Modéstia à parte, meu salário é um dinheiro bem gasto. Sou eficiente e honesta e meu trabalho ajuda a garantir o acesso de milhões de pessoas a um serviço de utilidade pública bem avaliado pelos usuários e que precisa estar disponível 24 horas por dia e recebo apenas pelas horas que passo diariamente nas repartições espalhadas pela cidade (obviamente, não me pagam pelo transporte público extra que preciso usar para ir de um local a outro onde minha presença é requisitada, nem pelo trabalho que levo para casa).
Até um mês atrás, 11% desse salário ia para a previdência, entre outros descontos. No próximo contracheque já avisaram que vai subir pra sei lá quanto (alguma coisa de 14 a 16%). O resto vai todo de volta para as mãos da nossa valorosa iniciativa privada, essas pessoas lindas que me chamam de parasita mas que só esse ano já me obrigaram a abrir umas trocentas reclamações por tudo quanto é tentativa de golpe.
Se você não estiver contente com meu trabalho, você terá uma ouvidoria para reclamar. Ou então fazer como os mais impacientes, pegar os telefones da diretoria ou da presidência disponíveis publicamente na internet (e não algum 0300 que vai ficar te enrolando) e botar a boca no trombone. Acredite, eu vou me dar muito mal. Eles sabem te destruir como ninguém em um órgão público. E providências serão tomadas (com resultados variados conforme os recursos disponibilizados pelos chefões do governo, claro). Os canais existem, desde que você não esteja entre aqueles brasileiros covardes e preguiçosos que morrem de medo de reclamar e exigir seus direitos.
Enquanto isso, em um intervalo de almoço, em um desses dias em que dá tempo de almoçar, lá vou eu cometer o enorme erro de reclamar com a gerente de um restaurante porque que os talheres e pratos que deviam estar limpos estavam com enormes crostas de comida, e a valorosa trabalhadora da iniciativa privada faz cara feia, dá de ombros e nem sequer tem a dignidade de me pedir desculpas. Ainda dão risadas pelas minhas costas quando eu desisto, largo o prato e vou tentar encontrar um lugar menos sujo.
E nem posso escolher, porque a desonestidade está em toda parte. Está nos táxis, nos supermercados, nas lojas online, nos hospitais, e eu me sinto totalmente vulnerável, porque NINGUÉM escuta minhas reclamações. Ninguém se importa.
Independente disso, essa parasita vai continuar pegando trem e ônibus lotado cheio de gente tossindo sem cobrir o rosto e, como a perfeita idiota que é, vai fazer seu trabalho honesto em um escritório sem ventilação onde o teto está caindo sobre minha cabeça e os banheiros estão fechados indefinidamente para reforma que nunca acontece por falta de recursos, enquanto continua sendo roubada pelo governo e xingada por crianças priviliegiadas em fóruns de internet ou pelos pilantras cínicos da iniciativa privada.