que seria lançado em 1986 (Anthology, creio).
Não somente: nessa época, o cantor também passava muito tempo com o chimpanzé Bubbles, teria comprado os ossos do Homem-Elefante e era obcecado com a atriz Elizabeth Taylor (de quem foi amigo até sua morte). Nessa época, os tablóides lhe deram o apelido de Wacko Jacko. Ele já se incomodava bastante com a falatório sobre sua vida, e acusava a mídia de exagerar factoides. Tanto que um dos singles de Bad ganhou um clipe dedicado a parodiar essa atenção, e dizia com todas as letras: Leave Me Alone
Digamos que ali pelo início dos anos 90, MJ já era mais conhecido pelas excentricidades que pela sua música, apesar do sucesso comercial. Nessa época, ele estava longe dos melhores dias, e já não era o maior ato musical da Terra, posto que passou primeiro ao Guns 'n Roses e, logo em seguida, ao Nirvana. Pouca gente era seu fã declarado, como se vê hoje em dia, mesmo que o ouvisse 'às escondidas'. Em outras palavras, meio que 'pegava mal' se declarar fã do sujeito. Tenho a lembrança vívida de estar numa loja em Orlando durante uma viagem em julho de 1993, pensando se devia comprar 'Dangerous', já que certamente seria zoado se meus amigos soubessem. Mandei mentalmente todo mundo se foder e comprei mesmo assim, já que gostava da música do cara (também levei 'Nevermind').
Pois bem, foi no mês seguinte que veio a primeira acusação de haver molestado uma criança, Jordan Chandler. Até então, apesar de tudo, ninguém o considerava uma ameaça. O nível de cobertura do evento foi extraordinário, e o fato dele haver acertado uma indenização extrajudicial fez com que a grande maioria do público aceitasse como fato consumado que Jackson fosse, de fato, pedófilo. O ato teria sido uma espécia de 'cala boca', digamos, uma admissão de culpa. A versão da defesa era que os pais do menino queriam basicamente dinheiro, e que a forma mais rápida de se resolver o assunto e diminuir os danos à carreira dele seria por meio de um acordo. Na prática, a imagem dele nunca seria a mesma; o escárnio alcançou níveis estratosféricos, e ele virou uma espécie de piada ambulante. Como se sabe, nos anos que se seguiram, Michael Jackson virou um recluso no Rancho Neverland, se casou e se divorciou duas vezes - primeiro com Lisa Marie Presley, depois com Debbie Rowe, sua enfermeira - e teve três filhos. Se são realmente filhos dele é uma outra história.
Essa estado de coisas durou até 2003. Como muitos sabem, a fim de limpar a própria barra e por sugestão do amigo e celebridade Uri Geller, Michael entrou em contato com o jornalista britânico Michael Bashir, que havia feito uma entrevista bombástica com a Princesa Diana anos antes, para fazer um documentário sobre sua vida com acesso irrestrito (dado sua reserva com a imprensa, foi algo extraordinário). Naquele ano, estreou Living With Michael Jackson.
Aquilo foi o início do fim. Pode-se até alegar que a edição de Bashir foi controversa e parcial. Mas é inegável que seu comportamento bizarro foi escancarado. Mostrou uma pessoa com sérios desequilíbrios, incapaz de enxergar como era inadequado um sujeito de 40 anos partilhar sua cama com uma criança. Seus fãs mais dedicados diziam que isso apenas mostrava seu nível de ingenuidade, mas depois de tudo que já havia passado, insistir naquele comportamento só podia lhe trazer mais problemas. E assim ocorreu. A quem ainda não viu, só posso recomendar, nem que seja como introdução à Leaving Neverland (em inglês):
O programa foi o estopim para que a polícia do condado de Santa Bárbara abrisse novo processo contra Jackson, tendo por base a acusação do jovem Gavin Arvizo de que teria sido molestado. O garoto, de 13 anos à época, era um os vários convidados para visitar Neverland, e havia superado um câncer. No programa, aparece de mãos dadas com ele, e depõe favoravelmente. Após um longo julgamento ao longo do ano de 2005, que contou com diversas testemunhas, uma das quais é protagonista de Leaving Neverland, MJ foi inocentado de todas as acusações. Apesar de haver diversos indícios, sem um testemunho forte de outra vítima, a promotoria não conseguiu levar a acusação adiante. Abalado, Michael se tornou um verdadeiro eremita daí em diante. Só reapareceu na mídia em 2009, quando planejava a turnê final de sua carreira, This Is It. Como sabemos, pouco antes dos shows estrearem, por overdose de medicamentos.
E sobre o documentário em si?
Melhor fazê-lo em base de FAQ.
Por que esses camaradas resolveram dar o depoimento agora, anos depois de MJ estar morto? E sem poder se defender?
Os dois depoentes, Wade Robinson e James Safechuck, entraram com uma ação contra o espólio de MJ a partir de 2013, pedindo indenização por danos morais por abuso sexual durante a infância. Na verdade, Wade entrou antes, e Safechuck o acompanhou depois. A ação foi desconsiderada sem se analisar o mérito em si, visto que o juiz que julgou a ação alegou que o prazo para se apresentá-la já havia expirado há anos. De qualquer forma, pelo que se vê no documentário, é razoável supor que não apenas tinham um vínculo emocional fortíssimo com Michael, mas que o temiam.
Então foi por dinheiro?
É o que alegam os detratores do documentário: os representantes do espólio de Michael Jackson e seus fãs mais dedicados. Segundo o diretor e os próprios depoentes, não houve nenhum dinheiro envolvido. A mudança de atitude, segundo eles, veio após anos de luta contra problemas psicológicos advindos da constatação do abuso e, mais do que isso, ao fato de terem se tornado pais. Segundo eles, pensar em seus filhos na condição que sofreram os levou a servir de exemplo para a luta contra o abuso sexual infantil.
Por que alguém deveria acreditar neles? Sem provas, qualquer um pode dizer qualquer coisa.
De fato, não há um smoking gun. Não é apresentada nenhuma prova cabal de que os supostos abusos aconteceram. Contudo, o documentário apresenta mais do que só palavras. É um apanhado de circunstâncias, que separadamente não dizem tanto, mas que em conjunto, mostram um retrato assustador. As famílias são parte central do processo, e teriam sido enredadas desde o início.
Os caras conheceram mesmo MJ? Participaram de sua vida?
Sim, por um certo período, e disso não resta a menor dúvida. Há diversas fotos, gravações de época e faxes que atestam isso. A família de um deles acabou se mudando da Austrália para a Califórnia, e acabou despedaçada no processo. Houve inclusive uma morte diretamente relacionada.
Não faz sentido. Como diabos os pais deixavam seus filhos pequenos frequentarem a cama de um adulto? Isso é insano.
É essa toda a tônica do documentário. Resumindo radicalmente, e como eu mencionei acima, Michael Jackson era a maior personalidade dos anos 80, um semideus pra muita gente. Extraordinariamente rico e com uma personalidade 'larger than life', sabia como causar deslumbramento às famílias. Com o tempo, as cativava suficientemente para que deixassem dormir com ele, na suposição de que era, no fundo, um adulto com alma de criança, sem qualquer maldade. E até o fim da vida, Jackson dizia com todas as letras de que "partilhar sua cama era o maior ato de amor que alguém que podia fazer". É absurdo, de qualquer forma.
Como é possível que mais gente não soubesse? Havia uma estrutura enorme ao redor de MJ, e alguém teria visto algo errado. Todos os empregados foram cúmplices então?
É uma boa pergunta. Na verdade, houve, sim, quem o denunciasse, de guardas de segurança, a uma empregada, passando por sua irmã, LaToya. Mas foram casos isolados. Em sua grande maioria, provavelmente preencheram acordos do tipo 'non disclosure', nos quais sofreriam uma avalanche de ações na justiça se contassem qualquer fato sobre seu trabalho. E eram pessoas humildes, que teriam muito a perder se fossem contra alguém da estatura de seu patrão. Quanto a LaToya, sempre foi considerada a ovelha negra da família Jackson, e poucos lhe deram ouvidos então. De lá pra cá, ela se reconciliou com sua família, e disse que havia mentido por ter sido pressionada pelo seu marido à época.
Um dos depoentes testemunhou a favor de Jackson em 2005, e ambos negaram terem sido abusados em 1993. O que explica isso?
Em 1993, ambos eram jovens (10 e 14 anos, respectivamente, para Wade e Safechuck), e segundo disseram, MJ lhes pediu para que omitissem o fato. De fato, todo o programa se baseia no desenrolar das táticas de persuasão e lavagem cerebral do cantor, que era totalmente idolatrado por eles. Na segunda ocasião, em 2005, Safechuck se recusou, mas Wade - a essa altura um coreógrafo de renome em Los Angeles - topou. Alega que não estava preparado para expô-lo naquele momento, e que originalmente levaria o segredo para o túmulo. A paternidade teria mudado sua perspectiva das coisas.
O que acontece agora?
Os representantes do espólio de Jackson estão processando a HBO em 100 milhões de dólares. Representantes dos fãs do cantor também se preparam para processar Wade Robinson e James Safechuck. Enfim, tendo em vista que MJ é a celebridade morta que mais fatura, a família Jackson vai defender seus interesses com unhas e dentes. Afinal, uma queda de popularidade do músico vai ter impacto direto em seus bolsos.
E sua opinião a respeito? Acha que Michael Jackson foi um pedófilo, pelo que viu em Leaving Neverland?
Como eu disse, o documentário não vai exatamente mudar opiniões, mas sedimentá-las. Como alguém que viu o processo todo se desenrolar por décadas, sempre acreditei que ele fosse um pedófilo, no final das contas. Os indícios sempre foram muitos desde sempre, mas é algo que não pensava muito a respeito. O que me deixou realmente perplexo foi observar não exatamente 'o que', mas 'como'. Pude ver o quão desesperadamente só o sujeito era, e como era, simultaneamente, alguém que fazia muito pelas crianças, mas que era capaz de verdadeiras abominações. Ele era ainda mais perturbado do ponto de vista psiquiátrico do que eu pensava.
Ao repetir os mesmos padrões, creio que ele realmente não fazia ideia da gravidade do que fazia. E ainda assim, foi extraordinariamente babaca. Baixo, mesmo. O que ocorre é que, após a morte de uma pessoa, e especialmente de uma personalidade do porte dele, tendemos a perdoar os defeitos (como dizem, depois que morre, 'vira santo'). Pude perceber isso no outro tópico, com diversos usuários atacando violentamente os envolvidos, talvez por não terem toda a perspectiva do que se passou. Resolvi fazer esse tópico apenas após ver de fato os episódios e pesquisar por conta própria. E o retrato que tenho hoje a respeito do sujeito por quem eu tinha algum resquício de respeito não existe mais, infelizmente.
Eu ainda sou capaz de separar relativamente as coisas e reconhecer seu talento extraordinário. Achei o fato dos produtores dos Simpsons removerem o episódio com a participação dele uma tentativa de reescrever a história, por exemplo. Mas creio que vou levar muito tempo até conseguir ouvir uma música dele sem pensar nos atos que praticou. E isso me deixa realmente deprimido. No fim das contas, todos os envolvidos foram participantes de uma grande tragédia.
Tenho minhas dúvidas se a carreira dele vá se recuperar desse baque. Mas se querem saber, talvez seja até melhor assim.
TL:DR: O OP faz um apanhado de todos os acontecimentos que levaram à queda de Michael Jackson, e faz uma análise do conteúdo do documentário Leaving Neverland em forma de FAQ, sobre seus supostos abusos sexuais com dois pequenos fãs. E conclui que, sim, lamentavelmente aconteceram. E que a forma como os fatos se desenrolam é perturbadora, especialmente se tiver filhos pequenos. Não é algo fácil de se ver.
a) Minha opinião não é imparcial, e não quero convencer ninguém sobre coisa alguma. Apenas postar minhas impressões sobre o assunto;
b) Minha perspectiva é a de alguém que cresceu no auge do sucesso do Michael Jackson, durante os anos 80, e que acompanhou sua derrocada ao longo da década seguinte (ou seja, tenho memórias que ajudam a colocar a coisa toda sob contexto);
c) Quem quiser ver o documentário, que o faça de mente aberta. O viés de confirmação vai escudar os dois lados (tanto os 'die hard fans' quanto quem crê na sua culpa). A neurociência hoje em dia já admite que mesmo fatos concretos pouco influem num debate, e mudanças de posicionamento são raras. Em outras palavras, as pessoas tendem a acreditar naquilo que lhes convém, selecionando fatos da narrativa que corroborem seu ponto de vista. De qualquer forma, se quiser permanecer um fã sem ganhar a semente da dúvida, não assista.
d) Quem quiser pular todo o histórico, pode ir direto a "E sobre o documentário em si?", em negrito mais abaixo.
Quem cresceu nos anos 80, deve se recordar do status do Michael Jackson no período imediatamente pós-Thriller (1982). Apesar dele já ter certa fama desde os anos 70, primeiro com o Jackson 5 (renomeado The Jacksons), e em seguida, com a carreira solo, o que se seguiu a partir dali transcende a imaginação. Com quase 50 milhões de álbuns vendidos (dependendo da fonte, o mais vendido da história), aquilo o colocou num nível de estrelato que não se via desde os Beatles. Nenhum - repito, nenhum - artista contemporâneo dos últimos 30 anos sequer chega perto de ter a dimensão dele em seu auge. Não é exagero dizer que chegou a ser a personalidade mais popular da face da Terra. O videoclipe de Thriller marcou minha infância, e tenho certeza, a de um número incontável de pessoas. Ele era idolatrado, um semideus para um sem-número de pessoas.
Bom, realmente não me recordo do que aconteceu entre os anos de 1982 a 87, ano em que saiu o álbum Bad. Não havia internet naquela época, e as notícias seguiam um rumo consideravelmente mais lento, especialmente fora dos grandes centros. Mas me lembro do seguinte: de como fiquei chocado (eu e todo mundo) com a mudança de aparência dele da época de 'Thriller' para 'Bad': de um sujeito negro com traços relativamente normais para um branco com feições muito mais delicadas. Pouca gente entendia o porquê, e ele era acusado simplesmente de negar a própria raça. Hoje se sabe que ele realmente sofria de vitiligo (e provavalmente lúpus, segundo diversas fontes), e possivelmente usou cremes branqueadores para adquirir um tom de pele mais uniforme ao longo do tempo. De qualquer forma, como se soube depois, ele também tinha problemas de auto-aceitação, o que pode ter sido fator primordial para as 'N' cirurgias plásticas que se submeteu.
Ponto é que, desde o acidente sofrido por ele durante a gravação de comercial da Pepsi em 1984 - e que, segundo alguns, o levou ao vício em analgésicos -, diversas coisas estranhas sobre seu comportamento errático passaram ao escrutínio público. Como ele foi tratado numa câmera hiperbárica para se recuperar das queimaduras e teria gostado do resultado, fontes diziam que ele adquiriu o equipamento para aumentar sua longevidade. E de fato, existem diversas fotos dele aparentemente dormindo em uma (aqui, aqui e aqui). Há mesmo quem diga que foi o próprio que vazou a história, um mero golpe publicitário para chamar a atenção para um álbum de sucessos que seria lançado em 1986 (Anthology, creio).
Não somente: nessa época, o cantor também passava muito tempo com o chimpanzé Bubbles, teria comprado os ossos do Homem-Elefante e era obcecado com a atriz Elizabeth Taylor (de quem foi amigo até sua morte). Nessa época, os tablóides lhe deram o apelido de Wacko Jacko. Ele já se incomodava bastante com a falatório sobre sua vida, e acusava a mídia de exagerar factoides. Tanto que um dos singles de Bad ganhou um clipe dedicado a parodiar essa atenção, e dizia com todas as letras: Leave Me Alone
Digamos que ali pelo início dos anos 90, MJ já era mais conhecido pelas excentricidades que pela sua música, apesar do sucesso comercial. Nessa época, ele estava longe dos melhores dias, e já não era o maior ato musical da Terra, posto que passou primeiro ao Guns 'n Roses e, logo em seguida, ao Nirvana. Pouca gente era seu fã declarado, como se vê hoje em dia, mesmo que o ouvisse 'às escondidas'. Em outras palavras, meio que 'pegava mal' se declarar fã do sujeito. Tenho a lembrança vívida de estar numa loja em Orlando durante uma viagem em julho de 1993, pensando se devia comprar 'Dangerous', já que certamente seria zoado se meus amigos soubessem. Mandei mentalmente todo mundo se foder e comprei mesmo assim, já que gostava da música do cara (também levei 'Nevermind').
Pois bem, foi no mês seguinte que veio a primeira acusação de haver molestado uma criança, Jordan Chandler. Até então, apesar de tudo, ninguém o considerava uma ameaça. O nível de cobertura do evento foi extraordinário, e o fato dele haver acertado uma indenização extrajudicial fez com que a grande maioria do público aceitasse como fato consumado que Jackson fosse, de fato, pedófilo. O ato teria sido uma espécia de 'cala boca', digamos, uma admissão de culpa. A versão da defesa era que os pais do menino queriam basicamente dinheiro, e que a forma mais rápida de se resolver o assunto e diminuir os danos à carreira dele seria por meio de um acordo. Na prática, a imagem dele nunca seria a mesma; o escárnio alcançou níveis estratosféricos, e ele virou uma espécie de piada ambulante. Como se sabe, nos anos que se seguiram, Michael Jackson virou um recluso no Rancho Neverland, se casou e se divorciou duas vezes - primeiro com Lisa Marie Presley, depois com Debbie Rowe, sua enfermeira - e teve três filhos. Se são realmente filhos dele é uma outra história.
Essa estado de coisas durou até 2003. Como muitos sabem, a fim de limpar a própria barra e por sugestão do amigo e celebridade Uri Geller, Michael entrou em contato com o jornalista britânico Michael Bashir, que havia feito uma entrevista bombástica com a Princesa Diana anos antes, para fazer um documentário sobre sua vida com acesso irrestrito (dado sua reserva com a imprensa, foi algo extraordinário). Naquele ano, estreou Living With Michael Jackson.
Aquilo foi o início do fim. Pode-se até alegar que a edição de Bashir foi controversa e parcial. Mas é inegável que seu comportamento bizarro foi escancarado. Mostrou uma pessoa com sérios desequilíbrios, incapaz de enxergar como era inadequado um sujeito de 40 anos partilhar sua cama com uma criança. Seus fãs mais dedicados diziam que isso apenas mostrava seu nível de ingenuidade, mas depois de tudo que já havia passado, insistir naquele comportamento só podia lhe trazer mais problemas. E assim ocorreu. A quem ainda não viu, só posso recomendar, nem que seja como introdução à Leaving Neverland (em inglês):
O programa foi o estopim para que a polícia do condado de Santa Bárbara abrisse novo processo contra Jackson, tendo por base a acusação do jovem Gavin Arvizo de que teria sido molestado. O garoto, de 13 anos à época, era um os vários convidados para visitar Neverland, e havia superado um câncer. No programa, aparece de mãos dadas com ele, e depõe favoravelmente. Após um longo julgamento ao longo do ano de 2005, que contou com diversas testemunhas, uma das quais é protagonista de Leaving Neverland, MJ foi inocentado de todas as acusações. Apesar de haver diversos indícios, sem um testemunho forte de outra vítima, a promotoria não conseguiu levar a acusação adiante. Abalado, Michael se tornou um verdadeiro eremita daí em diante. Só reapareceu na mídia em 2009, quando planejava a turnê final de sua carreira, This Is It. Como sabemos, pouco antes dos shows estrearem, por overdose de medicamentos.
E sobre o documentário em si?
Melhor fazê-lo em base de FAQ.
Por que esses camaradas resolveram dar o depoimento agora, anos depois de MJ estar morto? E sem poder se defender?
Os dois depoentes, Wade Robinson e James Safechuck, entraram com uma ação contra o espólio de MJ a partir de 2013, pedindo indenização por danos morais por abuso sexual durante a infância. Na verdade, Wade entrou antes, e Safechuck o acompanhou depois. A ação foi desconsiderada sem se analisar o mérito em si, visto que o juiz que julgou a ação alegou que o prazo para se apresentá-la já havia expirado há anos. De qualquer forma, pelo que se vê no documentário, é razoável supor que não apenas tinham um vínculo emocional fortíssimo com Michael, mas que o temiam.
Então foi por dinheiro?
É o que alegam os detratores do documentário: os representantes do espólio de Michael Jackson e seus fãs mais dedicados. Segundo o diretor e os próprios depoentes, não houve nenhum dinheiro envolvido. A mudança de atitude, segundo eles, veio após anos de luta contra problemas psicológicos advindos da constatação do abuso e, mais do que isso, ao fato de terem se tornado pais. Segundo eles, pensar em seus filhos na condição que sofreram os levou a servir de exemplo para a luta contra o abuso sexual infantil.
Por que alguém deveria acreditar neles? Sem provas, qualquer um pode dizer qualquer coisa.
De fato, não há um smoking gun. Não é apresentada nenhuma prova cabal de que os supostos abusos aconteceram. Contudo, o documentário apresenta mais do que só palavras. É um apanhado de circunstâncias, que separadamente não dizem tanto, mas que em conjunto, mostram um retrato assustador. As famílias são parte central do processo, e teriam sido enredadas desde o início.
Os caras conheceram mesmo MJ? Participaram de sua vida?
Sim, por um certo período, e disso não resta a menor dúvida. Há diversas fotos, gravações de época e faxes que atestam isso. A família de um deles acabou se mudando da Austrália para a Califórnia, e acabou despedaçada no processo. Houve inclusive uma morte diretamente relacionada.
Não faz sentido. Como diabos os pais deixavam seus filhos pequenos frequentarem a cama de um adulto? Isso é insano.
É essa toda a tônica do documentário. Resumindo radicalmente, e como eu mencionei acima, Michael Jackson era a maior personalidade dos anos 80, um semideus pra muita gente. Extraordinariamente rico e com uma personalidade 'larger than life', sabia como causar deslumbramento às famílias. Com o tempo, as cativava suficientemente para que deixassem dormir com ele, na suposição de que era, no fundo, um adulto com alma de criança, sem qualquer maldade. E até o fim da vida, Jackson dizia com todas as letras de que "partilhar sua cama era o maior ato de amor que alguém que podia fazer". É absurdo, de qualquer forma.
Como é possível que mais gente não soubesse? Havia uma estrutura enorme ao redor de MJ, e alguém teria visto algo errado. Todos os empregados foram cúmplices então?
É uma boa pergunta. Na verdade, houve, sim, quem o denunciasse, de guardas de segurança, a uma empregada, passando por sua irmã, LaToya. Mas foram casos isolados. Em sua grande maioria, provavelmente preencheram acordos do tipo 'non disclosure', nos quais sofreriam uma avalanche de ações na justiça se contassem qualquer fato sobre seu trabalho. E eram pessoas humildes, que teriam muito a perder se fossem contra alguém da estatura de seu patrão. Quanto a LaToya, sempre foi considerada a ovelha negra da família Jackson, e poucos lhe deram ouvidos então. De lá pra cá, ela se reconciliou com sua família, e disse que havia mentido por ter sido pressionada pelo seu marido à época.
Um dos depoentes testemunhou a favor de Jackson em 2005, e ambos negaram terem sido abusados em 1993. O que explica isso?
Em 1993, ambos eram jovens (10 e 14 anos, respectivamente, para Wade e Safechuck), e segundo disseram, MJ lhes pediu para que omitissem o fato. De fato, todo o programa se baseia no desenrolar das táticas de persuasão e lavagem cerebral do cantor, que era totalmente idolatrado por eles. Na segunda ocasião, em 2005, Safechuck se recusou, mas Wade - a essa altura um coreógrafo de renome em Los Angeles - topou. Alega que não estava preparado para expô-lo naquele momento, e que originalmente levaria o segredo para o túmulo. A paternidade teria mudado sua perspectiva das coisas.
O que acontece agora?
Os representantes do espólio de Jackson estão processando a HBO em 100 milhões de dólares. Representantes dos fãs do cantor também se preparam para processar Wade Robinson e James Safechuck. Enfim, tendo em vista que MJ é a celebridade morta que mais fatura, a família Jackson vai defender seus interesses com unhas e dentes. Afinal, uma queda de popularidade do músico vai ter impacto direto em seus bolsos.
E sua opinião a respeito? Acha que Michael Jackson foi um pedófilo, pelo que viu em Leaving Neverland?
Como eu disse, o documentário não vai exatamente mudar opiniões, mas sedimentá-las. Como alguém que viu o processo todo se desenrolar por décadas, sempre acreditei que ele fosse um pedófilo, no final das contas. Os indícios sempre foram muitos desde sempre, mas é algo que não pensava muito a respeito. O que me deixou realmente perplexo foi observar não exatamente 'o que', mas 'como'. Pude ver o quão desesperadamente só o sujeito era, e como era, simultaneamente, alguém que fazia muito pelas crianças, mas que era capaz de verdadeiras abominações. Ele era ainda mais perturbado do ponto de vista psiquiátrico do que eu pensava.
Ao repetir os mesmos padrões, creio que ele realmente não fazia ideia da gravidade do que fazia. E ainda assim, foi extraordinariamente babaca. Baixo, mesmo. O que ocorre é que, após a morte de uma pessoa, e especialmente de uma personalidade do porte dele, tendemos a perdoar os defeitos (como dizem, depois que morre, 'vira santo'). Pude perceber isso no outro tópico, com diversos usuários atacando violentamente os envolvidos, talvez por não terem toda a perspectiva do que se passou. Resolvi fazer esse tópico apenas após ver de fato os episódios e pesquisar por conta própria. E o retrato que tenho hoje a respeito do sujeito por quem eu tinha algum resquício de respeito não existe mais, infelizmente.
Eu ainda sou capaz de separar relativamente as coisas e reconhecer seu talento extraordinário. Achei o fato dos produtores dos Simpsons removerem o episódio com a participação dele uma tentativa de reescrever a história, por exemplo. Mas creio que vou levar muito tempo até conseguir ouvir uma música dele sem pensar nos atos que praticou. E isso me deixa realmente deprimido. No fim das contas, todos os envolvidos foram participantes de uma grande tragédia.
Tenho minhas dúvidas se a carreira dele vá se recuperar desse baque. Mas se querem saber, talvez seja até melhor assim.
TL:DR: O OP faz um apanhado de todos os acontecimentos que levaram à queda de Michael Jackson, e faz uma análise do conteúdo do documentário Leaving Neverland em forma de FAQ, sobre seus supostos abusos sexuais com dois pequenos fãs. E conclui que, sim, lamentavelmente aconteceram. E que a forma como os fatos se desenrolam é perturbadora, especialmente se tiver filhos pequenos. Não é algo fácil de se ver.
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