Bloodstained
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Bem, a obra-prima de Eiichiro Oda completa 20 anos de existência em 2019, sem apresentar sinais de desgaste e mantendo-se totalmente fiel à concepção original de seu autor. Na longa jornada que é narrada em One Piece, os leitores puderam se deparar com momentos épicos e emocionantes, em diversas ocasiões. Esse tópico é destinado a celebrar a obra de Oda e abrir um espaço para que os leitores possam compartilhar suas impressões, análises ou teorias a respeito de qualquer aspecto que tenha sido apresentado na obra durante seus vinte anos.
Inicio o tópico apresentando uma análise em vídeo sobre um dos temas mais importantes de One Piece: a Alvorada do Mundo. O vídeo encapsula diversos eventos ocorridos durante a jornada dos Chapéus de Palha, ligando uns aos outros de modo a demonstrar diversas mensagens que Oda vem passando a seus leitores nas entrelinhas e, ainda mais importante, visando apontar a direção para a qual a história se encaminha, conforme ruma para seu final.
Infelizmente o vídeo é narrado em inglês mas, como seu roteiro auxiliou a consolidar minha interpretação pessoal sobre a história de One Piece, decidi traduzir e adaptá-lo para formato textual, para que se tornasse acessível a qualquer um que tenha interesse em realizar sua leitura. O texto está incluído no spoiler logo abaixo, para não deixar o OP muito longo e, com isso, dificultar a visualização de quaisquer outros posts que venham a ser adicionados no tópico posteriormente. Tenham uma boa leitura.
Do que se trata a história de One Piece?
Nessas alturas do campeonato, acho que todos entendemos que a história consiste em muito mais do que simplesmente um garoto tentando encontrar um tesouro famoso. Na verdade, acho que atualmente a história de One Piece se tornou tão densa com seus personagens, linhas narrativas e temas que, para explicar de maneira compreensível do que ela se trata, seriam necessárias várias análises.
Gostaria de iniciar explorando uma das ideias fundamentais sobre a qual a história de One Piece é construída, como um primeiro passo para reapresentá-la a partir de um ponto de vista panorâmico. Após cerca de 800 capítulos, há a introdução de um novo personagem, cuja apresentação é capaz de modificar a percepção que leitores possuíam a respeito da história até então.
I – Os Chapéus de Palha
Antes de falarmos a respeito das palavras de Nekomamushi e a crença dos Minks, iniciemos com o básico. Todos conhecemos a fórmula básica de One Piece: os Chapéus de Palha navegam até uma nova ilha; há caras maus causando problemas na ilha; os Chapéus de Palha derrotam os caras maus e resolvem os problemas; eles vão para a próxima ilha e a história se repete.
Embora essa fórmula seja superficialmente bem direta (e até mesmo repetitiva), muitas pessoas tendem a negligenciar a verdadeira ideia que Oda tenta passar aos leitores a cada ocasião na qual eles podem observar esse padrão.
As pessoas que nunca chegaram a dar uma chance para One Piece, tendem a possuir a impressão de que a série se resume a aventuras leves e o mesmo se aplica para aquelas que começarem a ler a obra também. Muitas coisas a respeito do mundo de One Piece podem ser caracterizadas como encantadoras, exóticas ou até mesmo bobas. De qualquer maneira, parece ser um universo realmente divertido de ser explorado.
Porém, as pessoas que avançam na leitura tendem a perceber, de forma consistente, que esse mundo nunca é tão feliz quanto aparenta superficialmente. Em cada lugar que os Chapéus de Palha visitam, há um grande mal afligindo a população local. Quase sempre há um poder reinante opressivo ou um conflito interno que está prestes a criar esse poder mas, a despeito disso, há sempre uma constante: a escuridão profunda que se abate sobre cada ilha.
Uma vila na qual os humanos se tornaram a raça subserviente. Uma nação onde o povo foi privado da medicina. Um país que foi manipulado em direção a uma guerra civil. Uma terra onde todos se encontram a mercê de um deus onipotente. A ideia é que em todas as partes do mundo, há uma espécie de domínio da escuridão. E como se não bastasse, normalmente os Chapéus de Palha costumam chegar nas ilhas em momentos cruciais, quando as trevas se tornaram absolutamente esmagadoras.
Talvez uma nação esteja se despedaçando, talvez genocídio esteja prestes a ocorrer, talvez a chance para um futuro melhor tenha sido destruída mas, em todas as situações, o ponto de desespero absoluto foi atingido. Aquele ponto no qual os habitantes de cada local lutaram o máximo que podiam, sofreram tudo o que suportavam, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para deter esse mal e, mesmo assim, acabaram ficando impotentes. Nesse ponto no qual as coisas se tornaram piores que nunca, quando os habitantes estão literalmente implorando por algum tipo de milagre, quando estão completamente exauridos de qualquer esperança, os Chapéus de Palha surgem e se tornam a esperança.
Eles nunca planejaram se tornar um símbolo de esperança e nunca escolheram se tornar heróis, mas simplesmente por se envolverem nas batalhas de seus amigos, eles acabam enfrentando as lutas que os habitantes sofridos de cada ilha não possuem esperanças de enfrentar por conta própria. Eles são aqueles nos quais os fracos podem investir sua esperança. São os operadores de milagre capazes de fazer o impossível e, como tais, os Chapéus de Palha estão fadados a simbolizar a luz. Esse simbolismo é enfatizado consistentemente por Oda durante toda a série: os Chapéus de Palha são as estrelas brilhantes da esperança onde quer que eles estejam. Essencialmente, em todas partes desse mundo há escuridão e desespero, mas também há o navio que navega de ilha a ilha, trazendo a luz para brilhar através das trevas, onde quer que ele vá.
Então realmente há uma fórmula repetitiva, mas ela é assim por uma razão: Oda sempre está construindo a ideia de que esse um mundo poderia ser brilhante, caso não estivesse obscurecido pela escuridão. Os Chapéus de Palha sempre serão a luz navegando por esse mundo de dificuldades e tragédia, dissipando as trevas. Manter essa ideia fundamental básica nas entrelinhas da narrativa como um todo, serve como um conceito base para que Oda construa uma ideia ainda maior, oculta por detrás da história.
II – A Escuridão
Cada ilha possui algum tipo de escuridão da qual os Chapéus de Palha precisam se livrar mas, nessas alturas, já sabemos que a história de One Piece consiste em mais do que um bando de aventuras desconexas que ocorrem em diferentes ilhas.
Ainda que os Chapéus de Palha sejam capazes de trazer a luz a uma ilha de cada vez, gradualmente começamos a entender que há uma escuridão maior englobando tudo o que ocorreu até então.
No início, somos levados a acreditar que o terror primário dos mares são os piratas. Afinal, essa é a Grande Era dos Piratas, essa é uma história sobre piratas e, embora Luffy e sua tripulação sejam boas pessoas, quase todos os outros piratas que eles encontram podem ser considerados vilões, na plena acepção do termo. Esse é o motivo pelo qual Luffy passa a primeira parte de sua jornada salvando pessoas inocentes de piratas vis.
Parece se tratar do clássico “cara bom contra o cara mau”, mas isso nos leva a questionar se o enfrentamento desses bandidos dos mares não deveria ser realizado pela Marinha ou se não deveria ser uma atribuição do Governo Mundial. Afinal, essas pessoas confiam na Marinha para lhes proteger e também aparentam ter grande fé no governo vigente. Conforme a história avança, porém, passamos a receber algumas informações e pequenas pistas que vão se juntando e passam a apontar para algo fundamentalmente errado a respeito desse mundo.
A Marinha na qual o povo confia parece abusar livremente de seu próprio poder e até mesmo permite a ação de piratas, até o ponto no qual o grande Governo Mundial (que se encontra por detrás da Marinha) passou a empregar piratas para supostamente manter a ordem.
Esse sistema, no qual os piratas a mando do governo são designados como Shichibukai, foi responsável por libertar Arlong no East Blue e quase causou a completa destruição da nação chamada Alabasta. Esse último incidente foi contido devido a intervenção de piratas, mas o governo escolheu encobrir esse fato e suprimir a verdade. Além disso, não podemos esquecer que a principal preocupação do governo após o incidente basicamente consistiu em decidir qual pirata contratar a seguir.
Aos poucos, começa a ficar evidente que essa organização está mais preocupada em proteger sua própria imagem e manter o seu poder, do que exercer sua função propriamente dita: governar de verdade. Assim sendo, gradualmente passamos a receber pistas a respeito do que essas grandes autoridades realmente desejam, até chegarmos no arco de Water 7.
Nesse ponto, a narrativa faz uma curva aguda rumo ao coração dessa organização, o que essencialmente remove a “cortina” e revela a verdadeira natureza do governo que comanda o mundo. A partir de então, passamos a vê-lo como o império autoritário que ele efetivamente é, que utiliza manipulação, violência e supressão da verdade para manter seu poder como o regime opressor que alcança todo o globo. Um regime que manteve o controle sobre esse mundo por literalmente 800 anos...
Se recuarmos por um momento, podemos observar o que Oda havia mostrado até então: cada ilha visitada pelos Chapéus de Palha encontrava-se a mercê de algum tipo de escuridão. Eles lutavam no lugar dos habitantes e se tornavam a luz que dissipava essa escuridão, seguindo rumo ao próximo destino. Isso até encontrarem Robin, que se torna um caso anômalo, já que supostamente se encontra sobre o jugo de uma grande e misteriosa escuridão. Aparentemente, se trata de uma ameaça tão grande que Robin não consegue escapar, não importa para onde tente fugir.
É através de Robin que nossos olhos finalmente se abrem para o fato de que essa grande escuridão é, na verdade, o próprio mundo. É isso que o Governo Mundial simboliza: ele é a grande escuridão que projeta sombras sobre tudo o que foi mostrado até então. Aqueles que o servem são literalmente os Agentes da Escuridão, que levam a cabo sua Justiça Sombria.
A partir dessa revelação, Oda abandona gradualmente a sutileza e torna cada vez mais evidente qual é a verdadeira raiz da maldade no mundo. Por mais que os piratas possam ser ruins, o regime sombrio que permite a ascensão desses criminosos rebeldes é ainda pior. O governo é a verdadeira escuridão que paira sobre todo esse mundo e nós presenciamos essa ideia sendo comunicada de maneira cada vez mais clara em praticamente todos os arcos consecutivos.
Então olhemos novamente para os pequenos arcos que estruturam a história de One Piece: os Chapéus de Palha chegam a uma ilha, acham que ela é maravilhosa, lentamente começam a perceber que há algo errado e finalmente se dão conta de que há uma grande escuridão atuando no local. O mesmo se aplica à narrativa maior de One Piece, que foi estruturada por Oda exatamente da mesma forma: os leitores começam partindo em uma divertida aventura num mundo que superficialmente parece fantástico e fabuloso. Lentamente passam a receber pistas de que o mundo não é tão romantizado quanto parece, que há maldade em todo lugar e boa parte dela pode ser ligada a uma fonte maior. Eventualmente, os leitores percebem que estavam diante de uma obra de ficção distópica durante todo esse tempo...
III – A Alvorada
Ao final da primeira etapa da história, os leitores compreendem que há uma grande escuridão que cobre o mundo todo. Uma vez que isso foi estabelecido de maneira firme, há a transição para a segunda etapa da história, na qual Oda começa a colocar grande ênfase em certos temas que sempre estiveram presentes, mas que começam a ter maior significado a partir de então.
No arco da Ilha dos Tritões, Oda começa a explorar o significado do sol e os leitores descobrem o sonho da rainha Otohime para seu povo: após serem forçados a viver na escuridão das profundezas oceânicas por séculos, ela desejava que os tritões fossem capazes de alcançar a luz do sol. Aqui o significado de alcançar a luz é literal e metafórico: os tritões realmente anseiam alcançar o sol por viverem no fundo do oceano, mas também esperam escapar do jugo da escuridão imposta pelo seu passado. Através dos tritões, Oda começa a trabalhar o conceito figurativo do sol em sua obra, fazendo com que ele passe a simbolizar um mundo melhor e um futuro iluminado.
Os leitores veem essa ideia ecoando na história de outra raça, os gigantes de Elbaf, que parecem idolatrar o sol. Oda escolhe retratar um breve flashback de Elbaf durante um solstício de inverno, quando há um festival que celebra especificamente a morte e o renascimento do sol. Nessa ocasião, presenciamos um severo inverno que será encerrado pelo retorno de um sol brilhante.
E ainda mais recentemente, no arco de Wano, uma nação que caiu na escuridão quando Kaido e Orochi ascenderam ao poder, a ideia é retomada uma vez mais, na profecia de Toki. Nela, o governante opressivo, Orochi, é caracterizado como a lua. Toki declara que, um dia, o governante encontrará sua ruína, quando ele conhecer o brilho da alvorada.
Assim sendo, durante a segunda etapa da história, há uma ênfase considerável a respeito do surgimento do sol ou, mais especificamente, à alvorada. Obviamente Oda não vincula a derrota do Governo Mundial a cada vez que a ideia do sol ou da alvorada é citada, mas conforme nos aproximamos do final da série, a alvorada é referenciada cada vez mais. Ela se tornou uma figura de linguagem constante a despeito de seus vários contextos, mas sempre manteve a conotação que indica o fim da escuridão e a chegada de um futuro reluzente. Essa mensagem é importante porque ela é o conceito maior para o qual a história está se dirigindo: a Alvorada do Mundo.
Quando os Minks começam a falar sobre a Alvorada do Mundo, os leitores não fazem ideia a respeito do que eles estão se referindo. Porém, gradualmente eles começam a perceber que, para os Minks, presenciar essa alvorada consiste em algo de extrema importância, ao ponto de devotarem suas vidas para que ela seja alcançada.
Levando em conta o nome da tripulação de Pedro, os Piratas Nox, parece que da perspectiva dos Minks, o mundo se encontra sobre uma espécie de noite sem fim. Porém, eles tomaram para si o nome Nox (Noite), por acreditarem que nenhuma noite pode continuar para sempre, sem que haja uma alvorada. Naturalmente, a noite à qual eles parecem se referir, seria a grande escuridão, ou seja, a regência do Governo Mundial. Isso fica subentendido quando eles afirmam que essa noite tem durado por séculos, assim como o próprio Governo Mundial. No esforço de alcançar a alvorada, Pedro estava procurando especificamente por Poneglyphs, as pedras que registram os segredos do mundo antes que o Governo Mundial assumisse o controle.
Então vamos recapitular: a partir do salto temporal que iniciou a segunda etapa da história, Oda tem acenado continuamente para a ideia de que um futuro reluzente é representado pelo sol, de que invernos rigorosos se encerram com o renascimento do sol ou de que a lua inevitavelmente encontra o brilho do amanhecer... O que realmente importa é destacar que toda escuridão irá desvanecer perante a alvorada. Através dos Minks, Oda informa aos seus leitores que o mundo todo está aguardando pela alvorada, uma liberação da longa noite de trevas que a regência do Governo Mundial representa.
Em boa parte das ocasiões nas quais o sol é referenciado, há personagens que parecem associar a grandeza do sol especificamente à vastidão sem limites do céu aberto. Com isso, o sol parece invocar um sentimento de liberdade. Uma vez que os leitores possuem ciência a respeito do quanto a liberdade é importante em One Piece, isso sugere que o sol não está destinado a representar apenas um futuro iluminado, como também (e ainda mais especificamente) a ideia de que esse futuro é caracterizado de forma inerente pela liberdade. Podemos observar essa ideia sendo prenunciada no arco de Amazon Lily, onde os leitores descobrem que todos os escravos dos Tenryuubito (ou Dragões Celestiais), tem suas costas marcadas com o símbolo desses nobres, que simboliza a posse e controle dos mesmos sobre tais escravos.
Um dos simbolismos mais importantes da série ocorre quando Fisher Tiger liberta os escravos dos Dragões Celestiais e os remarca, de modo que o símbolo da escravidão acaba sendo apagado e sobreposto por uma marca de sol. A partir de então, o sol se torna o símbolo dos tritões para a liberdade e também de sua recusa em ser controlados.
Considerando tudo isso, parece natural que Oda conceda ao sol esse significado adicional de liberdade. Afinal, a principal escuridão de One Piece, o Governo Mundial, é vastamente definida pelo quanto ela procura suprimir a liberdade. Desse modo, parece adequado que o sol represente não apenas o fim do regime sombrio, como também a liberdade que isso traria.
Além de tudo, Oda também parece estar dizendo algo mais aos leitores: para que haja a alvorada, parece ser necessário que haja um reset completo da ordem existente. É preciso que a lousa seja completamente apagada antes que uma nova história possa ser escrita, por assim dizer. Voltando até o arco da Ilha dos Tritões, há duas ideias principais que são comunicadas: a primeira é que os tritões precisam perseverar para alcançar a luz do sol e a segunda, é que para alcança-la, toda sua história precisa ser destruída, para que eles possam se livrar de sua escuridão e começar novamente do zero.
Os leitores já presenciaram essa ideia sendo abordada anteriormente em One Piece: Dalton também pretendia erradicar a história do Reino de Drum para que eles pudessem recomeçar do zero. Dessa forma, eles poderiam renascer como um país completamente novo e sem nome. Posteriormente, no final do arco de Dressrosa, após todo o país ter sido dizimado e completamente reduzido a ruínas, os leitores percebem que essa nação na verdade está comemorando pois, a despeito de toda a destruição, ela pode renascer como uma terra nova e plena com liberdade.
Desse modo, se recuarmos um passo e juntarmos todas essas ideias que Oda vem desenvolvendo através de vários arcos e contextos, parece que ele quer dizer que o mundo se encontra à mercê de uma grande escuridão e que o sol e sua alvorada significam o fim dela. Que para alcançar o sol, se faz necessário destruir tudo completamente e começar do zero. Será apenas a partir de uma tabula rasa que a alvorada se apresentará a um novo mundo com um futuro reluzente. Esse fato encapsula a ideia de que o sol simboliza também a liberdade, já que esse é o futuro mais desejado pelos habitantes do mundo todo. É também por esse motivo que a destruição do mundo é vista como o objetivo de “D”.
IV – Revisitando os Chapéus de Palha
Até aqui, estabelecemos que a Alvorada do Mudo precisa acontecer para acabar com a longa noite de regência do Governo Mundial. Porém, isso não vai acontecer magicamente: alguém precisará fazer com que isso aconteça. É nesse ponto que entram os Chapéus de Palha.
Olhando para a série como um todo, podemos notar que eles têm sido moldados para se tornarem aqueles que vão mudar o mundo. Ouvimos várias vezes que Roger estava esperando por alguém que poderia concluir o que ele mesmo não pôde, já que sua vida acabou encurtada em virtude de uma doença. Aparentemente a tripulação de Roger passou a acreditar que Luffy e os Chapéus de Palha serão aqueles que irão encarar esse desafio.
O Barba Branca, naquele que pode ser considerado o mais importante monólogo na história, diz que um dia virá um homem carregando séculos de história sobre seus ombros e desafiará o Governo Mundial para lutar.
Posteriormente Otohime fala a respeito de um alguém que será capaz de guiar sua filha pelo caminho correto e que também traria uma grande mudança para o mundo. Toda essa história tem sido desenvolvida em torno do fato dos Chapéus de Palha estarem assumindo o papel a respeito do qual os Minks têm falado a respeito: de serem aqueles que trarão a Alvorada do Mundo.
Além dos monólogos e profecias, Oda tem deixado pistas que prenunciam esse fato desde o início da história. Já falamos sobre como os Chapéus de Palha foram constantemente caracterizados como a luz de esperança onde quer que eles passassem. Porém, agora é possível revisitar a história com uma nova perspectiva, para perceber que haviam pistas apontando que os Chapéus de Palha não eram apenas a luz: eles são, especificamente, a luz do sol ou da alvorada.
A aventura de Luffy começa com ele partindo de Dawn Island (Ilha da Alvorada). No arco de Thriller Bark, Oda criou um cenário no qual os Chapéus de Palha estavam literalmente lutando pela luz do sol. A derrota de Moria e o fim da escuridão que imperava sobre Thriller Bark, coincidem com a chegada da alvorada.
Em Sky Pea, um arco carregado de prenúncios, há um falso deus que descobre que Luffy consiste no seu inimigo natural, assim como os “D” são os inimigos naturais dos falsos deuses conhecidos como Dragões Celestiais. Presenciamos esse falso deus iniciar uma “grande purificação”, similar àquela que os Dragões Celestiais estão contemplando. No momento em que essa “purificação” está prestes a acontecer, quando toda esperança parece perdida, com os céus tendo escurecido e a escuridão parece ter se apoderado de tudo, vemos que Luffy, o inimigo natural do deus, é capaz de destruir a escuridão criada por esse falso deus e fazer o sol raiar.
Além disso, vale notar que Oda tende a criar navios piratas que refletem a natureza do capitão e sua tripulação. É provável que a maior parte dos leitores não pense a respeito do motivo pelo qual o navio dos Chapéus de Palha possui um nome e um design especificos mas, considerando tudo o que vimos até aqui, creio que todos sejam capazes de perceber o quão deliberada foi a escolha do nome Thousand Sunny. O modo como Oda retrata a figura de sua proa é brilhante, pois ele faz parecer como se fosse uma escolha aleatória. Não faria muito sentido se ele tivesse feito Franky escolher o sol como a figura de proa, já que os Chapéus de Palha não estão cientes do simbolismo que isso implica. Então, ao invés disso, Oda faz com que Franky escolha a figura de um leão, por ele pensar que se trata de uma escolha máscula. Quando Franky recebe a figura, seu design remete a uma flor de girassol, concedendo uma boa razão para que o navio seja nomeado como Thousand Sunny, sem que os Chapéus de Palha ou os leitores atentem para a significância disso.
Ainda mais importante é considerar o momento no qual os Chapéus de Palha trocam de navio. Na primeira etapa da jornada, eles estavam simplesmente explorando o mundo e derrotando a escuridão onde quer que a encontrassem. Então eles finalmente se deparam com a maior escuridão, que engloba o mundo todo: o Governo Mundial... e declaram guerra contra ele.
Nesse momento, a história muda fundamentalmente e pode se dizer que a verdadeira história de One Piece finalmente se inicia. Após declararem guerra contra a escuridão que cobre o mundo, os Chapéus de Palha precisam de um novo navio que reflita seu papel definitivo, atuando como o sol. Mesmo que eles não estejam cientes, desse ponto em diante eles se encontram num caminho para trazer a Alvorada do Mundo. Como Iceberg ressalta, o Sunny parece ser o navio certo para eles: um navio destinado a cruzar milhares de mares cruéis alegremente como o sol. E como foi ressaltado no início do texto, é isso que os Chapéus de Palha têm feito até o ponto no qual a história se encontra.
Em todas as partes do mundo há escuridão e os Chapéus de Palha navegam pelos mares cruéis como uma luz de esperança, indo de ilha em ilha e eliminando a escuridão onde quer que a encontrem. Da mesma forma, foi dito no início do texto que Oda estrutura a história de modo que os eventos de menor escala sejam uma representação dos eventos de maior escala, que estruturam a narrativa como um todo. Dessa forma, agora nos encontramos no ponto no qual, basicamente, percebemos que a história maior de One Piece consiste nos Chapéus de Palha continuarem a fazer o que já vinham fazendo numa escala menor: levar a luz aonde quer que eles vão, porém, numa escala global. Cabe a eles levar a luz ao mundo todo.
A melhor parte nisso tudo, é que a missão pessoal dos Chapéus de Palha nunca muda: eles nunca se consideraram heróis que levam a luz onde quer que vão. Mesmo quando se trata de trazer a Alvorada do Mundo, tudo parece ser preparado para que esse seja o final natural do objetivo pessoal de Luffy: encontrar o One Piece. Afinal, conforme foi dito pelo Barba Branca, o mero fato de encontrar o One Piece resultará numa grande mudança para o mundo.
Pode se dizer que esse foi o motivo pelo qual Roger iniciou a Grande Era dos Piratas, enviando pessoas do mundo todo atrás do One Piece. Ele foi incapaz de trazer a Alvorada do Mundo, mas conseguiu trazer a alvorada de uma Era que levaria até ela. Talvez seja por isso que a descrição de sua execução tenha sido descrita com palavras tão especificas: “Em seus últimos segundos, com a centelha de vida que lhe restava, ele incendiou o mundo todo”.
Tomando por base o modo como Oda apresentou todas suas ideias até aqui, parece que a alvorada virá naturalmente quando tudo for reiniciado, algo que se alinha com o que os Chapéus de Palha tendem a fazer onde quer que vão. Eles não precisam ser heróis, mas não se importam em destruir tudo enquanto travam as lutas que seus amigos não têm como enfrentar.
V- Redefinindo a História
Nesse ponto, talvez alguns estejam se perguntando: e se a essência de tudo não for a Alvorada do Mundo, mas sim uma clássica história de bem contra o mal? Realmente não se trata de um tema filosoficamente complexo, mas a arte de contar grandes histórias não é definida pelo tema sobre o qual você escolhe escrever, mas sim pela forma com a qual esse tema é escrito. Nesse ponto do texto, acredito que a maior parte dos leitores concorda que o modo como Oda construiu a ideia da alvorada lenta e metodicamente na história, é simplesmente brilhante. Mantenham em mente que, obviamente, a alvorada não é o único dos grandes temas de One Piece. Estamos abordando apenas uma pequena parte do que a grande história realmente constitui. Há outros temas tão relevantes quanto esse, que foram desenvolvidos com igual maestria por Oda, mas vamos nos manter no tema da alvorada, para que possamos olhar para trás e perceber o quanto a história se tornou drasticamente diferente em relação ao conceito da história apresentado no primeiro capítulo. Ao mesmo tempo, de algum modo a história permanece inteiramente fiel ao conceito original.
Quando One Piece começa, parece que estamos lendo a história de um garoto que partiu numa aventura para encontrar um tesouro.
Na verdade, a história diz respeito a um mundo distópico que tem sido mantido à mercê de uma grande escuridão por centenas de anos. Houveram desejos e profecias que foram passados de uma geração a outra através dos séculos, segundo os quais um homem surgiria para encerrar a longa noite e levar o mundo à sua alvorada.
Assim sendo, o que estamos lendo realmente é a lenda desse homem, que partiu para os mares com o objetivo simples de encontrar um tesouro, mas que veio a se tornar uma figura praticamente messiânica. Ele viaja de ilha em ilha, age como um salvador (ainda que não tenha qualquer pretensão nesse sentido) e leva a luz aonde quer que vá. Conforme ele segue em frente em sua jornada, perseguindo seu objetivo pessoal de encontrar o tesouro, isso o leva a se posicionar naturalmente contra a grande escuridão que tem subjugado o mundo por tanto tempo. Essa jornada eventualmente o levará a derrotar a escuridão, fazendo com que ele leve luz a não apenas uma ilha. Não será apenas Alabasta, o Reino de Drum, a Ilha dos Tritões, ou Skypea e Dressrosa, mas sim ao mundo todo.
Para entender que a história se tornou completamente diferente do que era no início e que, de alguma forma, ainda permanece exatamente como era, levem em consideração o título do primeiro capítulo: Romance Dawn.
Analisando superficialmente, ele possui um significado simples e direto, que representa precisamente o que pensamos a respeito do que a história inicialmente se trata: esse é o começo, ou a alvorada, da aventura romantizada de Luffy. Porém, pouco a pouco percebemos que esse mundo não é tão romantizado quanto parecia no início: na verdade, ele é uma distopia. Assim sendo, a história toda está direcionada à Alvorada do Mundo, de sonhos idealizados e liberdade sem limites, ou seja, um verdadeiro mundo romantizado. A alvorada da aventura romantizada de um garoto está destinada a se tornar um épico com mais de mil capítulos, que irá culminar na alvorada de um mundo romantizado.
O título desse capítulo atesta a consistência de Oda como escritor, pois comprova uma visão clara e decisiva a respeito do que esse grande conto épico viria a se tornar. Um conto que se manteve no curso durante duas décadas e que nunca perdeu de vista a concepção original de seu autor.
Nessas alturas do campeonato, acho que todos entendemos que a história consiste em muito mais do que simplesmente um garoto tentando encontrar um tesouro famoso. Na verdade, acho que atualmente a história de One Piece se tornou tão densa com seus personagens, linhas narrativas e temas que, para explicar de maneira compreensível do que ela se trata, seriam necessárias várias análises.
Gostaria de iniciar explorando uma das ideias fundamentais sobre a qual a história de One Piece é construída, como um primeiro passo para reapresentá-la a partir de um ponto de vista panorâmico. Após cerca de 800 capítulos, há a introdução de um novo personagem, cuja apresentação é capaz de modificar a percepção que leitores possuíam a respeito da história até então.
Antes de falarmos a respeito das palavras de Nekomamushi e a crença dos Minks, iniciemos com o básico. Todos conhecemos a fórmula básica de One Piece: os Chapéus de Palha navegam até uma nova ilha; há caras maus causando problemas na ilha; os Chapéus de Palha derrotam os caras maus e resolvem os problemas; eles vão para a próxima ilha e a história se repete.
Embora essa fórmula seja superficialmente bem direta (e até mesmo repetitiva), muitas pessoas tendem a negligenciar a verdadeira ideia que Oda tenta passar aos leitores a cada ocasião na qual eles podem observar esse padrão.
As pessoas que nunca chegaram a dar uma chance para One Piece, tendem a possuir a impressão de que a série se resume a aventuras leves e o mesmo se aplica para aquelas que começarem a ler a obra também. Muitas coisas a respeito do mundo de One Piece podem ser caracterizadas como encantadoras, exóticas ou até mesmo bobas. De qualquer maneira, parece ser um universo realmente divertido de ser explorado.
Porém, as pessoas que avançam na leitura tendem a perceber, de forma consistente, que esse mundo nunca é tão feliz quanto aparenta superficialmente. Em cada lugar que os Chapéus de Palha visitam, há um grande mal afligindo a população local. Quase sempre há um poder reinante opressivo ou um conflito interno que está prestes a criar esse poder mas, a despeito disso, há sempre uma constante: a escuridão profunda que se abate sobre cada ilha.
Uma vila na qual os humanos se tornaram a raça subserviente. Uma nação onde o povo foi privado da medicina. Um país que foi manipulado em direção a uma guerra civil. Uma terra onde todos se encontram a mercê de um deus onipotente. A ideia é que em todas as partes do mundo, há uma espécie de domínio da escuridão. E como se não bastasse, normalmente os Chapéus de Palha costumam chegar nas ilhas em momentos cruciais, quando as trevas se tornaram absolutamente esmagadoras.
Talvez uma nação esteja se despedaçando, talvez genocídio esteja prestes a ocorrer, talvez a chance para um futuro melhor tenha sido destruída mas, em todas as situações, o ponto de desespero absoluto foi atingido. Aquele ponto no qual os habitantes de cada local lutaram o máximo que podiam, sofreram tudo o que suportavam, fizeram tudo o que estava ao seu alcance para deter esse mal e, mesmo assim, acabaram ficando impotentes. Nesse ponto no qual as coisas se tornaram piores que nunca, quando os habitantes estão literalmente implorando por algum tipo de milagre, quando estão completamente exauridos de qualquer esperança, os Chapéus de Palha surgem e se tornam a esperança.
Eles nunca planejaram se tornar um símbolo de esperança e nunca escolheram se tornar heróis, mas simplesmente por se envolverem nas batalhas de seus amigos, eles acabam enfrentando as lutas que os habitantes sofridos de cada ilha não possuem esperanças de enfrentar por conta própria. Eles são aqueles nos quais os fracos podem investir sua esperança. São os operadores de milagre capazes de fazer o impossível e, como tais, os Chapéus de Palha estão fadados a simbolizar a luz. Esse simbolismo é enfatizado consistentemente por Oda durante toda a série: os Chapéus de Palha são as estrelas brilhantes da esperança onde quer que eles estejam. Essencialmente, em todas partes desse mundo há escuridão e desespero, mas também há o navio que navega de ilha a ilha, trazendo a luz para brilhar através das trevas, onde quer que ele vá.
Então realmente há uma fórmula repetitiva, mas ela é assim por uma razão: Oda sempre está construindo a ideia de que esse um mundo poderia ser brilhante, caso não estivesse obscurecido pela escuridão. Os Chapéus de Palha sempre serão a luz navegando por esse mundo de dificuldades e tragédia, dissipando as trevas. Manter essa ideia fundamental básica nas entrelinhas da narrativa como um todo, serve como um conceito base para que Oda construa uma ideia ainda maior, oculta por detrás da história.
II – A Escuridão
Cada ilha possui algum tipo de escuridão da qual os Chapéus de Palha precisam se livrar mas, nessas alturas, já sabemos que a história de One Piece consiste em mais do que um bando de aventuras desconexas que ocorrem em diferentes ilhas.
Ainda que os Chapéus de Palha sejam capazes de trazer a luz a uma ilha de cada vez, gradualmente começamos a entender que há uma escuridão maior englobando tudo o que ocorreu até então.
No início, somos levados a acreditar que o terror primário dos mares são os piratas. Afinal, essa é a Grande Era dos Piratas, essa é uma história sobre piratas e, embora Luffy e sua tripulação sejam boas pessoas, quase todos os outros piratas que eles encontram podem ser considerados vilões, na plena acepção do termo. Esse é o motivo pelo qual Luffy passa a primeira parte de sua jornada salvando pessoas inocentes de piratas vis.
Parece se tratar do clássico “cara bom contra o cara mau”, mas isso nos leva a questionar se o enfrentamento desses bandidos dos mares não deveria ser realizado pela Marinha ou se não deveria ser uma atribuição do Governo Mundial. Afinal, essas pessoas confiam na Marinha para lhes proteger e também aparentam ter grande fé no governo vigente. Conforme a história avança, porém, passamos a receber algumas informações e pequenas pistas que vão se juntando e passam a apontar para algo fundamentalmente errado a respeito desse mundo.
A Marinha na qual o povo confia parece abusar livremente de seu próprio poder e até mesmo permite a ação de piratas, até o ponto no qual o grande Governo Mundial (que se encontra por detrás da Marinha) passou a empregar piratas para supostamente manter a ordem.
Esse sistema, no qual os piratas a mando do governo são designados como Shichibukai, foi responsável por libertar Arlong no East Blue e quase causou a completa destruição da nação chamada Alabasta. Esse último incidente foi contido devido a intervenção de piratas, mas o governo escolheu encobrir esse fato e suprimir a verdade. Além disso, não podemos esquecer que a principal preocupação do governo após o incidente basicamente consistiu em decidir qual pirata contratar a seguir.
Aos poucos, começa a ficar evidente que essa organização está mais preocupada em proteger sua própria imagem e manter o seu poder, do que exercer sua função propriamente dita: governar de verdade. Assim sendo, gradualmente passamos a receber pistas a respeito do que essas grandes autoridades realmente desejam, até chegarmos no arco de Water 7.
Nesse ponto, a narrativa faz uma curva aguda rumo ao coração dessa organização, o que essencialmente remove a “cortina” e revela a verdadeira natureza do governo que comanda o mundo. A partir de então, passamos a vê-lo como o império autoritário que ele efetivamente é, que utiliza manipulação, violência e supressão da verdade para manter seu poder como o regime opressor que alcança todo o globo. Um regime que manteve o controle sobre esse mundo por literalmente 800 anos...
Se recuarmos por um momento, podemos observar o que Oda havia mostrado até então: cada ilha visitada pelos Chapéus de Palha encontrava-se a mercê de algum tipo de escuridão. Eles lutavam no lugar dos habitantes e se tornavam a luz que dissipava essa escuridão, seguindo rumo ao próximo destino. Isso até encontrarem Robin, que se torna um caso anômalo, já que supostamente se encontra sobre o jugo de uma grande e misteriosa escuridão. Aparentemente, se trata de uma ameaça tão grande que Robin não consegue escapar, não importa para onde tente fugir.
É através de Robin que nossos olhos finalmente se abrem para o fato de que essa grande escuridão é, na verdade, o próprio mundo. É isso que o Governo Mundial simboliza: ele é a grande escuridão que projeta sombras sobre tudo o que foi mostrado até então. Aqueles que o servem são literalmente os Agentes da Escuridão, que levam a cabo sua Justiça Sombria.
A partir dessa revelação, Oda abandona gradualmente a sutileza e torna cada vez mais evidente qual é a verdadeira raiz da maldade no mundo. Por mais que os piratas possam ser ruins, o regime sombrio que permite a ascensão desses criminosos rebeldes é ainda pior. O governo é a verdadeira escuridão que paira sobre todo esse mundo e nós presenciamos essa ideia sendo comunicada de maneira cada vez mais clara em praticamente todos os arcos consecutivos.
Então olhemos novamente para os pequenos arcos que estruturam a história de One Piece: os Chapéus de Palha chegam a uma ilha, acham que ela é maravilhosa, lentamente começam a perceber que há algo errado e finalmente se dão conta de que há uma grande escuridão atuando no local. O mesmo se aplica à narrativa maior de One Piece, que foi estruturada por Oda exatamente da mesma forma: os leitores começam partindo em uma divertida aventura num mundo que superficialmente parece fantástico e fabuloso. Lentamente passam a receber pistas de que o mundo não é tão romantizado quanto parece, que há maldade em todo lugar e boa parte dela pode ser ligada a uma fonte maior. Eventualmente, os leitores percebem que estavam diante de uma obra de ficção distópica durante todo esse tempo...
III – A Alvorada
Ao final da primeira etapa da história, os leitores compreendem que há uma grande escuridão que cobre o mundo todo. Uma vez que isso foi estabelecido de maneira firme, há a transição para a segunda etapa da história, na qual Oda começa a colocar grande ênfase em certos temas que sempre estiveram presentes, mas que começam a ter maior significado a partir de então.
No arco da Ilha dos Tritões, Oda começa a explorar o significado do sol e os leitores descobrem o sonho da rainha Otohime para seu povo: após serem forçados a viver na escuridão das profundezas oceânicas por séculos, ela desejava que os tritões fossem capazes de alcançar a luz do sol. Aqui o significado de alcançar a luz é literal e metafórico: os tritões realmente anseiam alcançar o sol por viverem no fundo do oceano, mas também esperam escapar do jugo da escuridão imposta pelo seu passado. Através dos tritões, Oda começa a trabalhar o conceito figurativo do sol em sua obra, fazendo com que ele passe a simbolizar um mundo melhor e um futuro iluminado.
Os leitores veem essa ideia ecoando na história de outra raça, os gigantes de Elbaf, que parecem idolatrar o sol. Oda escolhe retratar um breve flashback de Elbaf durante um solstício de inverno, quando há um festival que celebra especificamente a morte e o renascimento do sol. Nessa ocasião, presenciamos um severo inverno que será encerrado pelo retorno de um sol brilhante.
E ainda mais recentemente, no arco de Wano, uma nação que caiu na escuridão quando Kaido e Orochi ascenderam ao poder, a ideia é retomada uma vez mais, na profecia de Toki. Nela, o governante opressivo, Orochi, é caracterizado como a lua. Toki declara que, um dia, o governante encontrará sua ruína, quando ele conhecer o brilho da alvorada.
Assim sendo, durante a segunda etapa da história, há uma ênfase considerável a respeito do surgimento do sol ou, mais especificamente, à alvorada. Obviamente Oda não vincula a derrota do Governo Mundial a cada vez que a ideia do sol ou da alvorada é citada, mas conforme nos aproximamos do final da série, a alvorada é referenciada cada vez mais. Ela se tornou uma figura de linguagem constante a despeito de seus vários contextos, mas sempre manteve a conotação que indica o fim da escuridão e a chegada de um futuro reluzente. Essa mensagem é importante porque ela é o conceito maior para o qual a história está se dirigindo: a Alvorada do Mundo.
Quando os Minks começam a falar sobre a Alvorada do Mundo, os leitores não fazem ideia a respeito do que eles estão se referindo. Porém, gradualmente eles começam a perceber que, para os Minks, presenciar essa alvorada consiste em algo de extrema importância, ao ponto de devotarem suas vidas para que ela seja alcançada.
Levando em conta o nome da tripulação de Pedro, os Piratas Nox, parece que da perspectiva dos Minks, o mundo se encontra sobre uma espécie de noite sem fim. Porém, eles tomaram para si o nome Nox (Noite), por acreditarem que nenhuma noite pode continuar para sempre, sem que haja uma alvorada. Naturalmente, a noite à qual eles parecem se referir, seria a grande escuridão, ou seja, a regência do Governo Mundial. Isso fica subentendido quando eles afirmam que essa noite tem durado por séculos, assim como o próprio Governo Mundial. No esforço de alcançar a alvorada, Pedro estava procurando especificamente por Poneglyphs, as pedras que registram os segredos do mundo antes que o Governo Mundial assumisse o controle.
Então vamos recapitular: a partir do salto temporal que iniciou a segunda etapa da história, Oda tem acenado continuamente para a ideia de que um futuro reluzente é representado pelo sol, de que invernos rigorosos se encerram com o renascimento do sol ou de que a lua inevitavelmente encontra o brilho do amanhecer... O que realmente importa é destacar que toda escuridão irá desvanecer perante a alvorada. Através dos Minks, Oda informa aos seus leitores que o mundo todo está aguardando pela alvorada, uma liberação da longa noite de trevas que a regência do Governo Mundial representa.
Em boa parte das ocasiões nas quais o sol é referenciado, há personagens que parecem associar a grandeza do sol especificamente à vastidão sem limites do céu aberto. Com isso, o sol parece invocar um sentimento de liberdade. Uma vez que os leitores possuem ciência a respeito do quanto a liberdade é importante em One Piece, isso sugere que o sol não está destinado a representar apenas um futuro iluminado, como também (e ainda mais especificamente) a ideia de que esse futuro é caracterizado de forma inerente pela liberdade. Podemos observar essa ideia sendo prenunciada no arco de Amazon Lily, onde os leitores descobrem que todos os escravos dos Tenryuubito (ou Dragões Celestiais), tem suas costas marcadas com o símbolo desses nobres, que simboliza a posse e controle dos mesmos sobre tais escravos.
Um dos simbolismos mais importantes da série ocorre quando Fisher Tiger liberta os escravos dos Dragões Celestiais e os remarca, de modo que o símbolo da escravidão acaba sendo apagado e sobreposto por uma marca de sol. A partir de então, o sol se torna o símbolo dos tritões para a liberdade e também de sua recusa em ser controlados.
Considerando tudo isso, parece natural que Oda conceda ao sol esse significado adicional de liberdade. Afinal, a principal escuridão de One Piece, o Governo Mundial, é vastamente definida pelo quanto ela procura suprimir a liberdade. Desse modo, parece adequado que o sol represente não apenas o fim do regime sombrio, como também a liberdade que isso traria.
Além de tudo, Oda também parece estar dizendo algo mais aos leitores: para que haja a alvorada, parece ser necessário que haja um reset completo da ordem existente. É preciso que a lousa seja completamente apagada antes que uma nova história possa ser escrita, por assim dizer. Voltando até o arco da Ilha dos Tritões, há duas ideias principais que são comunicadas: a primeira é que os tritões precisam perseverar para alcançar a luz do sol e a segunda, é que para alcança-la, toda sua história precisa ser destruída, para que eles possam se livrar de sua escuridão e começar novamente do zero.
Os leitores já presenciaram essa ideia sendo abordada anteriormente em One Piece: Dalton também pretendia erradicar a história do Reino de Drum para que eles pudessem recomeçar do zero. Dessa forma, eles poderiam renascer como um país completamente novo e sem nome. Posteriormente, no final do arco de Dressrosa, após todo o país ter sido dizimado e completamente reduzido a ruínas, os leitores percebem que essa nação na verdade está comemorando pois, a despeito de toda a destruição, ela pode renascer como uma terra nova e plena com liberdade.
Desse modo, se recuarmos um passo e juntarmos todas essas ideias que Oda vem desenvolvendo através de vários arcos e contextos, parece que ele quer dizer que o mundo se encontra à mercê de uma grande escuridão e que o sol e sua alvorada significam o fim dela. Que para alcançar o sol, se faz necessário destruir tudo completamente e começar do zero. Será apenas a partir de uma tabula rasa que a alvorada se apresentará a um novo mundo com um futuro reluzente. Esse fato encapsula a ideia de que o sol simboliza também a liberdade, já que esse é o futuro mais desejado pelos habitantes do mundo todo. É também por esse motivo que a destruição do mundo é vista como o objetivo de “D”.
IV – Revisitando os Chapéus de Palha
Até aqui, estabelecemos que a Alvorada do Mudo precisa acontecer para acabar com a longa noite de regência do Governo Mundial. Porém, isso não vai acontecer magicamente: alguém precisará fazer com que isso aconteça. É nesse ponto que entram os Chapéus de Palha.
Olhando para a série como um todo, podemos notar que eles têm sido moldados para se tornarem aqueles que vão mudar o mundo. Ouvimos várias vezes que Roger estava esperando por alguém que poderia concluir o que ele mesmo não pôde, já que sua vida acabou encurtada em virtude de uma doença. Aparentemente a tripulação de Roger passou a acreditar que Luffy e os Chapéus de Palha serão aqueles que irão encarar esse desafio.
O Barba Branca, naquele que pode ser considerado o mais importante monólogo na história, diz que um dia virá um homem carregando séculos de história sobre seus ombros e desafiará o Governo Mundial para lutar.
Posteriormente Otohime fala a respeito de um alguém que será capaz de guiar sua filha pelo caminho correto e que também traria uma grande mudança para o mundo. Toda essa história tem sido desenvolvida em torno do fato dos Chapéus de Palha estarem assumindo o papel a respeito do qual os Minks têm falado a respeito: de serem aqueles que trarão a Alvorada do Mundo.
Além dos monólogos e profecias, Oda tem deixado pistas que prenunciam esse fato desde o início da história. Já falamos sobre como os Chapéus de Palha foram constantemente caracterizados como a luz de esperança onde quer que eles passassem. Porém, agora é possível revisitar a história com uma nova perspectiva, para perceber que haviam pistas apontando que os Chapéus de Palha não eram apenas a luz: eles são, especificamente, a luz do sol ou da alvorada.
A aventura de Luffy começa com ele partindo de Dawn Island (Ilha da Alvorada). No arco de Thriller Bark, Oda criou um cenário no qual os Chapéus de Palha estavam literalmente lutando pela luz do sol. A derrota de Moria e o fim da escuridão que imperava sobre Thriller Bark, coincidem com a chegada da alvorada.
Em Sky Pea, um arco carregado de prenúncios, há um falso deus que descobre que Luffy consiste no seu inimigo natural, assim como os “D” são os inimigos naturais dos falsos deuses conhecidos como Dragões Celestiais. Presenciamos esse falso deus iniciar uma “grande purificação”, similar àquela que os Dragões Celestiais estão contemplando. No momento em que essa “purificação” está prestes a acontecer, quando toda esperança parece perdida, com os céus tendo escurecido e a escuridão parece ter se apoderado de tudo, vemos que Luffy, o inimigo natural do deus, é capaz de destruir a escuridão criada por esse falso deus e fazer o sol raiar.
Além disso, vale notar que Oda tende a criar navios piratas que refletem a natureza do capitão e sua tripulação. É provável que a maior parte dos leitores não pense a respeito do motivo pelo qual o navio dos Chapéus de Palha possui um nome e um design especificos mas, considerando tudo o que vimos até aqui, creio que todos sejam capazes de perceber o quão deliberada foi a escolha do nome Thousand Sunny. O modo como Oda retrata a figura de sua proa é brilhante, pois ele faz parecer como se fosse uma escolha aleatória. Não faria muito sentido se ele tivesse feito Franky escolher o sol como a figura de proa, já que os Chapéus de Palha não estão cientes do simbolismo que isso implica. Então, ao invés disso, Oda faz com que Franky escolha a figura de um leão, por ele pensar que se trata de uma escolha máscula. Quando Franky recebe a figura, seu design remete a uma flor de girassol, concedendo uma boa razão para que o navio seja nomeado como Thousand Sunny, sem que os Chapéus de Palha ou os leitores atentem para a significância disso.
Ainda mais importante é considerar o momento no qual os Chapéus de Palha trocam de navio. Na primeira etapa da jornada, eles estavam simplesmente explorando o mundo e derrotando a escuridão onde quer que a encontrassem. Então eles finalmente se deparam com a maior escuridão, que engloba o mundo todo: o Governo Mundial... e declaram guerra contra ele.
Nesse momento, a história muda fundamentalmente e pode se dizer que a verdadeira história de One Piece finalmente se inicia. Após declararem guerra contra a escuridão que cobre o mundo, os Chapéus de Palha precisam de um novo navio que reflita seu papel definitivo, atuando como o sol. Mesmo que eles não estejam cientes, desse ponto em diante eles se encontram num caminho para trazer a Alvorada do Mundo. Como Iceberg ressalta, o Sunny parece ser o navio certo para eles: um navio destinado a cruzar milhares de mares cruéis alegremente como o sol. E como foi ressaltado no início do texto, é isso que os Chapéus de Palha têm feito até o ponto no qual a história se encontra.
Em todas as partes do mundo há escuridão e os Chapéus de Palha navegam pelos mares cruéis como uma luz de esperança, indo de ilha em ilha e eliminando a escuridão onde quer que a encontrem. Da mesma forma, foi dito no início do texto que Oda estrutura a história de modo que os eventos de menor escala sejam uma representação dos eventos de maior escala, que estruturam a narrativa como um todo. Dessa forma, agora nos encontramos no ponto no qual, basicamente, percebemos que a história maior de One Piece consiste nos Chapéus de Palha continuarem a fazer o que já vinham fazendo numa escala menor: levar a luz aonde quer que eles vão, porém, numa escala global. Cabe a eles levar a luz ao mundo todo.
A melhor parte nisso tudo, é que a missão pessoal dos Chapéus de Palha nunca muda: eles nunca se consideraram heróis que levam a luz onde quer que vão. Mesmo quando se trata de trazer a Alvorada do Mundo, tudo parece ser preparado para que esse seja o final natural do objetivo pessoal de Luffy: encontrar o One Piece. Afinal, conforme foi dito pelo Barba Branca, o mero fato de encontrar o One Piece resultará numa grande mudança para o mundo.
Pode se dizer que esse foi o motivo pelo qual Roger iniciou a Grande Era dos Piratas, enviando pessoas do mundo todo atrás do One Piece. Ele foi incapaz de trazer a Alvorada do Mundo, mas conseguiu trazer a alvorada de uma Era que levaria até ela. Talvez seja por isso que a descrição de sua execução tenha sido descrita com palavras tão especificas: “Em seus últimos segundos, com a centelha de vida que lhe restava, ele incendiou o mundo todo”.
Tomando por base o modo como Oda apresentou todas suas ideias até aqui, parece que a alvorada virá naturalmente quando tudo for reiniciado, algo que se alinha com o que os Chapéus de Palha tendem a fazer onde quer que vão. Eles não precisam ser heróis, mas não se importam em destruir tudo enquanto travam as lutas que seus amigos não têm como enfrentar.
V- Redefinindo a História
Nesse ponto, talvez alguns estejam se perguntando: e se a essência de tudo não for a Alvorada do Mundo, mas sim uma clássica história de bem contra o mal? Realmente não se trata de um tema filosoficamente complexo, mas a arte de contar grandes histórias não é definida pelo tema sobre o qual você escolhe escrever, mas sim pela forma com a qual esse tema é escrito. Nesse ponto do texto, acredito que a maior parte dos leitores concorda que o modo como Oda construiu a ideia da alvorada lenta e metodicamente na história, é simplesmente brilhante. Mantenham em mente que, obviamente, a alvorada não é o único dos grandes temas de One Piece. Estamos abordando apenas uma pequena parte do que a grande história realmente constitui. Há outros temas tão relevantes quanto esse, que foram desenvolvidos com igual maestria por Oda, mas vamos nos manter no tema da alvorada, para que possamos olhar para trás e perceber o quanto a história se tornou drasticamente diferente em relação ao conceito da história apresentado no primeiro capítulo. Ao mesmo tempo, de algum modo a história permanece inteiramente fiel ao conceito original.
Quando One Piece começa, parece que estamos lendo a história de um garoto que partiu numa aventura para encontrar um tesouro.
Na verdade, a história diz respeito a um mundo distópico que tem sido mantido à mercê de uma grande escuridão por centenas de anos. Houveram desejos e profecias que foram passados de uma geração a outra através dos séculos, segundo os quais um homem surgiria para encerrar a longa noite e levar o mundo à sua alvorada.
Assim sendo, o que estamos lendo realmente é a lenda desse homem, que partiu para os mares com o objetivo simples de encontrar um tesouro, mas que veio a se tornar uma figura praticamente messiânica. Ele viaja de ilha em ilha, age como um salvador (ainda que não tenha qualquer pretensão nesse sentido) e leva a luz aonde quer que vá. Conforme ele segue em frente em sua jornada, perseguindo seu objetivo pessoal de encontrar o tesouro, isso o leva a se posicionar naturalmente contra a grande escuridão que tem subjugado o mundo por tanto tempo. Essa jornada eventualmente o levará a derrotar a escuridão, fazendo com que ele leve luz a não apenas uma ilha. Não será apenas Alabasta, o Reino de Drum, a Ilha dos Tritões, ou Skypea e Dressrosa, mas sim ao mundo todo.
Para entender que a história se tornou completamente diferente do que era no início e que, de alguma forma, ainda permanece exatamente como era, levem em consideração o título do primeiro capítulo: Romance Dawn.
Analisando superficialmente, ele possui um significado simples e direto, que representa precisamente o que pensamos a respeito do que a história inicialmente se trata: esse é o começo, ou a alvorada, da aventura romantizada de Luffy. Porém, pouco a pouco percebemos que esse mundo não é tão romantizado quanto parecia no início: na verdade, ele é uma distopia. Assim sendo, a história toda está direcionada à Alvorada do Mundo, de sonhos idealizados e liberdade sem limites, ou seja, um verdadeiro mundo romantizado. A alvorada da aventura romantizada de um garoto está destinada a se tornar um épico com mais de mil capítulos, que irá culminar na alvorada de um mundo romantizado.
O título desse capítulo atesta a consistência de Oda como escritor, pois comprova uma visão clara e decisiva a respeito do que esse grande conto épico viria a se tornar. Um conto que se manteve no curso durante duas décadas e que nunca perdeu de vista a concepção original de seu autor.