Há um problema substantivo e outro semântico nessa reportagem publicada hoje pela Folha.
Começo pelo semântico.
A manchete do jornal impresso é "Empresas bancam disparos de mensagens anti-PT nas redes".
O título da página interna da edição digital é "Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp".
"EMPRESAS" e "EMPRESÁRIOS", no plural, são termos que criam a noção de uma ação coletiva e possivelmente coordenada. Fernando Haddad falou em "quadrilha" de empresários ao sugerir que a eleição pudesse ser anulada.
Acontece que a manchete do jornal não é sustentada pelo que diz o texto da reportagem.
Eu li a matéria duas vezes. Ela só cita nominalmente UMA possível compradora do envio de mensagens:
"A Folha apurou que cada contrato chega a R$ 12 milhões e, entre as empresas compradoras, está a Havan."
Todas as demais empresas citadas na reportagem -- Quickmobile, Yacows, Croc Services e SMS Market -- são prestadoras de serviço. Recebem para mandar mensagens, não pagam.
É improvável que a Folha tenha provas de que outras "empresas", assim no plural, estejam envolvidas num grande esquema orquestrado para interferir nas eleições e tenha decidido não nomeá-las.
Se fizesse isso, estaria protegendo Bolsonaro e os empresários envolvidos na ação criminosa.
O que temos então é a possibilidade de que a Folha só tenha provas de que uma empresa pagou pelas mensagens de WhatsApp e, por alguma razão, os editores teriam decidido meter um plural nos títulos e na manchete do jornal para "esquentá-la".
Isso já não seria um problema trivial, mas a coisa pode ser pior. E aí vamos à questão substantiva.
A denúncia de que um número não sabido de empresários estaria desembolsando até R$ 12 milhões, cada um, para interferir na eleição é seríssima.
Se for provado que há conluio entre esses supostos financiadores do "Caixa 2 do Bolsonaro" e a campanha do candidato, as consequências seriam graves -- levando até à impugnação da chapa, como sonha a campanha do PT.
Quanto mais grave uma denúncia jornalística, quantos mais profundos e duradouros seus efeitos, maior a necessidade de respaldá-la com provas e indícios: uma página de contrato, uma reprodução de e-mail, uma testemunha crível. Nada disso aparece na reportagem de hoje.
O ônus da prova sempre cabe a quem acusa -- e a Folha não apresentou nenhuma prova ou sequer indício de que empresários tenham agido orquestradamente para prejudicar o PT.
O que a reportagem consegue provar é muito pouco: por exemplo, que a campanha de Romeu Zema contratou da Croc Services o disparo de mensagens para a base administrada pela própria campanha do candidato -- o que é legal e foi declarado ao TRE, como esclarece a própria reportagem. E para fazer campanha A FAVOR de Zema, não CONTRA o PT, como dizem os títulos da Folha.
A reportagem diz ainda que teve acesso a e-mails da empresa oferecendo também o disparo para uma base própria -- o que é ilegal -- mas não esclarece para quem a oferta foi feita nem se o serviço chegou a ser contratado.
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Eu acho o problema da falta de controle sobre a disseminação de mensagens falsas no WhatsApp sério e acredito que a empresa poderia fazer mais para combatê-lo. Está aí o exemplo do linchamento na Índia para provar que correntes e fakes transbordam para a vida real com consequências graves.
Mas está havendo uma clara tentativa de transformar o aplicativo no bode que vai expiar os erros do PT nessa eleição.
Como sabe qualquer usuário, quem é incluído contra a vontade num grupo de Zap tem a opção de sair imediatamente.
As pessoas só aceitam ficar em grupos com os quais tenham algum tipo de conexão e dos quais aceitaram participar de forma voluntária.
É nesses ambientes que se dá a troca de mensagens falsas -- quase sempre por ação espontânea do remetente.
A ideia de que uma grande linha industrial de fake news controlada por empresários inescrupulosos tenha tomado o controle dos smartphones dos brasileiros e transformado os eleitores em marionetes mistura um tiquinho de fantasia com um muito de malandragem e prepara o terreno para a narrativa petista pós-derrota.
Mas isso é o estado normal de coisas no petismo. O preocupante é quando o jornalismo independente compra esse discurso.
Ou pior ainda, dá munição a ele.