Nós perdemos tudo.
Provavelmente o início desse diário vai soar dramático demais e extremamente pessimista. Todavia, existe um sentimento de perda que me acompanha desde o fatídico ano de 2015 quando anunciaram que Hideo Kojima deixaria a Konami, informação que veio antes mesmo do lançamento de MGS V. É um sentimento que teima em me deixar, fruto de um vazio que minha mente não consegue ignorar ou aceitar completamente. Metal Gear é minha franquia favorita nos games. Metal Gear Solid é o jogo, ao lado de Resident Evil, que me fez olhar completamente diferente para os jogos eletrônicos. Mudou minha percepção da mídia, mudou minha expectativa sobre o que esperar de um game... Mudou a minha vida dentro dos limites possíveis para uma obra de ficção que tem como função ser prioritariamente entretenimento. Ainda que a série possua uma característica lúdica inerente a própria mídia a que ela pertence, característica essa que inevitavelmente se torna o pilar de qualquer jogo eletrônico, existe uma admirável e indelével visão crítica sobre o mundo ao nosso redor em cada um dos games de Kojima.
Metal Gear é um blockbuster dos games e ainda assim é uma obra incontestavelmente autoral. Poucos criadores de história em condições semelhantes a Kojima possuíram tamanha liberdade para contar sua história, e aqui falo não só em relação aos games e sim em relação a qualquer outro tipo de mídia. Você pode não gostar da série, ou talvez gostar dos jogos e não gostar da história, mas ninguém com conhecimento básico sobre o mercado de entretenimento vai pensar diferente. Em cada capítulo de Metal Gear um tema que representava de alguma maneira alguns dos grandes questionamentos de sua época: GENE, MEME, SCENE, SENSE. Caramba... A trama de MGS 2 foi vanguardista como poucas obras conseguiram ser. Anteciparam dilemas de nossa época atual em mais de uma década (toda a trama sobre o controle de informações). Certa vez li uma matéria que dizia mais ou menos assim em seu título: "Metal Gear Solid: No topo do entretenimento eletrônico". Concordo plenamente.
O maior diferencial da franquia não estava nas belas cenas de corte, nos ótimos diálogos, na narrativa cinematográfica, nos vilões memoráveis, nos personagens bem desenvolvidos, na jogabilidade bem elaborada, na diversão que proporcionava ou nas maluquices da história ou de cenas bizarras para a maioria dos ocidentais. Não... O grande diferencial sempre foi o pensamento crítico de Kojima em relação ao mundo em que vivemos. A dinâmica entre as grandes e pequenas nações durante a história do século XX, o papel do soldado, o significado das guerras e o absoluta efemeridade das relações de poder entre aliados e inimigos. No centro de todo grande conflito pequenas relações humanas se tornavam tão dramáticas quanto o próprio destino do universo criado por Kojima como um amálgama do mundo real com uma realidade fantástica povoado pelo absurdo tecnológico e pelo sobrenatural. Os jogos de Kojima sempre ofereciam ao jogador mensagens que podiam nos levar a grandes questionamentos sobre a condição humana.
Exagero?
Bom... Não posso responder por todos, mas foi isso que a série me proporcionou durante todo esse tempo. E não é coisa da minha cabeça, tudo isso está lá para quem tiver interesse em se aprofundar. Então, quatro anos depois ainda estou aqui me lamentando pelo que aconteceu. A "Autoralidade" de Kojima foi o seu calcanhar de Aquiles e ele foi obrigado a deixar a série que criou. Uma injustiça que faz parte do mundo capitalista em que vivemos. É assim que funcionam boa parte das relações entre criadores e empresas e não existe nada que possamos fazer sobre isso além de lamentar. Me prolonguei até agora com o objetivo de desabafar e tentar descrever não só a importância dessa série para mim, mas também esse sentimento de tristeza que tem me acompanhado nesses últimos anos. O motivo de não ter jogado até hoje é justamente consequência dessa tristeza..
Toda história tem um fim, mas todos sabemos que não é exatamente esse fim que Kojima planejava. E eu realmente não queria me conformar com a ideia de que não existiria mais um Metal Gear para ser lançado, viabilizando a criação de mil teorias sobre a história, ou para ser jogado e apreciado com uma mensagem relevante sobre os dilemas de nossa espécie. Sendo assim, não tive nenhuma pressa para finalizar os jogos que me faltavam: PW, Ground Zeroes e agora o MGS V. Minha inexorável jornada para o fim da série começou assim, cheia de lamentações e tristeza. Claro, nada que tenha peso negativo real nas vicissitudes da minha vida ou que tenha me atrapalhado de qualquer maneira em qualquer aspecto... Apesar de todo esse texto dramático ainda falo de uma genuína "tristeza de fã" que jamais ultrapassou o limite do que é saudável.
Nessas condições comecei a jogar Metal Gear Solid: Peace Walker no PS3.
MGS: PW conta com várias limitações por ter sido lançado para portáteis primeiro, mas mesmo assim é um legítimo jogo da franquia e se tornou parte essencial da experiência que me levaria ao MGS V. É o jogo que menos gostei da série principal, mas ainda assim é um ótimo jogo que me proporcionou mais de 140 horas de diversão. A interatividade a serviço da história... Esse sempre foi o lema de todo Metal Gear e é justamente pela interatividade única viabilizada por um jogo eletrônico que Kojima quis proporcionar a cada jogador a capacidade de se colocar no lugar de Big Boss enquanto ele criava sua base de operações e montava seu exército. O Lúdico sempre como objetivo principal da obra, mas a experiência diferenciada que cada MGS consegue garantir através de sua história estava em construção aqui. Passar por essa experiência para ver tudo desmoronar em Ground Zeroes foi a maneira que Kojima encontrou para tentar fazer o jogador entender os sentimentos de Big Boss durante sua guerra contra forças muito além de seu controle.
O Final de Ground Zeroes é catastrófico... Dramaticamente avassalador. Nós perdemos tudo eu disse no início do texto. Ao fim de GZ, Big Boss também perdeu tudo. Particularmente, acho interessante pensar que existam em mim e no protagonista do jogo sentimentos de perda e vazio nesse ponto da história fictícia que faz interseção com minha história jogando a série. Facilitou bastante para começar Phantom Pain, pois de alguma maneira bem maluca serviu como conforto ao me preparar para jogar o último Metal Gear de Hideo Kojima. Agora nada mais falta para o início de uma derradeira jornada permeada pela dor da perda de algo que deixou de existir anos atrás.
Cada um com sua própria dor fantasma.
Victor Von Doom
Doomstad
Agosto de 2019