Pra mim o espiritismo comete a maior desonestidade que uma religião pode cometer: tentar se vender como algo que não é, no caso uma ciência. Eu gosto muito desse texto do Bertone Sousa sobre o espiritismo:
Espiritismo: religião sim, ciência não
09/03/2013Bertone Sousa
O espiritismo é, atualmente, uma das religiões que mais crescem no Brasil. Segundo o último censo do IBGE eles representam dois por cento da população e estão concentrados, majoritariamente, nas regiões Sul e Sudeste. Apesar do baixo percentual, se comparado a católicos e protestantes, a quantidade de pessoas que professam o espiritismo vem crescendo substancialmente no Brasil nos últimos anos. É a religião com o maior número de adeptos alfabetizados. Mas uma de suas características é que pretende afirmar-se não apenas como religião, mas também como ciência. Não é raro ver seus adeptos defenderem essa posição. Eles pretendem que a mediunidade e a comunicação com os mortos sejam pressupostos científicos. Mas, que conceito de ciência poderia de adequar a essa visão? O “x” da questão está nas características que assumiu desde sua fundação.
Desde Galileu e Descartes, a modernidade fundou o pensamento científico como método por excelência de investigação da natureza. Até o século 19 a maior parte dos cientistas não via oposição entre essa investigação e a crença em entidades sobrenaturais que regiam o mundo. O espiritismo moderno fundado por Allan Kardec (cujo nome verdadeiro era Hippolyte Léon Denizard Rivail) nasceu no contexto em que a sociedade europeia vivia a euforia do cientificismo. Enquanto os positivistas anunciavam a criação de uma “religião da humanidade” pautada nos ideais da racionalidade científica, os dogmas da Igreja Católica perdiam terreno para o anticlericalismo dos intelectuais e movimentos revolucionários e de sociedades secretas como a maçonaria e a teosofia.
Respondendo aos desafios de seu tempo, Allan Kardec (que adotou esse nome por acreditar ser a reencarnação de um antigo sacerdote druida) não apenas funda uma religião como também produz toda uma concepção teórica em que pretendia expor sua doutrina com base no método experimental, sugerindo que a conversação com espíritos é não apenas algo natural, mas também objetivo, racional, passível de observação, de evidências empíricas, agregando todos os elementos de uma doutrina científica. A crença na comunicação com os mortos e na vida após a morte não é algo recente na história humana e os registros mais antigos dão conta de que existem há pelo menos 30 mil anos. Através de Platão, a filosofia antiga também criara uma concepção de mundo e de homem baseada na dicotomia espírito e matéria. No diálogo Fédon, Platão analisa o corpo como prisão da alma, sendo esta anterior à existência corpórea e sobrevivendo a ela.
O que Kardec fez no século 19 foi adaptar essa dicotomia e a doutrina da reencarnação ao modelo cientificista de sua época. Seguindo a tradição hindu, Kardec acreditava que a reencarnação proporcionaria ao espírito passar de uma condição inferior à mais elevada, sendo cada ciclo uma nova oportunidade de aperfeiçoamento e aprendizagem. Incorporando princípios da biologia evolucionista e depois do darwinismo ele postulava que o espírito jamais reencarnaria no corpo de um animal, jamais voltaria a um estágio inferior, sendo sua marcha sempre progressiva, afirmou em “O livro dos espíritos”. Mas ao mesmo tempo em que tenta incorporar as doutrinas científicas de seu tempo para dar legitimidade a sua obra, Kardec também coloca os problemas sociais como sofrimento, guerras, injustiças sociais e pobreza como causas unicamente espirituais. Dessa forma, o espiritismo legitima os desajustes sociais, naturaliza-os e retira dos agentes históricos as responsabilidades por sua existência.
Devido ao fascínio que as elites brasileiras tinham pela França, não tardou para que o espiritismo adentrasse aqui. A transposição do kardecismo para o Brasil o fez sofrer algumas modificações e a principal delas talvez tenha sido a predominância do aspecto religioso sobre o filosófico. O espiritismo nasceu do descontentamento com a religião hierarquizada, com a hegemonia do clero. Mantendo-se distante de querelas teológicas, valorizava a liberdade individual e cultivava a tolerância a outros credos, além de não sujeitar seus adeptos a rígidas normas de conduta, posturas que mantém até hoje. Não por acaso muitos intelectuais se filiam a essa crença. No entanto, as reinterpretações da doutrina não impedem que os espíritas brasileiros continuem a considerá-la “científica”, incorporando, inclusive, tendências contemporâneas como a mecânica quântica. Essa obsessão cientificista está tão fortemente enraizada na doutrina espírita que dificilmente seus adeptos podem perceber os equívocos nela presentes.
Mesmo a mediunidade não pode ser considerada um fenômeno científico como pretendem. Waldo Vieira, amigo e parceiro de Chico Xavier, já denunciou os casos de fraude que envolviam suas atividades de psicografias. Em um vídeo disponível no
Youtube ele conta que as pessoas mandam cartas com informações e detalhes para o médium colocar nas mensagens psicografadas e conclui que tudo é “jogo de carta marcada”. No vídeo ele diz:
Você sabe que essas mensagens psicografadas da pessoa que morreu assim, eles mandam uma carta com os detalhes pra pessoa colocar na mensagem psicografada. Tem médium que tá recebendo essas mensagens até hoje. Eu nunca recebi uma mensagem assim. Agora o pior disso é aquilo que eu falo pra vocês, a natureza humana não falha. Quando eu deixei o movimento espírita, mandaram umas cartas dessas pra mim pra eu receber a mensagem pra pessoa. Eu queimei as cartas, só pra não envolver ninguém. Então eles mandavam: o apelido dele é esse, a tia que ele gosta é essa, a madrinha dele é a fulana, ela mora assim e assim; o avô que ele gostava muito morreu no ano tal. Agora, eles mandavam essas cartas com tudo já mastigado pra você colocar. Tudo é carta marcada, jogo de carta marcada. […] Todo mundo que vai estudar isso acaba vendo porque vai encontrar isso aí. […] Tem médium até hoje que ainda tá recebendo essas coisas e fazendo aí um auê, né. Isso dá ibope, sabe, o processo é o seguinte: faz média com muita gente, etc. Então, a mãe faz média, o médium faz média, o centro espírita faz média, é um monte de coisas.
Essa fala de Waldo pode revelar apenas a ponta do iceberg que é o universo de fraudes espíritas. Ele faz questão de enfatizar que não participava disso, ou como se diz no jargão popular, tira o dele da reta, mas deixa escapar que recebia as cartas e as lia porque detalha seu conteúdo. Outro aspecto importante dessa fala é que ela explicita que a predisposição das pessoas para acreditarem no médium as leva a participar de uma espécie de pacto fraudulento fornecendo detalhes da vida do ente querido falecido. A fragilidade emocional certamente as deixa vulneráveis à sugestão e ao embuste e nesse sentido é muito sintomática sua frase de que “a natureza humana não falha”.
Ele também diz no início do vídeo que isso não abarca todos os casos de psicografia, mas apenas uma parte. A frase “tudo é jogo de carta marcada” não é surpresa pra quem tem uma postura cética em relação à prática da mediunidade, mas o fiel espírita, cético para com outras religiões mas não em relação à sua própria, reluta para não aceitar isso como uma prática corriqueira ou recusa-se a questionar as bases de sua crença. A ausência de um controle metódico do que se faz no ambiente espírita ou nos casos de psicografia e o próprio empenho dos fiéis para escamotear essas questões torna difícil para qualquer pessoa honesta compreender o que de fato ocorre abaixo da superfície.
No livro “O mundo assombrado pelos demônios”, Carl Sagan fez a seguinte observação:
Como é, pergunto a mim mesmo, que os canalizadores nunca nos dão informações verificáveis que nos são inacessíveis por outros meios? Por que Alexandre, o Grande, nunca nos informa sobre a localização exata de sua tumba, Fermat sobre seu último teoremaa, James Wilkes Booth sobre a conspiração do assassinato de Lincoln, Herman Goering sobre o incêndio do Reichstag? Por que Sófocles, Demócrito e Aristarco não ditam as suas obras perdidas? Não querem que as gerações futuras conheçam as suas obras-primas?
Recentemente, pesquisadores da USP divulgaram um estudo realizado em conjunto com outros cientistas de uma universidade na Filadélfia em que investigavam o que acontece com um médium quando entra em estado de transe. Descobriram que nos momentos em que realizam psicografia, por exemplo, o hipocampo esquerdo e o lóbulo frontal (responsável pelo raciocínio, planejamento e linguagem) apresentavam baixa atividade. Isso era perceptível nos mais velhos, que exercem a atividade há mais tempo; nos mais jovens essas áreas do cérebro continuavam a manter atividades normais, o que segundo os pesquisadores, indica que essas pessoas faziam maior esforço para realizá-la.
Mesmo as EQM’s (ou experiências de quase morte), narradas por pessoas que afirmam a sensação de terem saído do corpo após um estado de coma ou inconsciência, não são atividades paranormais consideradas definitivas para a ciência. Para alguns cientistas, essas experiências são resultado da liberação de endorfinas pelo cérebro como uma preparação para a morte. A vontade de acreditar deixa as pessoas vulneráveis à sugestão, o que é compreensível, pois afinal, para muitos seria insuportável a vida sem a noção de continuidade. Como numa brincadeira de faz de conta usamos as crenças religiosas para tentar enganar a morte, mesmo que pra isso as pessoas façam vista grossa ou ignorem o charlatanismo e a duplicidade dos que fazem canalizações, comunicações com os mortos, o que for. De qualquer forma, a ciência nada tem a ver com essas crenças.
É fato que a ciência não tem todas as respostas paras as questões existenciais, mas tentar transformar dogmas religiosos em doutrinas científicas é uma atitude espúria e desnecessária e os espíritas não são os únicos religiosos a fazerem isso. Ideias como reencarnação ou imortalidade da alma estão além de nossa capacidade de verificação empírica e são exclusivamente objeto de fé pessoal, assim como as noções de Deus, ressurreição, vida extraterrestre, etc. Isso não quer dizer que a ciência seja refratária à religião, pois nasceu dela e dialoga com ela. Mas não é igual a ela: a ciência investiga, experimenta, testa, mede, contesta, postula – essa é a postura científica e o espiritismo está fundamentado antes em dogmas incontestáveis do que nessa postura. Por exemplo: acredita-se que seus textos fundacionais (obras de Allan Kardec) sejam revelados e está pautada em crença na salvação (daí a valorização da caridade), numa divindade, em hierofanias (manifestações do sagrado), além de prescrições e interdições éticas e morais. Ora, sabemos que a ciência não trabalha com verdades reveladas nem com perspectivas salvacionistas ou pressupostos espirituais de natureza religiosa. A ciência moderna reconhece apenas a existência de matéria e energia no universo e não corrobora qualquer afirmação de continuidade da vida após a morte ou existência de seres imateriais.
Pode-se mesmo falar em “fé científica”, mas o que designamos por isso é bem diferente de uma fé religiosa. Como dizia Carl Sagan, afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias. A pretensão dos espíritas de tratar sua religião como ciência não faz sentido para um credo que possui dogmas, livros revelados e se apresenta a partir de um arcabouço de crenças religiosas, pois nada disso diz respeito ao conhecimento científico. A ciência pode nos precaver de charlatanismos, da sugestão e da desonestidade de líderes e tendências religiosas, mas uma vez que também não pode nos prover de um sentido último para a existência, pelo menos no sentido de uma continuidade da vida após a morte, as religiões podem preencher essa lacuna para aqueles que se contentam com suas explicações e significados; contudo, sua iniciativa de usurpar um lugar junto à ciência é espúria. Religião e ciência não falam sobre as mesmas coisas, não usam a mesma linguagem para explicar o mundo e não são complementares.