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Ei mãe, 500 pontos!
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Em dezembro de 2018, após uma longa batalha contra o câncer, eu perdi o meu melhor amigo.
Naquele dia, lembrei, mais uma vez, daquela lição que nossos pais sempre ensinaram: "amigos se contam nos dedos". Não há verdade mais absoluta. Porém, em tempos de redes sociais e do "encurtamento de distâncias" promovido pela internet, muitos tendem a ignorá-la, acreditando que estão cercados de dezenas (talvez centenas) de amigos. Acabam enfraquecendo não apenas o sentido, mas o próprio valor que essa palavra carrega consigo.
Diante dessa lição, eu sempre privilegiei a qualidade à quantidade e não tenho dúvidas que ele era verdadeiramente um amigo, na acepção mais completa da palavra, estando entre aqueles que eu contava apenas nos dedos de uma mão. Mas, mesmo dentre os amigos, nosso vínculo sempre foi diferenciado. Os assuntos fluíam de uma maneira inigualável; muitas vezes, conseguíamos nos comunicar numa simples troca de olhares. Sentíamos grande afeto mútuo e valorizávamos ao máximo os momentos em que podíamos estar juntos, que foram ficando mais raros à medida que envelhecemos e assumimos nossas próprias atribuições e famílias. Mas esses eventuais distanciamentos não afetavam em nada a força do vínculo. Trocávamos muitas experiências e conselhos. Contávamos um com o outro não apenas nos momentos de alegria, mas também nas dificuldades: por pior que fosse um problema, eu sentia um certo conforto ao lembrar que ele estava lá para me apoiar - ouvindo-me atentamente, sentado no balcão da cozinha, tomando uma cerveja bem gelada e petiscando um salaminho literalmente mergulhado em limão (ele era o ser humano que mais gostava de limão que já surgiu face da Terra).
Passamos muitos domingos perambulando por praças, conversando sobre a joguinhos, problemas, amores. Fomos à muitos shows. Varamos muitas noites em conflitos épicos no Age of Empires 2 ou estraçalhando zumbis em Left 4 Dead. Trocamos muita cola na faculdade. Conseguimos nossos primeiros empregos na mesma época, assim como nossos primeiros namoros.
Mas em 2011, ele - o câncer - apareceu. A investigação sobre uns carocinhos no pescoço resultou na descoberta de uma pinta escondida no couro cabeludo que, na verdade, era um tumor de pele, em estágio bastante avançado, já espalhado para outros órgãos (fígado, pulmão e ossos). Chance de 5% (1 em 20) de viver mais que 1 ano.
Mas o meu amigo era mais forte. Nunca esmoreceu, nem demonstrou qualquer tipo de fraqueza. Logo após o diagnóstico, me chamou para ir num restaurante "tradicional" aqui de BH e, entre um prato e outro, me deu a notícia que tinha câncer e disse que faria cirurgia gravíssima para remover parte da pele do rosto nos próximos dias. Como se falasse de algo simples, como um resfriado ou uma luxação. Não derramou uma lágrima e, em respeito, segurei para também não derramar. Mas disse que estaria com ele, sempre.
Todas as expectativas da medicina foram superadas: ele estava nos 5% que sobrevivem. E em cada internação, em cada comorbidade, e cada efeito colateral de quimioterapia... ele não esmorecia. Íamos visitá-lo e era, basicamente, a mesma pessoa de sempre. Sorrindo. Pronto para servir um salaminho com limão.
Em 2015, conseguiu controlar quase completamente a doença. Mas em 2017, ela retornou com força. Ele precisava de alguns quimioterápicos caríssimos que o plano não queria cobrir, como última possibilidade de vida. Contou comigo para a ação judicial. Fiz o possível e o impossível, e conseguimos. Ele tomou os medicamentos e teve uma melhora. Melhora essa que lhe possibilitou casar e, em agosto de 2018, superando todas as previsões da medicina (diante das milhares de radioterapias e quimioterapias), receber a notícia de que teria um filho.
Infelizmente, não viveu para vê-lo nascer. Em novembro a doença retornou com ainda mais força. Em dezembro, ele pediu para a mãe se retirar do quarto de hospital porque queria conversar em particular comigo. Ficamos à sós. Naquele duro momento, já bastante debilitado, ele me confidenciou que já tinha aceitado a ideia da morte com serenidade e não sofria com isso. Pediu-me para que, quando acontecesse, eu ajudasse a distribuir uns poucos bens de valor sentimental que ele guardava (livros e revistas). Perguntou quais deles eu queria para mim, e eu disse que nenhum. Não queria pensar nisso, de forma alguma. E pediu para ajudá-lo a elaborar alguns vídeos que ele deixaria para o filho, caso viesse a falecer.
O tempo, que tinha sido generoso com ele, dessa vez foi traiçoeiro. Antes que pudéssemos fazer as gravações, recebi uma ligação da esposa. "Ele está indo, talvez você queira vir se despedir". Voei para o hospital com a visão turva de lágrimas. Sedado, ele já agonizava. Não havia mais o que ser feito. Passei o dia lá com a família, segurando na mão dele. Não sei se me ouvia, mas garanti que SEMPRE estaria lá para o filho dele. Apoiando no que for preciso.
Na madrugada, ele se foi.
Em abril, o filho dele nasceu e ajudou a amainar o peso do luto.
Ontem, como padrinho, fui visitá-lo mais uma vez. E a esposa dele disse que tinha algo para me entregar. Diante da minha recusa em "escolher" os bens que eu queria, logo após a minha saída do hospital, ele pediu ao irmão para que me desse as revistas de videogame que ele guardava com extremo cuidado e carinho. E um Final Fantasy XII Steelbox, um dos poucos jogos originais que ele tinha comprado ao longo da vida.
Essa semana, a esposa dele teve coragem de mexer nessas coisas e me entregar.
Eis as revistas. Apesar de literalmente novas (ele tinha muito cuidado, algumas de 2001 estão no envelope dos Correios!), elas não possuem nenhum valor material. Não sou colecionador de revistas e me desfiz de todas que comprei na época. Mas, apesar disso, as guardarei com o mesmo cuidado e o mesmo carinho, por toda a minha vida. Como um verdadeiro tesouro, dos mais valiosos, porque representarão para mim, sempre, mais uma lembrança dessa amizade tão especial.
Uma lembrança de alguém que enfrentou uma terrível provação com uma serenidade inigualável.
Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar.
Esteja em paz.
Naquele dia, lembrei, mais uma vez, daquela lição que nossos pais sempre ensinaram: "amigos se contam nos dedos". Não há verdade mais absoluta. Porém, em tempos de redes sociais e do "encurtamento de distâncias" promovido pela internet, muitos tendem a ignorá-la, acreditando que estão cercados de dezenas (talvez centenas) de amigos. Acabam enfraquecendo não apenas o sentido, mas o próprio valor que essa palavra carrega consigo.
Diante dessa lição, eu sempre privilegiei a qualidade à quantidade e não tenho dúvidas que ele era verdadeiramente um amigo, na acepção mais completa da palavra, estando entre aqueles que eu contava apenas nos dedos de uma mão. Mas, mesmo dentre os amigos, nosso vínculo sempre foi diferenciado. Os assuntos fluíam de uma maneira inigualável; muitas vezes, conseguíamos nos comunicar numa simples troca de olhares. Sentíamos grande afeto mútuo e valorizávamos ao máximo os momentos em que podíamos estar juntos, que foram ficando mais raros à medida que envelhecemos e assumimos nossas próprias atribuições e famílias. Mas esses eventuais distanciamentos não afetavam em nada a força do vínculo. Trocávamos muitas experiências e conselhos. Contávamos um com o outro não apenas nos momentos de alegria, mas também nas dificuldades: por pior que fosse um problema, eu sentia um certo conforto ao lembrar que ele estava lá para me apoiar - ouvindo-me atentamente, sentado no balcão da cozinha, tomando uma cerveja bem gelada e petiscando um salaminho literalmente mergulhado em limão (ele era o ser humano que mais gostava de limão que já surgiu face da Terra).
Passamos muitos domingos perambulando por praças, conversando sobre a joguinhos, problemas, amores. Fomos à muitos shows. Varamos muitas noites em conflitos épicos no Age of Empires 2 ou estraçalhando zumbis em Left 4 Dead. Trocamos muita cola na faculdade. Conseguimos nossos primeiros empregos na mesma época, assim como nossos primeiros namoros.
Mas em 2011, ele - o câncer - apareceu. A investigação sobre uns carocinhos no pescoço resultou na descoberta de uma pinta escondida no couro cabeludo que, na verdade, era um tumor de pele, em estágio bastante avançado, já espalhado para outros órgãos (fígado, pulmão e ossos). Chance de 5% (1 em 20) de viver mais que 1 ano.
Mas o meu amigo era mais forte. Nunca esmoreceu, nem demonstrou qualquer tipo de fraqueza. Logo após o diagnóstico, me chamou para ir num restaurante "tradicional" aqui de BH e, entre um prato e outro, me deu a notícia que tinha câncer e disse que faria cirurgia gravíssima para remover parte da pele do rosto nos próximos dias. Como se falasse de algo simples, como um resfriado ou uma luxação. Não derramou uma lágrima e, em respeito, segurei para também não derramar. Mas disse que estaria com ele, sempre.
Todas as expectativas da medicina foram superadas: ele estava nos 5% que sobrevivem. E em cada internação, em cada comorbidade, e cada efeito colateral de quimioterapia... ele não esmorecia. Íamos visitá-lo e era, basicamente, a mesma pessoa de sempre. Sorrindo. Pronto para servir um salaminho com limão.
Em 2015, conseguiu controlar quase completamente a doença. Mas em 2017, ela retornou com força. Ele precisava de alguns quimioterápicos caríssimos que o plano não queria cobrir, como última possibilidade de vida. Contou comigo para a ação judicial. Fiz o possível e o impossível, e conseguimos. Ele tomou os medicamentos e teve uma melhora. Melhora essa que lhe possibilitou casar e, em agosto de 2018, superando todas as previsões da medicina (diante das milhares de radioterapias e quimioterapias), receber a notícia de que teria um filho.
Infelizmente, não viveu para vê-lo nascer. Em novembro a doença retornou com ainda mais força. Em dezembro, ele pediu para a mãe se retirar do quarto de hospital porque queria conversar em particular comigo. Ficamos à sós. Naquele duro momento, já bastante debilitado, ele me confidenciou que já tinha aceitado a ideia da morte com serenidade e não sofria com isso. Pediu-me para que, quando acontecesse, eu ajudasse a distribuir uns poucos bens de valor sentimental que ele guardava (livros e revistas). Perguntou quais deles eu queria para mim, e eu disse que nenhum. Não queria pensar nisso, de forma alguma. E pediu para ajudá-lo a elaborar alguns vídeos que ele deixaria para o filho, caso viesse a falecer.
O tempo, que tinha sido generoso com ele, dessa vez foi traiçoeiro. Antes que pudéssemos fazer as gravações, recebi uma ligação da esposa. "Ele está indo, talvez você queira vir se despedir". Voei para o hospital com a visão turva de lágrimas. Sedado, ele já agonizava. Não havia mais o que ser feito. Passei o dia lá com a família, segurando na mão dele. Não sei se me ouvia, mas garanti que SEMPRE estaria lá para o filho dele. Apoiando no que for preciso.
Na madrugada, ele se foi.
Em abril, o filho dele nasceu e ajudou a amainar o peso do luto.
Ontem, como padrinho, fui visitá-lo mais uma vez. E a esposa dele disse que tinha algo para me entregar. Diante da minha recusa em "escolher" os bens que eu queria, logo após a minha saída do hospital, ele pediu ao irmão para que me desse as revistas de videogame que ele guardava com extremo cuidado e carinho. E um Final Fantasy XII Steelbox, um dos poucos jogos originais que ele tinha comprado ao longo da vida.
Essa semana, a esposa dele teve coragem de mexer nessas coisas e me entregar.
Eis as revistas. Apesar de literalmente novas (ele tinha muito cuidado, algumas de 2001 estão no envelope dos Correios!), elas não possuem nenhum valor material. Não sou colecionador de revistas e me desfiz de todas que comprei na época. Mas, apesar disso, as guardarei com o mesmo cuidado e o mesmo carinho, por toda a minha vida. Como um verdadeiro tesouro, dos mais valiosos, porque representarão para mim, sempre, mais uma lembrança dessa amizade tão especial.
Uma lembrança de alguém que enfrentou uma terrível provação com uma serenidade inigualável.
Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar.
Esteja em paz.