A Crítica Vista pelo Crítico
A entrevista a seguir foi realizada em julho de 1997 por Mário Vitor Santos, então ombudsman da Folha de S. Paulo.
À época, foram colhidos depoimentos de diversos outros críticos do jornal (não apenas de cinema), numa enquete sobre a atividade e os rumos da crítica de arte que se estendeu por duas das colunas dominicais de Mário Vitor – nas quais alguns fragmentos dos depoimentos foram citados.
A íntegra desta entrevista foi publicada pela primeira vez nas páginas da revista IDE, editada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. É esta a versão que reproduzimos abaixo.
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Para quem você escreve?
Eu tento não pensar nisso, ou pelo menos não fazer disso um problema. Num jornal com a penetração que tem a Folha, não há um público, há leitores. Existem as pessoas que procuram apenas um guia de consumo, isto é, a indicação de uma autoridade sobre se um filme é bom ou mau. Para essas, o critério de estrelas, ou de carinhas, serve como baliza. Mas a crítica propriamente dita é endereçada sobretudo ao leitor que procura um diálogo mais detido com o filme. É claro que toda pessoa pode estar em uma ou outra categoria, conforme a hora. Agora, há pouco tempo, numa entrevista a Veja, Décio de Almeida Prado falava da diferença entre o público de teatro dos anos 1950/1960 e o de agora. Ele diz que, naquele tempo, as pessoas viam uma peça de teatro e depois aquilo era motivo para conversa e reflexão, durante dias. Com o cinema não é tão diferente. O que se vê mais recentemente é a substituição de uma arte que nasceu popular por uma atividade de massa. É o que se pode chamar de cultura do blockbuster: a pessoa quer um filme agitado, com explosões, correria. Até aí, tudo bem. Não é por ter isso que um filme deixa de ter importância. Mas o que se está sedimentando, que me parece muito perigoso, é a ideia de que cinema é movimento. Muito bem. Estou até de acordo. Mas o que é movimento? Não é agitação. De algum modo, espero escrever para quem ainda se dispõe a fazer uma distinção entre essas coisas.
Quais os seus objetivos?
Eu penso que hoje existe um paradoxo: nós vivemos em um mundo povoado por imagens. Existe até a imagem como metáfora: a imagem de fulano, a imagem de um partido político. Hoje, a alfabetização para a imagem começa muito antes do que para as letras. Com alguns meses, a criança já vê filmes, já assiste comerciais de TV. Mas não existe nenhuma iniciativa pedagógica, ao menos que eu conheça, no sentido de difundir e sistematizar os conhecimentos sobre imagem. Então, nós somos indefesos diante da imagem. Por exemplo, sabe-se que os políticos usam técnicas para criar uma imagem, para se mostrar confiáveis. Como essas técnicas – que têm origem no cinema – são desconhecidas, nós não as apreendemos como técnicas. E nem apreendemos os políticos como imagens. Vamos imaginar, por exemplo, o ministro Paulo Renato. Quando ele cria o provão, está também criando uma imagem de si mesmo como administrador da educação, como alguém que zela pelos alunos, etc. Isso acontece quer ele queira, quer não. Agora, seria interessante que os alunos pudessem ter acesso a conhecimentos que os levassem a decifrar como se dá essa construção da imagem dos políticos. Como os secretários e ministros de Educação são políticos, é improvável que um dia a imagem venha a fazer parte do currículo. Mas então eu pergunto: para que tantas TVs e computadores nas escolas, se o instrumental para utilizá-los criticamente não existe? Essa é a questão crítica. A crítica não é dizer se tal filme é bom ou ruim, é uma tentativa de compreender o mundo.
Você acha que tem algum poder? Qual?
Há algum tempo, uma menina escreveu uma carta ao Painel do Leitor da Folha. Ela dizia mais ou menos o seguinte: todos os filmes de que eu e meus amigos gostamos, a Folha não gosta. Vocês não acham que, quando os filmes forem feitos para crianças, deveriam ser criticados por crianças? Eu acho que essa carta deveria merecer a maior reflexão. Existe uma desmoralização da crítica, é evidente, porque quando uma menina de 10 ou 11 anos acha que pode estabelecer uma escala de valores sobre uma arte, é que algo está muito errado. Essa menina viu Chaplin, viu Buster Keaton, viu os Irmãos Marx, viu Jerry Lewis? Não. Ela só pode ver esse lixo industrial, que é quase tudo que os cinemas passam. Quer dizer, os canais (de TV inclusive) são muito estreitos. Seja como for, quando a menina diz isso, deve ser escutada: não só coloca a crítica em crise, como nos lembra que a formação do espírito crítico – em matéria de imagem – pode ser desenvolvida desde muito cedo. E não é. Agora mesmo, está aí a exposição Monet. Alguma criança vai chegar e dizer: Olha, eu acho esse pintor uma bobagem? Não. Para o cinema, isso é muito bom, porque indica que não há uma ordem eterna, já constituída e assimilada. Mas é ruim pelo mesmo motivo, porque essa pessoa acha que o entendimento da imagem é imediato, não tem mediação alguma. Ora, a imagem não é óbvia. Existe um campo no qual isso acontece de maneira saudável, que é a MPB. É um assunto que qualquer brasileiro sabe discutir com pertinência. Você pode divergir sobre o presente. Mas ninguém precisa dizer que Noel Rosa ou Cartola, ou tantos outros, são auto-res preciosos: todo mundo sabe, desde a infância. Em outros setores, não. O professor vai te ensinar que Guimarães Rosa é bom. E você vai engolir aquilo, goste ou não, porque senão não passa de ano. Também não é uma situação perfeita. Penso que poderia haver um meio-termo entre os critérios estabelecidos e a rediscussão das coisas, que é a experiência de cada um em relação a ela. Ninguém tem obrigação de ler Guimarães Rosa, acho até difícil gostar. Mas, se não forçar um pouco, você se entrega à preguiça e não lê o livro nunca.
Agora, há outra maneira de responder à pergunta: a palavra impressa tem uma força, uma violência de que a gente tende a não se dar conta. É óbvio que se você escreve sobre um filme infantil tomando Dreyer ou Eisenstein como paradigma, é sinal de que está um tanto perdido. Há temas, como a sexualidade, vitais para quem está na adolescência. Dizer que tal comédia é ruim só porque é erótica me parece uma atitude tão acrítica quanto o inverso, quer dizer, aceitar qualquer coisa só porque visa a esse mercado. Os adolescentes são adolescentes, não são imbecis. Para resumir: quer queira, quer não, você tem um certo poder. O problema é que você não controla esse poder, porque a rigor ele diz respeito ao jornal, à crítica como instituição, não a tal ou tal fulano. Em compensação, você tem uma responsabilidade que, essa sim, é pessoal. Esse poder exerce-se em relação aos pequenos filmes, que saem com uma ou duas cópias. O que o jornal diz ou deixa de dizer sobre um filme do Spielberg, por exemplo, não faz a menor diferença. Para quem escreve a quente, de uma hora para outra, é lógico que é mais confortável falar sobre filmes que estão fora do seu alcance. Quando você fala de um pequeno filme, sempre pensa que pode estar interferindo na recepção do público ao filme, o que é muito ruim.
Você acha que o crítico tem obrigação de achar alguma coisa, alguma falta a registrar?
Quando eu comecei a trabalhar em cinema, eu era assistente de um diretor chamado Ozualdo Candeias. E, certo dia, eu disse a ele que uma cena ficaria melhor se ele a fizesse de tal jeito, e não como ele fez. E o Candeias, que é um cara de poucas palavras, virou e disse: Falar é fácil, fazer é difícil. É uma coisa de que eu não esqueci, porque a rigor quer dizer o seguinte: quando você vê um filme, sua obrigação é tentar – pelo menos tentar – entender o que vê, e não ficar imaginando o que você faria se estivesse no lugar do cara que filmou aquilo. Em suma, a questão não é achar defeitos. Agora, por minha formação – eu fui montador de cinema –, sou tentado a encontrá-los. Sempre pensava que o montador era o primeiro crítico do filme, o sujeito que está lá para achar defeitos e suprimi-los. Então, defeitos existem. Tento não tratá-los de maneira mesquinha. Por outro lado, essa pergunta traz implícita uma outra: o que é a crítica? Há duas definições de que eu gosto muito. Uma é a de Jean Douchet. Ele diz que a crítica é a arte de amar. E o que significa isso? Nós vemos um filme, gostamos dele, tentamos explicá-lo, defendê-lo. E claro que não se ama indiscriminadamente – nem no cinema, nem na vida –, então você não pode gostar de tudo. Para gostar de certo filmes, é preciso que outros não despertem teu interesse, não te mobilizem, às vezes por razões estéticas, outras por motivos pessoais. Mas, como disse há pouco Rodrigo Naves, um crítico só se afirma pelo que defende, nunca pelo que nega. Negar faz parte do trabalho, mas não é o essencial. A segunda definição é de Roland Barthes. Ele diz que criticar quer dizer pôr em crise.
Isto é, nosso trabalho é, de certa forma, desmontar a ordem estabelecida. É claro que Barthes, ou Truffaut, faziam isso e eu talvez não consiga fazer. Mas vale a pena tentar. Caso contrário, você fica sendo pombo-correio da indústria de cinema, fica dizendo o que eles querem que seja dito.
Você se arrepende de alguma crítica que fez? Qual?
Arrepender é uma palavra forte. Significa que eu coloquei motivos pessoais à frente dos estéticos, que quis fazer mal a alguém. Isso eu nunca fiz. Mas às vezes eu revejo tal ou tal filme, tempos depois, e percebo que o que eu disse estava errado. Às vezes, nem preciso rever o filme. Converso com um amigo, ele me aponta coisas que não notei e muda a minha opinião. Mas a questão principal não é essa. Se sua crítica tem valor de uso – tenta ser reflexiva, inserir o filme numa história, numa tradição, etc. – a questão do arrependimento não existe. Agora, se ela tem meramente um valor de troca – aconselha o público a ver ou não tal filme –, se tenta interferir no mercado, talvez haja razão para arrependimento. Pega uma filme como Antes da Chuva, por exemplo, que muita gente acha ótimo. Eu acho uma bomba, uma mercantilização vil da guerra, portanto tenho de dizer isso. Mas por que dizer não veja? Se a pessoa não vê muitas coisas diferentes, discrepantes, nunca chegará a formar sua própria opinião. O ideal é que as pessoas façam sua experiência da coisa. Quando isso acontecer, e se acontecer, a crítica deixará de ser confundida com juiz de futebol, o cara que apita falta, diz se foi gol ou não. E essa é a parte chata da coisa. Há que se acrescentar uma coisa. No Brasil, existem duas distorções. Uma delas, a que você se referiu, é a tendência a confundir crítica com prepotência. O fato de você dispor de espaço num veículo de grande circulação leva o sujeito a se achar meio demiurgo, a pensar que pode pôr e dispor, a determinar o sucesso ou não de um objeto artístico qualquer, o que é um desvio demiúrgico idiota. A História é que vai dizer se você estava certo ou não, se tal filme permanecerá ou não. Existem grandes críticos, como André Bazin, por exemplo, do qual deriva praticamente todo o pensamento cinematográfico moderno. Mas os autores que Bazin defendia – William Wyler, por exemplo – se mostraram bem menos duradouros do que outros de que ele desconfiava, como Hitchcock ou Howard Hawks. Então, os juízos imediatos de Bazin não foram os melhores, mas suas ideias é que levaram outros a juízos que se mostraram corretos. Então, esse terreno é muito difícil. A crítica não é ciência. É mais fácil compará-la a um jogo de futebol. Você faz jogadas, elas às vezes dão certo, às vezes, não. A segunda distorção, mais séria, é uma certa cultura do não me toques, que existe aqui. Essa história de o artista se julgar um demiurgo, um profeta, alguém necessariamente acima da crítica. No ano passado, o Jorge Coli publicou no Mais! uma crítica sobre um espetáculo do Oficina que me pareceu muito justa. Justa ou injusta, não importa. Na semana seguinte, o Zé Celso escreveu um artigo de umas duas ou três páginas, completamente vazio, para desqualificar a crítica. Eu digo para desqualificar. Não para defender o que fez, o que seria justo. Eu também acho, como Jorge Coli, que Zé Celso hoje é uma sombra do que foi no passado, mas isso é outro assunto. Eu acho muito justo um artista defender e explicar o seu trabalho. Às vezes você não compreendeu mesmo o que o cara quis fazer. Agora, essa história de achar que o artista é uma figura meio sagrada, essa espécie de neorromantismo tecnológico, fica um pouco ridículo, isso. Não há diferença, a rigor, entre crítica e criação na modernidade. Todo grande cinema, desde os anos 1940, pelo menos, é crítico. Todos na Nouvelle Vague eram críticos. Wim Wenders era crítico. Lindsay Anderson, também. Pega o Fassbinder, tem uma série de artigos notáveis sobre Douglas Sirk. No Brasil, cada entrevista do Walter Lima Jr. ou do Carlos Reichenbach, por exemplo, são peças críticas finíssimas. Quer dizer, o cara não precisa nem escrever, nem publicar, mas todo o cinema é uma reflexão sobre o cinema já existente. Quando você pega o capítulo do Scorsese na série Cem Anos de Cinema, o que é aquilo? Grande crítica, só isso. Não admira que ele seja um grande cineasta. No Brasil, em matéria de cinema, existe um problema adicional. Como a produção é muito frágil, como os grandes circuitos são associados aos estúdios americanos, o cineasta sempre espera que você seja uma espécie de aliado.
Então ele faz um filme banal e espera que você diga que não, que aquilo é uma beleza. Há pouco tempo, o Alain Fresnot veio com essa história. Paulo Emílio é que era bom. Paulo Emílio sempre mandava ver os filmes brasileiros. Ora, leia o Paulo Emílio: não é isso que está lá. Isso corresponde a um momento específico, polêmico, em que ele queria chamar a atenção para o estágio colonial em que vivíamos. Isso é uma coisa, e foi muito importante. Agora, você não vai ficar a vida toda fazendo isso. Em dois meses, o leitor ia perceber que você estava fazendo uma tapeação. Isso é postular o acriticismo como crítica. É confortável para o cara, sem dúvida. Em vez de ralar, de ter ideias, você diz: é brasileiro, então é bom. É confortável, mas não leva a nada, vamos falar o que é.
Em seu trabalho, você sente alguma necessidade de fugir do gosto médio?
Se fosse possível saber o que é gosto médio... O que é? O gosto médio é uma superstição de que o jornalismo precisa, a fim de avaliar o que vai dar no alto da primeira página e o que vai ficar na parte de baixo da página 4, digamos. Você já perguntou sobre o poder do crítico. Não é de hoje, o crítico tem algum poder quando se trata de um filme pequeno, lançado com uma ou duas cópias. Quando se trata de um blockbuster, que entra com 50 ou 60 cópias, de um filme que concorreu ao Oscar, não. Eu posso escrever o quanto quiser que O Paciente Inglês não é tudo isso. A questão é que o mecanismo de marketing montado é muito sofisticado e muito agressivo. Muito antes de o crítico entrar em cena já houve matérias sobre a filmagem, o lançamento nos EUA, as indicações ao Oscar, etc. É uma questão publicitária, não é cinematográfica. Então, eu penso que o crítico deve responder, tanto quanto possível, pelo cinema, pelo que ele vê, pelo que há de subjetivo (sua experiência pessoal) e de objetivo (a história da própria arte), porque a observação da arte comporta uma parte objetiva e outra subjetiva, como escreveu Giulio Carlo Argan. Agora, ao mesmo tempo essa pergunta é muito ampla, porque você pode remontar toda a história do cinema, desde a sua constituição, quando era uma diversão de feira. Para resumir, me parece importante fugir de conceitos como o de gosto médio, do qual a gente deveria se aproximar ou se distanciar.
De alguma maneira, você leva em consideração os sentimentos da pessoa que criou a obra criticada?
Sim, embora isso não tenha a ver com a crítica propriamente dita. É uma atitude diante das coisas. Não gosto de ser agredido, e também não gosto de agredir ninguém. Mas, fatalmente, se eu não gosto do filme, e por mais respeitosa que seja a forma como minha discordância é exposta, as pessoas não apreciam. Se, ao contrário, eu gosto, elas apreciam. Na verdade, a circulação de sentimentos numa crítica pode ser enorme. Se eu disser que não gosto de Antes da Chuva, um filme com muito prestígio entre espectadores letrados, e eu não gosto, tenho de ir com jeito, senão quem se ofende é a pessoa que lê. Já não me lembro quem disse que todo homem, fora de sua especialidade, é um ingênuo. Com o cinema não é diferente. Aí vem aquele filme contra a guerra, todo mundo é contra a guerra, a pessoa diz: É um bom filme. Esse é um aspecto delicado, porque se você pegar pesado a pessoa que gostou do filme vai se sentir insultada, como se estivesse sendo chamada de idiota. Por isso é importante ir com calma e, num caso como esse, mostrar como, num filme, o assunto é apenas um dos aspectos e que, em suma, você pode ser contra a guerra sem gostar desse filme, e pode gostar de um filme do John Woo e ser contra a violência. Em alguns momentos, porém, você precisa marcar as diferenças com clareza. Quando o Godard faz JLG por ILG, e o Godard hoje é um cara estigmatizado pela cultura de massa e por causa da cultura de massa, aí é preciso ser até violento na defesa. No mais, penso que existe uma mudança curiosa, que é cultural, não diz respeito à crítica, nem ao jornalismo. Eu leio críticas desde a adolescência, pelo menos, e com certeza aprendi muito mais com críticos dos quais discordava. De alguma forma, eram os que mais me ampliavam os horizontes. Será que isso era uma atitude pessoal? Não creio. Há alguns anos, o mundo ainda era mais constituído. Se o sujeito passava a vida inteira estudando um assunto, você pelo menos admitia que ele tinha alguma coisa a dizer sobre aquilo. Hoje, o leitor de jornais não se toma mais por um leitor, mas por um consumidor. Então, ele quer que o produto – a crítica, no caso – corresponda exatamente àquilo que comprou. Ou seja, que esteja de acordo com ele. Existia um corpo a corpo, uma vontade de entendimento que, no fim, era interessante para todo mundo, e que não existe mais. Eu acho muito saudável combater o critério de autoridade, mas não sei se é isso que acontece. É uma espécie de indiferenciação. O sujeito vai ao cinema uma vez por mês. Ele olha a cotação de um filme como, digamos, A Estrada Perdida, de David Lynch, na Folha. Ele vai lá, acha que aquilo é um filme sem pé nem cabeça e escreve uma carta para o jornal dizendo que o filme é muito mal feito e os críticos são uns idiotas. Essa pessoa nem leu o que estava escrito. Só viu as estrelinhas, não gostou do filme e a primeira coisa que pensa é em reclamar. É incrível, isso. Existe um império da subjetividade – o que eu acho é certo, é o que vale – mais ou menos completo. A partir daí, não existe mais possibilidade alguma de entendimento. É uma pane. O cinema não tem mais a ver com entendimento. Mas eu pergunto: as outras coisas têm? Não. Elas também respondem aos mecanismos de marketing. Você tenta ir ao MASP para ver o Monet e está abarrotado. Você vai a um museu a dois quilômetros dali e o museu está às moscas. Há alguma coisa que não funciona.
Como crítico, você acha importante considerar as intenções do criador?
É uma questão que embute um mito. O que são as intenções do criador? Ninguém sabe. Qual era a intenção de Leonardo? Qual a de Shakespeare?
O que você tem atualmente são entrevistas do diretor, ou do produtor, ou do ator, que são em geral peças publicitárias, nas quais eles dizem o que lhes convém. O único esforço crítico possível é afastar essa sombra da intenção, da interpretação. E ver o que está no filme. Veja: até os anos 1950, o Hitchcock, o Howard Hawks não valiam nada. Eram considerados apenas bons diretores de filmes comerciais. Aí vieram os jovens turcos dos Cahiers du Cinéma e revisaram tudo. Não foi fácil. Lendo hoje os artigos de Truffaut, Rohmer, Godard, Rivette, Douchet, você percebe que eles tiveram até de se opor com certa violência ao André Bazin, que era o mestre que todos reverenciavam, para impor esses cineastas. E qual a particularidade dessa operação? É que esses cineastas eram extremamente populares. Então, os Cahiers são um momento em que o pensamento crítico e o gosto popular se encontram. Vendo retrospectivamente, nós podemos observar que, sobretudo para o cinema americano, o público tinha um olhar muito mais sofisticado, muito mais aparelhado que o dos críticos da época. Por que isso? Porque os críticos interpretavam. Eles não olhavam. Eles viam a literatura atrás da imagem. Essa é a grande lição dos Cahiers. É ter visto o cinema como arte autônoma. Fizeram para a crítica mais ou menos o que Griffith fez para o cinema. O que aconteceu de lá para cá, porém, é curioso. O cinema se elitizou. E o público passou, ele próprio, a interpretar, a procurar significados ocultos. Quer dizer, um público com formação literária é que passou a ditar o gosto e daí, talvez, é que tenha nascido o filme de arte, no mau sentido da palavra, esses filmes cheios de pretensão, cheios de coisa, mas que, você vai ver, não servem nem para lamber as botas de um Murnau, de um Fritz Lang. Por fim, você tem uma reação a isso, que é o Spiel-berg, o blockbuster. No início, é sensacional. Tubarão é um grande filme. O problema é que depois vai se criar – talvez não seja culpa dos filmes, mas de outras coisas da vida – um outro público, bem atual, que não é nem literário, nem popular, mas é o que cria a ignorância militante. Ele tem nostalgia do cinema original, inocente, dos velhos seriados. Ele quer que
o tempo volte, que o velho cinema popular volte a imperar. Mas, como o tempo não volta, as contrafações são abundantes. E quando você tem um belo filme popular, como O Segredo, de James Foley, ou Um Sonho de Liberdade, ou os do Clint Eastwood, acabam quase passando em branco, não raro.
O que você acha da afirmação segundo a qual os críticos pertencem à espécie dos autores frustrados, a avaliar obras que eles não teriam competência ou coragem para buscar realizar?
Faz algum tempo que não escuto isso, o que de certo modo é mau sinal. Significa que o crítico, o especialista, a autoridade se tornou um mediador indispensável, quando na verdade deveria ser só um interlocutor, aquele com quem você discute o seu próprio entendimento do filme. Essa interlocução costumava ser mal compreendida por algumas pessoas, que viam no crítico uma espécie de sujeito interferente no seu prazer. Talvez a época atual seja de institucionalização, de assentamento, como resposta aos anos 1960/1970, quando ninguém sabia seu lugar. Os estudantes ensinavam, os professores iam para o campo, como aconteceu na China. Então, já faz tempo que não escuto esse tipo de afirmação. Seja como for, ela é curiosa. De um modo geral, se penso nos meus colegas, é uma injustiça. Acho que Sérgio Augusto ou o Rubens Ewald estão perfeitamente felizes como estão. De quem faz crítica, acho que o único a quem você pode chamar de autor frustrado sou eu mesmo, que me preparei a vida inteira não para ser crítico, mas para realizar. O problema é que, quando eu estava pronto para isso – havia feito um episódio de um longa-metragem –, o cinema entrou em pane. Ao mesmo tempo, a Folha me convidou para escrever, isso em 1983, e eu vim. Desde então, arquivei minhas pretensões. Há frustração nisso, claro, porque existe uma renúncia. Mas escrever também me dá muito prazer, e a formação que tive de algum modo me possibilita defender o cinema de que eu gosto. É claro, às vezes eu vejo um filme tão vagabundo que penso que o dinheiro empregado nesse abacaxi estaria melhor em minhas mãos. Mas é uma coisa que passa rápido. O cinema, fazer cinema, no Brasil dá muito mais dor de cabeça do que outra coisa. Meu romance Casa de Meninas foi originalmente um roteiro. Com mais frequência eu fico pensando que eu, no fim, é que estou com a melhor parte da coisa.