Antes de começar, gostaria de compartilhar com o OP a minha classificação dos gameplays e designs. Não se apegue às nomenclaturas, elas nem são oficiais, são só nomes que eu dei para estilos e coisas que eu percebo, de formas a ficar fácil de entender.
Bem, você tem basicamente dois grandes grupos de designers nessa indústria:
1) Os tradicionalistas:
Shigeru Miyamoto, Yu Suzuki pré-Shenmue, Yuji Naka etc. Esses caras sugam da década de 80 conceitos que eles mesmos criaram, e têm uma alta tendência a escrever seus games formulaicamente, puxando muito para a repetição das "filosofias" que deram certo, de forma a tornar seus games "enjoyable". Na visão deles, videogames são um "produto", e não podem nem devem aspirar ser nenhuma outra coisa qualquer. Como diz o próprio Miya, "Eu me vejo como um criador de produtos para as pessoas aproveitarem (enjoy, como ele diz, o que poderia ser melhor traduzido como 'curtir'). É por isso que eu sempre chamo meus jogos de produtos, ao invés arte ou de qualquer outra coisa". O resultado são jogos sempre muito simples, às vezes com doses cavalares de sofisticação.
A filosofia do design passa pelas etapas
fixas de:
a) Primeiro, crie uma ideia que vai nortear o ambiente geral do game, extremamente
simples. Um astronauta num jardim, um passeio de carro com a namorada no banco da frente, uma viagem de férias a um hotel mal assombrado, um rapto de namorada etc.
b) Segundo, concentre em uma ação primária
única e também simples, que vai ser o norte do game. Exemplo, a capacidade de sugar inimigos de Kirby. Ou o duo isolado de pulo + corrida de Sonic.
c) Terceiro,
repita o que funciona, com novos desafios sendo acrescentados de maneiras diferentes, em cima da ação primária única.
d) Quarto, crie algumas
poucas ações secundárias, e ensine o jogador a usá-las lentamente.
e) Quinto, vá
misturando aos poucos, e criando situações de desafio e recompensa.
Isso não significa que esses caras não aproveitem de novas tecnologias, eles até tendem a criar alguma tecnologia para, dentro das mesmas 5 premissas de design, tornar seus produtos mais "enjoyable". Exemplo, um controle de movimento, ou gráficos 3d de última linha para evoluir a imersão num game onde a ação primária é uma geringonça pendurada nas costas que atira água. Mas a premissa de design é a mesma, os games são formulaicos, The Legend of Zelda Skyward Sword, embora use controles de movimento (uma tecnologia nova), é absolutamente o mesmo jogo, em termos de design, que Legend of Zelda A Link to the Past. Zelda Wind Waker, embora use gráficos 3D lindos (uma nova tecnologia), é o mesmo game, em termos de filosofia de design, que ALTTP, um game 2D.
Eu gosto de dizer que essa filosofia resulta num tipo de game que
"esvazia a cabeça", você vai aproveitar, curtir, inclusive até mesmo esquecer que está jogando videogame enquanto na verdade está com o joystick na mão. Esses games mais comumente são do tipo
casual e, se eu fosse usar um termo popular e fácil de entender para descrever esse tipo de jogo, eu usaria o termo
"joguinho".
2) Os expansionistas (ou vanguardistas):
Hideo Kojima, Yoko Taro, Fumito Ueda, Hironobu Sakaguchi, Kazunori Yamauchi, Hidetaka Miyazaki, Yasumi Matsuno, Yu Suziki pós Shenmue. Esses caras, às vezes inspirados por algum trabalho seminal de algum tradicionalista, que geralmente o dragam para o mundo dos videogames, têm uma grande tendência a escrever seus jogos de forma não-formulaica, autoral, e acham que videogames podem ser influenciados por outros elementos da esfera da cultura além do puro lúdico, como artes visuais, experiências sensoriais de terror ou contemplação, literatura etc. Na cabeça deles, dá pra videogame ser alguma outra coisa qualquer, além de um "produto para curtir", como diz o Miyamoto. A filosofia de design segue as seguintes etapas, às vezes não fixas, resultando num produto complexo, que pode tender ao sofisticado ou ao intrincado, a depender do tipo de game:
a) O game concept pode conter uma
premissa madura e complicada, que requer dedicação do jogador para captar (como Metal Gear Solid, Vagrant Story, Xenogears, Final Fantasy Tactics, Silent Hill),
ou mesmo um pouco mais simples, mas de cunho subjetivo e evanescente (Shadow of the Colossus, ICO, The Last Guardian, Demon's Souls).
b) Crie
múltiplas ações, menus, cascatas, parâmetros, dados, elementos de gameplay, pontos de análise, mecânicas de ação que se entrelaçam, e dê esse arsenal ao jogador, para, num Level Design do tipo labiríntico e complexo, ele interaja com o ambiente. Ou, no subtipo mais simples,
gamefique coisas que teoricamente não seriam lúdicas, como carregar uma menina pela mão, um bebê num pod que chora quando você tropeça em pedras com fisicalidade no cenário, ou gamefique o apêgo do personagem a um animal de trinta metros de altura que a princípio te odeia, ou gamefique escalar um Colosso para achar seu ponto fraco.
c)
Entrelace gameplay a ambiente e história, de forma a elevá-lo. O gameplay nunca será o mesmo após o contato com um lore extenso, ou com pistas que você junta via descrições de itens, ou usando gadgets e geringonças que recebem um tutorial extremamente detalhado e contextualizado por uma ligação de CODEC.
d) Não tenha medo de
trabalhar outras coisas além da ludicidade em seus games. Terror, apego, trabalho, dedicação para entender uma mecânica de gameplay, contemplação, horror etc.
Ao contrário dos tradicionalistas, a evolução tecnológica é imperativa para o êxito dos vanguardistas, e eu diria até que são os vanguardistas que verdadeiramente evolem os videogames.
Eu gosto de dizer que essa filosofia resulta num tipo de game que
"enche a cabeça", você vai imergir naquele mundo, e vai precisar se dedicar para entendê-lo, e a diversão virá do desafio mental, físico, espiritual, ou da característica artística. É o mesmo prazer que vem por exemplo de assistir a um filme do David Lynch, onde nem todo mundo vai sentir que isso é divertido. Ou é o mesmo prazer que vem de assistir a um filme de terror. Minha esposa, que é casual em cinema, me pergunta como eu acho divertido assistir O Exorcista. Esses games mais comumente são do tipo
hardocre e, se eu fosse usar um termo popular e fácil de entender para descrever esse tipo de jogo, eu usaria o termo
"jogão".
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Segundo, leia esse quote aqui dum post que fiz. Peço que você clique no link, porque ele contém algumas imagens, e às vezes elas não aparecem na aba do Quote. E perdão por te fazer ler tanto texto (se é que você vai ler), mas isso é fundamental para você entender o quanto o design dos criadores que eu batizo de "expansionistas” eleva o gameplay de seus jogos em comparação ao design dos tradicionalistas. O quanto que em geral é melhor, superior e elevado. Vá lá, por favor, não se canse:
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Terceiro, desculpe escarafunchar isso, mas, conhecendo o OP por causa dessa nossa discussão aqui:
Os caixistas que nem vão jogar o game estão preocupados com o que? Hilario criticar algo que não faz parte do mundo de vossas senhorias
forum.outerspace.com.br
... eu preciso traçar uma antologia da sua vida gamística, que explica o porquê dele cometer o erro escabroso de aventar que Kojima não sabe fazer gameplay. Estou chutando, óbvio, mas provavelmente acertei.
1) O OP começou a jogar videogame do Atari ao SNES, mais provavelmente no NES. Ou seja, era criança quando entrou em contato com os primeiros tradicionalistas.
2) No SNES, o OP pulou os "proto-jogões" (os primeiros games do tipo "jogão" de minha nomenclatura surgiram, em consoles, no PS1, conforme meu post do Quote explica bem), como Final Fantasy VI e Tactics Ogre. Ele se ateve aos tradicionalistas naquela plataforma.
3) Quando chegou na quinta geração, ao invés de ir de PS1, o OP foi de N64. Ao invés de estar jogando isso:
Visualizar anexo 93492
ou isso:
Visualizar anexo 93491
Ele estava jogando isso:
Visualizar anexo 93490
d) Na sexta geração, o OP foi naturalmente de Gamecube, ao invés de PS2, e, ao invés de estar jogando isso:
Visualizar anexo 93493
Ou isso:
Visualizar anexo 93494
Estava jogando isso:
Visualizar anexo 93495
Aqui, o OP pode ter entrado em contato com algum game do tipo "jogão", Baten Kaitos, Resident Evil Remake, Eternal Darkness, mas sua "imaginação moral" já estava formada, porque ele já era adulto.
e) Em algum momento, provavelmente via PC, o OP jogou alguns dos primeiros jogões históricos (MGS, Gran Turismo, Vagrant Story) via emulador, anos depois de eles surgirem.
O grande problema das pessoas que seguiram essa linha durante a vida gamística é que, além de não saber muito bem definir o que é gameplay (por exemplo, para essas pessoas, caminhar enquanto se scaneia o terreno em busca de irregularidades que deformam o piso e podem fazer as cargas que o personagem carrega se danificarem não é gameplay), achar que bom gameplay representa exclusivamente os tipos de virtude que os tradicionalistas enfatizam. Mas o gameplay dos expansionistas é muito mais profundo, elevado e superior, e eu estou falando do gameplay mesmo, e não do resto que compõe um jogo, que é também bem melhor.
Agora por exemplo, estou jogando Dishonored 2. Game de 2016. Corvo Attano grizalho, é um Joel mais magricela, mas tão deprê quanto.
Isso é um jogão. É uma obra que deriva dos expansionistas. Dishonored 2 é um dos melhores Immersive Sims dos últimos anos. Tem que explorar cada greta, em busca de lore, quadros na parede, loot e oportunidades de infiltração.
Level Desing mágico. Como o design dos expansionistas atrela gameplay a visual, ambientação e lore, a cidade de Karnaca fica tão bem construída, que dá pra sentir o cheiro de entranha de peixe nos esquinões. Você executa suas habilidades de diversas formas, enquanto tem um enriquecimento de múltiplas mecânicas com contexto, e todo o gameplay, por estar atrelado a lore e ambiente, é denso, expansivo, complexo, pesado e de “encher a cabeça”, ao invés de simples, lúdico, para distrair ou “esvaziar a cabeça”.
Visualizar anexo 93507Visualizar anexo 93508
Estou fazendo uma run com foco em stealth (que eles chamam de Low Chaos), salvando a cada 3 passos, e dando load se sou visto, mas, embora eu tenha uma fila imensa de jogaços pra terminar até eu morrer, estou tramando fazer um New Game+ com uma run baseada em Battle (High Chaos). Sair chacinando todo mundo da geral nessa imundiça, incluindo Civilian e NPCs centrais da história, só pra ver se o excelente gameplay permanece de pau duro se eu escolher virar o Rambo.
E qual foi, em 2016, ano de Dishonored 2, o último game que sintetiza as virtudes de design dos tradicionalistas que tinha sido lançado?
Esse:
Visualizar anexo 93510
Na cabeça daqueles que cresceram seguindo a linha dos tradicionalistas, Mario 3D World tem o gameplay melhor que Dishonored 2, mas na verdade ele é bem inferior, mais simples, evolui pouco os videogames e não é o caminho que devemos seguir.
Outrossim, Chrono Cross e Vagrant Story têm o gameplay MUITO superior a Banjo Kazooie, embora não divirtam tanto. Da mesma forma, MGS3 tem o gameplay muito superior à Animal Crossing e Metal Gear Solid 1 tem o melhor gameplay de sua geração, muito superior a Zelda Ocarina of Time ou Mario 64, por exemplo, e somente é equiparável ao gameplay de Final Fantasy Tactics ou o próprio Vagrant Story.
Finalizando então, antes responder à pergunta do tópico, a gente tem que entender o principal problema dos jogadores de videogame, que é o
complexo de inferioridade.
O tipo de coisa que faz os expansionistas é, para aqueles que cresceram na cultura dos tradicionalistas (que são em geral os que seguiram usando consoles Nintendo isoladamente por boa parte do tempo), tida como “arrogante”, “pretensiosa”, “emaconhada”, às vezes “chata” ou “não-divertida”. Mas na verdade, é algo de qualidade bem superior.
Não tem dúvida que Kojima é o maior, e que ele representa o tipo de evolução de gameplay que os videogames precisam, além do mero “produto para curtir” do grande Miyamoto, para qualquer outra coisa mais elevada, complexa, e valorosa.
Eu diria que essa fatia do mercado com “complexo de inferioridade” está atrapalhando a evolução dos videogames, ao tratar toda e qualquer coisa mecanicamente mais elevada, complexa e de valor, com desdém.
Gameplay é o ponto mais forte de Kojima, e felizmente ele pode morrer amanhã, que ele deixou alguns descendentes expansionistas, de formas que eu espero estar com 60 anos com um capacete de VR imerso numa experiência gamística realmente evoluída que não se restrinja à diversão curta e fugaz de apertar botão pra pular buraco.