"Por que o isolamento social obrigatório é economicamente eficiente?
Quando se alega que, em resposta à pandemia do novo coronavírus, precisamos escolher entre salvar vidas ou a preservar a economia, há uma suposição implícita: a de que a perda de uma vida não constitui em si um custo econômico. Não estou falando aqui do custo correspondente ao que as pessoas que vierem a morrer deixarão de produzir. Tal custo pode reduzir o PIB total de um país, mas, na média, não reduz o PIB per capita. Inclusive, se a maioria dos mortos não estiverem economicamente ativos, essas mortes podem até mesmo aumentar o PIB per capita. Estou falando de um custo que não é contabilizado no PIB: o valor que as pessoas estão dispostas a pagar (ou deixar de ganhar) para reduzir o seu risco de vida. A literatura chama essa métrica de “valor estatístico da vida”.
As escolhas das pessoas revelam que elas estão dispostas a aumentar o seu risco de vida em troca de recompensas financeiras, assim como também estão dispostas a dispender recursos para reduzir sua chance de morrer. Quando alguém opta entre em procedimento cirúrgico mais barato e mais arriscado e outro mais caro e mais seguro, tal dilema consiste precisamente neste trade-off. O mesmo se pode dizer da escolha de um limpador de janelas entre trabalhar em um arranha-céu ganhando um salário maior ou em um imóvel baixo, auferindo um salário menor. Como o mundo real está cheio desses dilemas, é possível mensurar empiricamente, a partir de preços de mercado, qual o valor estatístico de uma vida com base nas preferências reveladas das pessoas de uma sociedade. O ganhador do Nobel de Economia de 2017, Richard Thaler, publicou um estudo seminal desse tipo em 1976 [1]. Segundo o célebre jurista americano Cass Sunstein, estudos mais recentes nos EUA estimam que o “valor estatístico da vida” no país é de cerca de U$ 10 milhões [2].
Pode parecer frio e cruel atribuir um valor econômico a uma vida, mas esse tipo de dado é essencial para que os gestores públicos tomem decisões. Não faz sentido algum tentar reduzir o risco de vida das pessoas a zero. Como afirma Sunstein no mesmo artigo, milhares de pessoas morrem no trânsito e em obras todos os anos, mas mesmo assim não proibimos o uso de veículos automotores ou a construção civil. Buscar risco zero não faz sentido. Contudo, para buscar um nível de risco que seja coerente com as preferências da sociedade, o “valor estatístico da vida” é um bom referencial. Conforme esse critério, uma regulação ou gasto público é eficiente até o ponto em que o prejuízo econômico correspondente seja inferior ao “valor estatístico da vida”.
Poder-se-ia argumentar que US 10 milhões é um valor inadequado para pautar a adoção de políticas no Brasil, porque a renda per capita real dos EUA é mais de quatro vezes maior que a nossa. Por esse motivo, os residentes no Brasil estariam, na média, dispostos a renunciar menos dinheiro para reduzir seu risco de vida. Para corrigir isso, podemos adotar a solução proposta por Gary Becker e Richard Posner [3] e multiplicar o “valor estatístico da vida” dos EUA pela razão entre a renda per capita brasileira e a renda per capita americana. O resultado será cerca de R$ 10 milhões (reais ao invés de dólares).
Podemos adotar essa perspectiva para avaliar as providências que o governo deveria tomar em face da pandemia do Covid-19. Em uma primeira aproximação, poderíamos pensar que cada pessoa irá tomar sua decisão de ficar isolado ou de se expor socialmente tendo em conta o risco que corre de contrair a doença e vir a morrer, havendo assim um equilíbrio eficiente sem intervenção estatal. Isso não é verdade, contudo, pois quando alguém opta por manter contato social, não há apenas o risco do próprio agente ser infectado, mas também o risco de ele vir infectar outras pessoas. Na ausência de ação estatal, os incentivos para que os indivíduos levem em conta esse último risco em sua tomada de decisão são bastante limitados, havendo um enorme problema de externalidade [3]. É por esse motivo que, individualmente, pode ser uma decisão racional para muitos optar por manter contato social; todavia, o resultado desse conjunto de escolhas é um cenário pior para todos do que aquele que ocorreria caso todos adotasse o isolamento social. Trata-se de uma situação que corresponde a um jogo do tipo dilema dos prisioneiros [4].
De acordo com a modelagem estatística mais recente do Imperial College London [5], a diferença entre a adoção de um isolamento social mais rigoroso (supressão) e um mais brando (mitigação) no Brasil é da ordem de 500.000 vidas. Se adotarmos R$ 10 milhões como o “valor estatístico da vida” no Brasil, o custo econômico dessas vidas é de aproximadamente R$ 5 trilhões (68,5% do PIB). Não é difícil concluir que, mesmo que um lockdown imposto pelo governo gere uma significativa queda do PIB, o custo das vidas que podem ser perdidas em um cenário sem restrições é brutalmente maior.
Hélio de Mello*
* Acompanhando a decisão do criador desta Página, Lucas Favaro, também passarei a assinar meus textos marcando o meu nome, ao invés de apenas registrar minhas iniciais (~HKFM).
[1]
https://www.nber.org/chapters/c3964
[2]
https://www.bloomberg.com/opinion/a...jj53v6gpu6Yitklb7lHOs8HOsCrCB0Uxe7J5aMyonduAk
[3]
https://www.becker-posner-blog.com/...KzqwrK55Dtx7VR1zffZj-5UwIVLX_sNGA1tcvFWugOMGA
[4]
http://www.barrichelo.com.br/teoriadosjogos/list-trechosimprime.asp?id=29
[5]
https://www.imperial.ac.uk/mrc-glob...VclPBVW5x3Z3yOn5N1X6siDO5P7ezUOm_UwOUu31RBoAY"
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