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A SOLUÇÃO QUE VENCEU A IDEOLOGIA
O Brasil perdeu tempo discutindo se a HCQ é ou não “de direita”. Enfim, vamos ao que interessa: o uso do remédio no tratamento da covid-19
Além de ceifar 90 mil vidas em todo o mundo, desmantelar a economia global e fazer disparar o consumo de álcool em gel e máscaras cirúrgicas, a pandemia de coronavírus submeteu a química à ideologia. O Brasil perdeu mais de duas semanas discutindo a qual partido a hidroxicloroquina é filiada. Defender a utilização do antimalárico no surgimento dos primeiros sintomas da covid-19, e não apenas no tratamento de casos graves, tornou-se sinal de apoio ao presidente Jair Bolsonaro. Como, em teoria, o uso da hidroxicloroquina favorece a tese do isolamento vertical, e é essa a alternativa mais adequada segundo o presidente, os chamados formadores de opinião e a dita grande imprensa posicionaram-se automaticamente contrários a esse caminho. O debate foi apresentado como se de um lado estivesse a Ciência — assim, com “C” maiúsculo — e, de outro, uma turma irresponsável que prefere o improviso ao rigor técnico. E assim a hidroxicloroquina se tornou um medicamento “de direita”. Como se o lítio pudesse ser classificado como conservador, e o tungstênio, marxista convicto. Na última terça, 7 de abril, o Ministério da Saúde reviu o protocolo clínico para pacientes infectados com coronavírus, de modo a permitir que os médicos definam o momento adequado da prescrição do remédio. Enfim, um sopro de racionalidade num vendaval de estupidez ideológica.
A hidroxicloroquina, identificada pela sigla HCQ, é uma parente menos tóxica da cloroquina, de uma geração mais avançada, e conhecida pelo nome comercial Reuquinol. É usada no tratamento da malária desde os anos 1930 e indicada no combate a males como artrite reumatoide e lúpus. Em 2003, o remédio já se mostrara eficaz no combate à síndrome respiratória aguda severa (sars), doença que surgiu na China em 2002 e cujo agente infeccioso também pertence ao grupo coronavírus.
Com a notícia de que o medicamento poderia ser eficaz no tratamento da covid-19, houve uma corrida às farmácias em todo o mundo. A Nigéria registrou centenas de intoxicações por ingestão indiscriminada do remédio. Nos Estados Unidos, no Estado do Arizona, um casal descobriu em meio a seus produtos para animais de estimação uma versão não medicamentosa de fosfato de cloroquina, usada para limpar aquários. Após a ingestão, eles foram levados às pressas para um hospital da região. O homem morreu de parada cardíaca e a mulher foi internada em estado crítico.
Casos como esses deixaram a comunidade científica em alerta. A histeria coletiva provocou o desabastecimento da medicação e prejudicou o tratamento de pacientes que usam a hidroxicloroquina e derivados cloroquina para o tratamento de outras doenças. Em 20 de março, a Anvisa determinou controle especial, com compra permitida apenas mediante apresentação de receita médica.
O debate em torno da medicação não é de todo improcedente.
Apesar das evidências de que a hidroxicloroquina funciona para deter o avanço do coronavírus, os estudos são inconclusivos por não ter havido tempo de cumprir certos protocolos de modo a atingir o padrão-ouro em ciência. Para que um remédio tenha sua ação comprovada no tratamento de determinada doença, é necessário realizar uma série de experimentos. No teste randomizado duplo-cego, a administração do medicamento é aleatória, situação em que nem o paciente nem o pesquisador sabem o que está sendo administrado. Há ainda o teste com grupo placebo: parte dos indivíduos testados recebe o medicamento e outra parte, apenas um produto anódino, como uma pílula de farinha.
Ortodoxia X combate em campo
Embora a medicação já exista no mercado há mais de 70 anos, a recomendação para o uso da HCQ no tratamento contra a covid-19 chama-se
off-label. A designação é adotada quando se prescreve um remédio aprovado para uma finalidade distinta daquela que consta na bula. É exatamente o caso da HCQ, usada originalmente para o tratamento de lúpus e malária. Um exemplo similar é o do Viagra. O princípio ativo citrato de sildenafila, quando passou a ser produzido pela indústria farmacêutica, era utilizado exclusivamente para acelerar os batimentos cardíacos.
Assim, surgiu o conflito entre a ortodoxia dos pesquisadores e o empenho de médicos e profissionais de saúde no combate “em campo” para salvar vidas e apressar a cura de seus pacientes. De um lado, a exigência da observância dos protocolos. De outro, os argumentos em favor das evidências claras de que a HCQ vinha apresentando bons resultados e que não havia tempo para cumprir formalidades, enquanto vidas estavam em risco.
[Veja na Linha do Tempo a evolução das pesquisas relacionadas à utilização da hidroxicloroquina no combate ao coronavírus.]
Países como França, Itália, Índia e Colômbia reviram protocolos e passaram a admitir o uso da HCQ no surgimento dos primeiros sintomas de covid-19 e não apenas em pacientes em estado grave. Há uma razão científica para o procedimento. A medicação age nas células, bloqueando os mecanismos de ação do coronavírus. “A hidroxicloroquina inibe a replicação viral ao alterar a capacidade da célula de produzir proteína”, diz o virologista Paolo Zanotto, professor do Departamento de Microbiologia da Universidade de São Paulo (USP). Quando a célula passa a produzir menos proteína, a replicação viral enfraquece e, portanto, a manifestação da doença é mais branda.
Para Zanotto, não faz sentido ministrar o remédio apenas a pacientes em fase avançada da doença.
“Se você não der o remédio antes, no sétimo dia o paciente já estará com os pulmões completamente comprometidos. Quando surgir a tosse seca e dificuldade respiratória, será muito difícil tratar a doença.” O virologista ressalta que a hidroxicloroquina e o antibiótico azitromicina são baratos, a terapia é curta, “e os efeitos adversos não estão se manifestando, segundo diversos trabalhos.”
A imunologista e oncologista Nise Hitomi Yamaguchi, diretora do Instituto Avanços em Medicina, conversou com a Revista
Oeste e também defende o uso precoce da HCQ associada ao antibiótico azitromicina já no segundo dia após o início do aparecimento de sintomas como tosse, coriza e perda de olfato. “A partir do quinto dia de contaminação, a doença pode evoluir para um processo inflamatório que, em casos mais graves, pode levar à morte do paciente por insuficiência respiratória”, diz ela. A imunologista não ignora o fato de que os protocolos de pesquisas não foram concluídos. “Estamos construindo as evidências científicas, mas no momento precisamos tomar decisões terapêuticas. Os médicos de vários hospitais já assumiram que é necessário tratar os pacientes assim que eles chegam ao hospital. A tosse pode representar um comprometimento pulmonar grave. O melhor exame é a tomografia.”
Sobre a administração da HCQ a indivíduos ainda não testados para covid-19, Nise Yamaguchi considera que a decisão deve ser tomada de forma cautelosa, entre o médico e o paciente. “É um pouco difícil, mas não dá para esperar o teste. O teste demora e, além disso, em alguns casos dá negativo e a pessoa já tem a doença. O ideal é que o paciente já tenha sido vacinado contra H1N1, porque aí, por exclusão, se tem outra infecção, ele já sabe que o caso é de covid-19. Entre o início e o avanço da doença, o processo é muito rápido e às vezes não dá tempo de o paciente ser avaliado novamente.”
Nise Yamaguchi assegura que não foi sondada para assumir o Ministério da Saúde, em substituição a Luiz Henrique Mandetta. “Quando alguém aparece propondo colaboração, logo pensam que a pessoa quer a cadeira do outro. Passei a contribuir como técnica, cientista, para tentar equilibrar o debate. Acho que, agora, o diálogo está muito bom”, diz ela.
Médicos em alvoroço
Mandetta teria demorado a permitir a revisão do protocolo acerca do uso da HCQ por recomendação de boa parte dos técnicos de primeiro nível do Ministério da Saúde. “Sabemos que muitos técnicos, embora qualificados, têm o pensamento totalmente alinhado à esquerda”, diz o deputado e médico Luiz Ovando (PSL–MS). Ovando é clínico geral, cardiologista e geriatra. “O ministro teve que ceder de sua posição mais cautelosa porque teria de apresentar indícios contra a droga, e isso não se tem. Quero crer que ele foi apenas ingênuo nesse processo. O problema é que o pessoal da esquerda continua falando contra, mesmo com alguns protocolos já referendados cientificamente. A Jandira [Feghali, deputada do PCdoB-RJ] tem intensificado seu combate à cloroquina, somente para explorar isso politicamente. É lamentável.”
O fato novo que acelerou a revisão do protocolo por parte do Ministério da Saúde foi a revelação, na terça-feira, dia 7, de que o infectologista David Uip, chefe do Centro de Contingência contra o Coronavírus em São Paulo — ele próprio vítima da covid-19 —, havia sido tratado com um composto da família da HCQ, o difosfato de cloroquina. Integrante da equipe do governador João Doria, Uip recusou-se a relatar os medicamentos que recebera, mas uma receita em seu nome acabou vazando.
Rapidamente, Doria apressou-se para declarar que foi Uip quem sugeriu a Mandetta a distribuição de hidroxicloroquina em toda a rede pública de saúde do país. O ministro respondeu com firmeza: “Hoje, esse medicamento não tem paternidade. O governador não precisa querer politizar o assunto. Precisamos que todos tenham maturidade, visão, foco e disciplina para atravessar este momento.”
Na manhã da quarta-feira passada, dia 8, uma entrevista atiçou todo o meio médico. À rádio Jovem Pan de São Paulo, Roberto Kalil Filho, diretor do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, ainda internado em tratamento para o coronavírus, admitiu ter recebido hidroxicloroquina: “Se há evidências de que o remédio funciona, o médico pode discutir o uso com seu paciente. Obviamente, a utilização indiscriminada e a automedicação não devem ser admitidas. Mas, diante da possibilidade de salvar vidas hoje, vamos esperar que os estudos científicos sejam concluídos daqui a um ano?”. Kalil pondera que seu tratamento não se restringiu ao uso da HCQ: “Tomei também antibiótico, corticoide, anticoagulante e outros medicamentos”.
As declarações de Kalil motivaram o presidente Jair Bolsonaro a calibrar o pronunciamento que fez em rede nacional naquela mesma noite. Bolsonaro parabenizou o médico pela honestidade e informou que o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, enviará insumos para que o Brasil seja capaz de acelerar a produção de HCQ.
A solução viável
Mesmo antes da mudança oficial de protocolo, hospitais como Albert Einstein, Sírio-Libanês, Beneficência Portuguesa e a rede Prevent Senior já vinham submetendo pacientes ao tratamento com HCQ antes do surgimento de sintomas mais graves da covid-19. Observando o compromisso de apresentar todas as alternativas possíveis, os médicos discutem caso a caso. Sabe-se que a droga pode provocar arritmia em indivíduos com problemas cardíacos. Dependendo da situação de saúde do paciente, pode ainda gerar complicações renais e lesões na retina.
A discussão acerca dos riscos, portanto, não está concluída. Há vozes responsáveis dos dois lados do debate.
Para pesquisadores que trabalham em laboratórios, trata-se de uma questão técnica. Há protocolos a observar, testes, número específico de experimentos que devem ser avaliados. Mas o que dizer da ação dos médicos? Eles estão na linha de frente. Têm de decidir quem vive e quem morre. Há meios para que abreviem o sofrimento de seus pacientes e evitem que sejam levados à UTI. Por que não lhes permitir atuar com alguma margem de heterodoxia? Diante das circunstâncias, a hidroxicloroquina surge como a solução. Pode não ser a solução perfeita. Mas é a viável e a mais segura até o momento.
São tempos excepcionais. Governos responsáveis com as contas públicas estão gastando além dos limites da responsabilidade fiscal, dada a necessidade de socorrer vulneráveis e pequenos e médios negócios. Há restrições a liberdades individuais, mesmo em democracias liberais, nas quais constituem um valor prioritário, em razão de políticas de isolamento social. Não há motivos para que o rigor absoluto seja mantido no que diz respeito aos protocolos clínicos. E, sobretudo, convém deixar a ideologia à margem da ciência e lembrar que a química não tem partido político.