Lendo algumas observações das últimas páginas, gostaria de sublinhar alguns erros de design que feliz e sabiamente não foram cometidos:
1) Fast Travel e Carga: corretamente, quando você faz fast travel, toda sua carga vai automaticamente para o Private Lock, e não é também transportada para o ponto final de Viagem Automática, assim impedindo exploits. O fast travel com carga significaria entregas automáticas, sem que a premissa do game, galgar o caminho e vencer a geografia, MULEs e BTs, fosse obedecida. Seria só escolher a Entrega de Capital Knot a Wind Farm, dar Fast Travel de um assentamento pra outro, apertar quadrado e completar a Delivery. Desastroso. Um meio termo seria mandar pro Private Lock somente a carga específica da entrega (marcada com uma corda no menu), e manter todo o resto (armas, itens de reparo, bolsas de sangue, PCCs, itens de travessia etc), mas ainda assim estaria configurado erro de design, já que isso produziria no fim um acúmulo ainda maior do que já há de materiais para o Fabricate Equipment e itens de inventário. Uma das execuções do design do jogo é incentivar o “localismo”. O game dificulta que você leve suas tralhas automaticamente dum assentamento para o outro, incentivando o jogador a procurar on the go ou a fabricar o que se precisa no assentamento da região onde se está, e ele calcula os recursos e materiais para tal baseando-se nisso. Outra das premissas é incentivar o compartilhamento de itens em Locks ermos pelo cenário ou em Cidades e Assentamentos de Preppers. Levar seus itens todos via Fast Travel tornaria esse elemento muito mais inútil.
2) Veículos Macios e Fáceis de Pilotar: Seria altamente brochante que a Moto (triciclo invertido, na verdade) tivesse boa mobilidade nos terrenos acidentados, como em GTA ou Farcry. É muito importante que ela encalhe mesmo nas menores pedras, que fique presa no cenário e que, ao perder o contato dos pneus com o chão, ela torne-se imprestável. A frustração da pilotagem de veículos no terreno offroad deve ser comemorada. Ao bem da verdade, eu esperaria que a moto fosse mais limitada e frustrante que já é. Um veículo nos padrões GTA significaria uma ruptura grave e tosca das bases e premissas do jogo. Eu consigo pensar em 500 consequências ruins para o que game tentou fazer se a pilotagem e a travessia offroad por moto fossem macias: as entregas seriam realizadas num piscar de olhos; a reconstrução de rodovias estaria desincentivada pra qualquer outra função além de permitir as entregas com AutoBots; as regiões de BTs estariam nerfadas; pontes, escadas e watchtowers perderiam parte de suas funções; regiões pedregosas como o entorno do Distribution Center South of Lake Knot-> Weather Station/Ferro Velho não fariam o menor sentido. Também espertamente, o designer do game moldou a maciez da pilotagem propriamente dita com outros elementos, modificando a responsividade de frenagem e traçado na dependência do peso que está nas costas do protagonista e do peso que está no bagageiro da moto. Aceleração é menor, Consumo de Bateria é maior, tempo de frenagem é mais lento e mobilidade do guidão dependem de peso e balanço. Isso é lindo. Eu pessoalmente acharia muito interessante que a moto capotasse facilmente em alta velocidade com uma torre de cargas nas costas. E que essa queda resultasse em inutilização completa de veículo e cargas. Acho que a moto é pouco frustrante, ela tinha que ser bem mais, e é um grande facilitador do jogo como um todo.
3) Visibilidade das Construções/Marcações de Outros Jogadores e Conexão ao Chiral Network: Se os itens de todos os jogadores estivessem presentes desde o princípio, estaria descaracterizada a premissa de design na qual o game se assentou. As construções dos outros jogadores só se tornarem visíveis após conexão à Chirall Network permite ao mesmo tempo, para um mesmo jogador, que cada nova área específica a se explorar seja inédita e selvagem em relação ao Multiplayer, e que, após explorada e realizada a entrega elementar, o elemento social acenda. Ou seja, temos um gameplay obrigatoriamente single que emenda num multi, que deixa o jogador experimentar cada pedaço sem ajuda de ninguém, e depois aprofundar naquele pedaço com ajuda de outrém. Aqui, o conceito primeiro de solidão, e depois de recompensa por se conectar às pessoas, fica traduzido perfeitamente via gameplay.
4) Ausência de Deterioração de Estruturas Construídas: Vários problemas ocorreriam se as construções (pontes, estradas, Zip Lines, Escadas) de outros jogadores não se deteriorassem com o tempo. Se isso ocorresse, a primeira consequência catastrófica para o design do game seria o fato de que o primeiro jogador de todos os tempos a passar por uma determinada área estaria eternizado como o fundador perene dos elementos de travessia daquela região, assim impedindo que milhares de outros jogadores participassem da festa. O primeiro player a passar pela região vulcânica e pedregosa do entorno de South Knot, logo antes do lançamento, ainda estaria com suas construções ativas nos servidores que ele participa, e daqui a 500 anos ainda estaria o nome dele lá, desensentivando que outros jogadores também construam e recebam likes. Existe um limite de construções por região (que pode ser incrementado aumentando a conexão com os NPCs), mas isso certamente seria um grave problema de design. Outras consequências ruins seriam a perda do sentido de “trabalho” e “esforço coletivo”, que foi setada na premissa do game; grande facilidade para entregas ad aeternum numa área onde os jogadores já agiram; e por consequência aleijamento da experiência de qualquer novo jogador que venha ao game meses ou anos após o lançamento do jogo. Uma solução meio termo seria deixar pelo menos as construções do mundo do jogador que foram construídas por ele mesmo ativas, e só elas, mas isso traria outros problemas, como o desincentivo a usar construções de outros jogadores. No fim, a deterioração foi a decisão mais acertada com certeza absoluta, qualquer outra execução quebraria a premissa de design que foi proposta.
5) Inimigos Humanos Mais Espertos: Uma das premissas do jogo é punir o combate. Ele faz isso de diversas formas, como por exemplo produzindo Void Outs se você mata um humano, ou atrasando a obtenção de armamentário letal. Uma das mais importantes maneiras de desincentivar o combate foi estabelecer que entrar num acampamento MULE pra roubar cargas seja contraproducente. Pra que você vai enfrentar aquele tanto de nêgo atrás de loot, se esse loot te limita imensamente, te deixa pesado, enganchando no cenário, lento e alvo fácil dos inimigos? O melhor é entrar nesses acampamentos somente de vez em quando, e com alguma preparação. Segundo, tudo que você coleta e põe no seu inventário piora o seu balanço, te faz tropeçar mais nas áreas amarelas e vermelhas do seu Scan do Odradek, te deixa muito lento, te faz cair mais fácil quando você recebe uma porrada dum inimigo humano e te torna um alvo mais fácil para que sua carga seja roubada à distância por uma daquelas armas com munição adesiva.
Para que isso tudo tenha sentido, os inimigos têm que de alguma forma serem também limitados. Se esses inimigos fossem ágeis, espertos e certeiros, o encontro com qualquer um deles resultaria num “Game Over” automático e imediato, já que seu personagem pesa uma tonelada e caminha com dificuldade pelo terreno rugoso.
Se seu personagem é limitado, e essa limitação aumenta na medida em que se adquire itens de inventário, seus inimigos devem ser limitados de alguma forma, caso contrário, configura-se erro de design
Como fazer isso funcionar como elemento de design?
Simples, torne seus inimigos doentes (Vício por Carga), como zumbis em games de hordas, que só pensam na sua carga e em mais nada, com limitações de raciocínio (conforme os emails detalham) e chame-os de MULAs. Claro, eu consigo ver outras maneiras através das quais o designer do game poderia resolver esse problema, aumentando a virulência dos inimigos humanos, mas, para isso, ele precisaria fazer com que as cargas e o loot não limitassem a mobilidade e prejudicassem o balanço do protagonista (poderia ser feito por exemplo com o uso de algum item que negativa as consequências do OverEncumberment no balanço e na mobilidade do personagem E ESSE ITEM SÓ PODERIA SER USÁVEL DENTRO DO ACAMPAMENTO MULE), mas aí, qual a consequência? O combate não estaria desestimulado, e sim estimulado. Lembrem-se, os caras sentaram na mesa antes de fazer o game e falaram:
“Um dos objetivos de nosso game é desestimular o combate. Como fazê-lo?”
Pouco importa se o desincentivo ao combate desagrade alguém, mas foi isso que sentaram pra fazer. Se se senta pra preparar um bolo de milho, não pode sair pão-de-ló.
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Acho que é isso. Eu tenho certeza absoluta que existirá a partir de hoje um capítulo inteiro de livros de Game Design dedicado a Death Stranding, pra ser ensinado nas Cátedras de Criação de Jogos. Com certeza um marco de assimetria, ousadia e decisões difíceis, podem perguntar a qualquer professor de Game Design sobre esse jogo e sua atipia, o nível de empolgação dos caras com esse game está no céu.