Cervici imponere nostrae
Disse que na continuação do texto de ontem, soltaria hoje ao fim da tarde uma análise sobre Carlos Bolsonaro.
A aceleração dos eventos se impôs e a antecipação do compromisso bateu à porta.
Não quero aprofundar a questão pessoal e familiar de Carlos Bolsonaro — Andreazza já o fez (e aqui, falo sem ironias) de forma séria e competente. Descreveu coisas sob as quais eu não sei, mas que, de modo geral, sono bene trovati. Si soni veri, abiammo altri cinquecenti.
Importa menos a questão pessoal do que o talento estratégico.
De Mainardi já falei — e sabemos, agora as claras, que no seu estilo de “imprensa é sempre oposição”, adotou Carlos Bolsonaro como seu alvo predileto.
Mainardi sabe exatamente o que está fazendo pois já compreendeu, antes de todos, como a dinâmica do poder em torno de Jair M. Bolsonaro funciona. Mainardi sabe que atacar Flávio Bolsonaro e insistir no factóide Queiróz é uma enorme perda de tempo em seu estilo jornalístico (a não ser que, conforme já falei um milhão de vezes, a origem dos recursos discutidos seja absolutamente divulgada de forma inequívoca e indiscutível, incriminando Queiróz).
Mainardi já percebeu que Carlos Bolsonaro é peça chave dessa dinâmica de poder.
Aqui é preciso saber diferenciar o poder de fato e o poder de direito.
O poder, na política, diz respeito exclusivamente ao âmbito do processo decisório — investigar o poder passa pela habilidade do analista de reconhecer como uma decisão é tomada.
E não adianta olhar essa dinâmica no terceiro escalão ou na prefeitura de Eldorado (cidade onde Jair Bolsonaro passou a infância, outrora Xiririca da Serra): é necessário identificar essa dinâmica decisória no exato ponto em que o poder é exercido em última instância.
Qual seja, é necessário saber como funciona o processo decisório de quem dá a última palavra (“pronto, acabou — é a minha ideia!” — capisce?).
Ninguém tira ideias do nada, nem mesmo Dilma Rousseff.
As ideias são formuladas dentro de um processo — mais simples e rudimentar em alguns casos, mais complexo em outros. Esse processo gera uma decisão.
Portanto, para que você possa entender uma dinâmica de poder, você precisa observar e perceber como ideias se tornam decisões de natureza política.
Mainardi já mapeou e percebeu isso nesse núcleo bolsonarista.
O poder de fato pertence a Carlos Bolsonaro.
Em outros governos, sempre houve a preocupação de associar o poder de fato ao poder de direito.
As pessoas com poder fato sempre tinham um cargo no primeiro escalão do governo ou no Congresso Nacional. Exerciam o poder mas estavam expostas em razão do cargo. Eram, portanto, ameaçáveis.
Com Dilma, seu círculo mais próximo (exceção feita, talvez, a figura de João Santana) estava distribuído em Ministérios e na assessoria da PR.
Com Lula e FHC item — bastava olhar para certos Ministérios estratégicos ou, no caso de FHC, bastava olhar para a dinâmica dos Magalhães (tanto ACM quanto o finado Luiz Eduardo), ao lado de Serjão Motta para saber como essa dinâmica de poder era exercida.
Mainardi notabilizou-se em minar esses núcleos de onde a origem das ideias políticas são formuladas. Mainardi é a prova-de-fogo de todo e qualquer governo. Vencer uma discussão com Mainardi significa ter uma vitória política importante, perder, significa cair na mediocridade política (o que ocorreu, por exemplo, com Temer).
Com Jair Bolsonaro esse papel de máquina de formulação de ideias e estratégias é exercido pelo filho Carlos, vereador no RJ e sem cargo formal na esfera do poder de direito.
Jair Bolsonaro segregou formalmente o exercício do poder de fato do exercício do poder de direito.
Reside ai a cartada genial de Jair Bolsonaro em fuzilar mortalmente o esquema de política de coalizão (criação da dupla FHC/ACM — um dia escrevo sobre isso…), vulgarmente conhecida como “política do toma-lá-dá-cá”.
Carlos é portanto o guardião desse projeto de demolição — o coração da articulação política de Jair Bolsonaro e sua “pedra de shambala” na História: acabar com a noção de que a política é um jogo de permuta com soma zero. Nitidamente cabe a Carlos (e não a Onyx) essa tarefa.
Uma parte essencial do mecanismo do toma-lá-dá-cá é exercido pela imprensa mainstream. Para simplificar, vou passar a chamar o mecanismo toma-lá-dá-cá de TLDC.
Já comentei en passant em um texto sobre Trump aqui no Medium, a respeito de como funciona o lobby político e ali o leitor e a leitora poderão notar uma pílula sobre a essencialidade da imprensa jogo de construção do processo decisório baseado em permutas de soma zero.
Mainardi não faz parte totalmente desse jogo — ele tem condições de sobreviver nessa Era pós-TLDC: mas o mesmo não se dá em relação a amigos com quem ele interage dentro da corporação da qual ele faz parte. A começar pela própria Globo. Há método nisso (e um pouco de solidariedade a essa imprensa old school do tripé “bastidores-fontes-furo”).
Com o fim dos “bastidores” com a exposição das articulações nas redes sociais e a completa eliminação do jogo das “fontes”, que assegura um oligopólio da informação para meia dúzia de jornais, o TLDC quebra se não puder contar com a mão amiga da imprensa-situação.
Agora que sabemos por Andreazza algumas peculiaridades pessoais e uma vez compreendido o papel de Carlos na Nova Era, cumpre analisá-lo como uma força política legítima.
Reconheço em Carlos (e, creio, Jair M. Bolsonaro é quem autoriza esse reconhecimento pois, item, reconhece o mesmo no rapaz) um talento para a política que em absolutamente nenhum dos pares de sua geração é possível identificar algo próximo que seja.
O talento político não se mede pela erudição.
Sim, Carlos não é nem um pouco erudito — é rude, comete erros de português, nem sempre se expressa bem e tropeça em algumas estratégias (aqui, mais comprometedor do que escorregar nas regras de Napoleão Mendes de Almeida). Mas desses tropeços, absolutamente nenhum deslize é grave. E usa estrategicamente sua conta de twitter com alta habilidade (sabe fazer frases de impacto e usa bem as exclamações ao final das mensagens — é notoriamente discípulo da “Doutrina Trump”).
Carlos não precisa de conselhos de Bannon — ele recebe diretamente do Presidente da República, que tem no curriculum 30 anos de Congresso Nacional.
Carlos, como “animal político”, tem um talento extremamente apurado e se movimenta na arena política com desenvoltura e coragem.
E quero aqui dar um foco especial nessa palavra — coragem.
Diferentemente de todos os seus antecessores nesse cargo de “titular do poder de fato” (seja o genial Marco Maciel de FHC ou o polêmico ACM; o Zé Dirceu de Lula 1 e o Palocci de Lula 2; novamente o Palocci e depois Erenice em Dilma 1; e por fim Gilberto Carvalho e Zé Eduardo Cardoso em Dilma 2, assim como Jucá, Moreira Franco e Eliseu para Temer), Carlos Bolsonaro não tem cargo no governo, nem mesmo no Poder Legislativo federal ou estadual.
Se Carlos tivesse saído para deputado federal, teria sido eleito com votação esmagadora. A opção de mantê-lo onde está, é visivelmente estratégica. De maneira inteligentíssima Jair Bolsonaro mantém a sua peça mais preciosa preservada de pressões que são exercidas no poder de direito (qual seja, no ou sobre um cargo — vide o “Caso Queiróz”).
E assim deu a Carlos o mandato para destruir de dentro pra fora essa estrutura de “política de coalizão”, de “política de bastidores”, enfim, o TLDC.
Atacar Carlos é simplesmente preservar o velho jogo da política, é ancorar o poder de volta no TLDC.
Carlos, por sua vez e conforme falei, tem na coragem e na astúcia a sua característica mais marcante.
A coragem é o elemento mais importante na política atual e, porque não dizer, da história política como um todo.
Sem coragem não há povo, não há nação, não há país. E essa característica há muito tempo estava em falta na História do Brasil. O último político brasileiro em que se nota claramente essa característica é Dom Pedro I, rivalizando com Luis Alves de Lima e Silva.
Comparar Carlos Bolsonaro a Dom Pedro I é algo quase automático: personalidades muito semelhantes e habilidades políticas bem parecidas (e não os comparo sobre o aspecto personalíssimo, que em absolutamente nada me interessa pois agrega zero para análise).
Não à toa dei a esse texto o título debruce sobre nossos ombros, frase dita por Eneas ao seu pai Anquises no poema mais belo da história da humanidade: A Eneida (Livro II, 707).
A quem possa interessar, a referência aqui a Eneas levando Anquises nos ombros para fundar Roma e fugir da destruição de Troia não é despropositada. Se você ainda não entendeu a presença de Carlos Bolsonaro no desfile em carro aberto na posse do PR Jair Bolsonaro, vá ler Eneida e volte aqui amanhã.
Voltando: como não há nação sem um poder de fato que encarne a coragem (basta lembrar que Moisés, Abraão, Alexandre Magno, Julio Cesar, Carlos Magno, Henrique VIII e Winston Churchill, sem coragem, não teriam chegado a lugar algum), Jair Bolsonaro soube identificar a figura em seu núcleo próximo que detém essa qualidade nata e organizar uma estrutura para preservá-la e franquear a ela liberdade suficiente para que exerça seu talento por meio da ação política.
A ação política é importante para um talento como o de Carlos. E ele precisa, para apurar os dons, ter certa liberdade vigiada que corretamente vendo administrada pelo PR. É na ação, na tentativa-e-erro que os políticos verdadeiros são forjados; não em livros, não em aulas, jamais na leitura deste texto. É na ação política que o agente irá lapidar a sua coragem, de forma prudente e calculada (minha pendência número 4 é um dia poder falar sobre como a falácia da “mente imprudente” é totalmente anti-Carlos, pois estimuladora da covardia).
E neste ponto, estando a imprensa acostumada com certo grau de covardia nos núcleos de poder de fato, a política de bastidores, de TLDC, corria solta e sem resistência. Até 1 de janeiro de 2019…
A imprensa e nem mesmo Jair Bolsonaro, quando começou lá nos idos dos anos 1990’ como deputado em Brasília, sequer imaginaria que a internet e uma maravilha chamada Twitter (junto do smartphone) iam mudar completamente a dinâmica dos bastidores políticos, dando início a ruína dos esquemas em que as decisões se tomavam a portas fechadas, com um grau de simulação quase insuportável. Eis as armas de Carlos, que ele, mais do que ninguém, sabe usar com habilidade de níveis trúmpicos.
Sem twitter e smartphones a política podia ser um jogo de “combinações” e “articulações” em reunião, onde se lançava mão da simulação jurídica com bastante desenvoltura, tramando-se um “esquema” e, paralelamente, um “discurso oficial” para esse esquema, que nunca batia com as razões verdadeiras daquela decisão estar sendo tomada daquele jeito. A imprensa tinha papel central na divulgação do “discurso oficial”, mantendo assim, “no sigilo da fonte” e com rabo bem preso, a verdadeira razão por trás de uma decisão e o completo quadro de jogo de interesses e beneficiados diretos e indiretos.
É possível agora calcular o tamanho do estrago que Carlos Bolsonaro vem promovendo no establishment de salários superiores a 30 paus por mês com dinheiro do seu imposto?
Reside em Carlos a habilidade em identificar, desmontar e destruir qualquer foco paralelo de poder em que haja uma decisão sendo montada dentro do velho esquema TLDC.
Duas exceções são alcançadas na estrutura de sigilo de bastidores, mas ai não se faz por amor ao velho esquema, mas pela natureza dos assuntos tratados e pela segurança nacional: são os assuntos que envolvem o Ministro Sérgio Moro e os assuntos que envolvem o Ministro Paulo Guedes, de natureza técnica e estrategicamente em processo sigiloso até divulgação final.
Nesse temas, reparem, Carlos Bolsonaro nem sequer chega perto.
Ele passa longe disso e fica, mesmo, centrado no núcleo político não-técnico em torno da PR.
Carlos ainda precisa apurar o timing e a forma de suas invectivas, mas já herda do pai o estilo seco, objetivo e politicamente articulado que notabilizou o pai, alçando-o a posição que JMB ocupa hoje no Palácio do Planalto.
Citei na minha conta de Twitter os contemporâneos de Carlos e talvez o único que tenha essa característica da coragem como elemento de sua ação política igualmente cristalizado e bem arraigado seja Fernando Holiday. Janaína Paschoal tem indiscutivelmente esse mesmo verniz imbuído de coragem espantosa.
Outros como Bruno Covas, Arthur do Val, Kim Kataguiri, Marcel van Hatten, Campagnolo, precisam lapidar ainda muito das habilidades de que estão hoje carentes, para que sobrevivam na política a longo prazo. Coragem como Carlos nenhum deles tem, muito menos capacidade de visão articulada e antecipação de movimentos. Nisso Carlos é um faixa preta em meio a uma molecada que age, ainda, como faixas branca na política.
Basta ver como Carlos usa a arma mais importante do momento, as redes sociais e comparar com as estratégias de uso de Arthur do Val, por exemplo. Carlos está no estado-da-arte no uso do twitter enquanto Arthur do Val usa o Youtube ainda, como… um youtuber (e não como um político de verdade: fica a dica — abandone esse apelido “Mamãe Falei”, meu jovem…).
A política, diferentemente da filosofia (que se presta à reflexão), é uma arte que envolve ação.
A ação é algo inerente a política.
Mas não é qualquer ação — a ação política tem regras de performance. Se tiverem dúvidas sobre as regras, recomendo que leiam o Livro II da Ética a Nicômaco de Aristóteles. Lá terão algumas noções básicas sobre coragem (em grego, andreias, algo como virilidade) e sobre os defeitos e distroções da coragem, com a covardia (deilía ou delicadeza), a vaidade (megalopsichia, qual seja, inchaço do alma) e a timidez (micropsichia, qual seja, alma medíocre e diminuta). A Arte da Guerra de Sun Tzu e o Gorin No Sho de Musashi Sensei também abordam sobre o tema das virtudes na ação.
Carlos tem todas essas características, embora a técnica de uso esteja ainda em fase de lapidação. Ele tem tempo pela frente para apurar isso tudo e creio que o fará com facilidade. Por falar em Sun Tzu e Musashi Sensei, repare como Carlos, diferentes de todos os demais (e, até mesmo dos irmãos) tem uma sede absurda pela vitória, por vencer, por “ganhar um debate”. Isso é o que faz a diferença em favor de Carlos, pegando qualquer outro do núcleo de Jair Bolsonaro de qualquer posição ou geração (exceção aqui feita a Sérgio Moro, o maior estrategista da História do Brasil, mas que, por ora, exerce mandato para ações específicas).
Vejo em Carlos todas as características positivas presentes e seus defeitos, decorrentes de falta de erudição, em nada prejudicam a sua habilidade como político e o desempenho da tarefa que recebeu do pai para destruir o TLDC. Aliás, pseudo-defeitos como a rudeza (algo ainda presente em menor dose no pai) são tratados por Aristóteles de forma brilhante e divertida (vide o Ética a Nicômaco, Livro II, viii, 6–8): como a rudeza está mais próxima dos corajosos do que dos covardes, dada essa proximidade, tendemos a colocar a covardia, mais que a rudeza, no campo oposto da coragem.
E é exatamente na rudeza que vemos se o bruto é um corajoso ou um covarde — bruto que age ocultamente e nos bastidores com rudeza e finge gentileza em público, é um covarde; já o bruto que faz questão de agir de frente e publicamente com rudeza, mas no trato privado sabe ter o dom de ser gentil, esse sim tem um talento que estava em falta, até surgir Carlos Bolsonaro desafiando poderes de direito e a imprensa toda.