É certamente algo curioso de se notar que, sob "condições normais", a sátira serve precisamente de benefício para quem está no poder. A comédia produz o famoso "alívio cômico" (comic relief). Ela não ameaça a manutenção do poder, mas sim o ratifica na sua reprodução indefinida. Inclusive, não haveria Bolsonaro como presidente sem a comédia.
Todo o seu aparelhamento midiático explicitamente repousava em um tom jocoso ("mito!", "mitou!", "mitagem!" e etc). Mas aqui vale uma ressalva importante: foi pelo fato de que Bolsonaro se apresentou como a direta personificação cabal de um meme que ele se tornou "necessário" e "indestrutível" (obviamente já surfando nas falhas da esquerda, chafurdada no politicamente correto, na corrupção e nas crises econômica e política).
O que a constante auto-ironia mascarava era o quão seriamente ela "secretamente" se considerava. Sem a união do "mito" (como sublime mitologia) com o "mito" (como ingênua farsa juvenil) não há "fenômeno Bolsonaro" como nós o conhecemos. E o limite da "brincadeira" é claramente revelado precisamente em momentos deste tipo, quando o "mito" é zombado (mas já sem a "mitagem" por detrás de si sempre para salvá-lo em sua indestrutível honra e dignidade).
Nestes momentos, o obsceno mito pastelão é finalmente revelado precisamente como um mito, já sem o seu indestrutível suporte mitológico por detrás de si. O "sublime mito" se torna "somente um mito", o que é irônico pra cacete quando pensamos que um dos absolutos mantras do bolsonarismo é precisamente ser "contra a frescura" e a "correção política da esquerda" (não me recordo de jamais ter presenciado tamanha choradeira de uma vez, por parte da esquerda, por conta de uma simples sátira de uma de suas "vacas sagradas").
É nestes momentos que a fanática seriedade "implícita" do bolsonarismo finalmente irrompe o invólucro de seu simulacro irônico e por fim ganha a luz do dia. Isto irrita o bolsonarismo porque o obriga à confrontação de uma piada (neste caso, a da sua própria existência) precisamente como uma piada (ainda que publicamente não admitida, é claro, mas os seus sintomas já nos são vistosos o suficiente). A Globo "comunista, chavista, stalinista e satanista" acertou o alvo onde ele dói mais.