Hans K acordou com a sensação de que o despertador era como um capataz, que lhe arrastava para uma forca. Como em toda manhã, abrir os olhos sempre lhe causava imenso desconforto, e mesmo algum lamento, ainda que não soubesse precisar do que, exatamente, o recobrar da consciência o sequestrasse: Hans raramente lembrava seus sonhos.
O curioso, que sempre o colocava em estado de reflexão, ainda deitado na cama, é que também era muito difícil para ele adormecer. “ Se é tão maravilhoso esse descanso... por que, por que tenho tanta dificuldade em simplesmente entregar-me a ele?”.
Não haveria de ser mera ansiedade, pois, há tempos, aprendera a lidar com ela. Manter a cabeça no lugar, sem se deixar abalar por preocupações prévias, era uma exigência intransponível em sua atividade profissional. Como ele logo havia percebido, a advocacia geralmente reservava, aos incapazes de por os nervos no lugar, apenas dissabores.
Acabava por concluir se tratar de uma das manifestações do boicote que impunha a si próprio, uma característica sua, conforme dizia seu terapeuta. Ou, pensava, talvez fosse uma tentativa inconsciente de dar mais valor às suas experiências, outra necessidade que descobriu possuir, quando soube que, em relação às suas vivências, “tinha dificuldades em se permitir” – de acordo com seu médico ( cuja própria existência Hans só lembrava precisamente nesses momentos de reflexão, ainda na cama).
Naquela noite, contudo, havia sido particularmente difícil para Hans adormecer. Recebera, ainda à tardinha, uma intimação, para comparecimento em uma audiência, a ser realizada já no primeiro horário da manhã do outro dia, em um processo cuja origem, ainda que se esforçasse, não era capaz de lembrar.
É verdade que ele tinha dezenas, centenas, milhares de clientes. Não obstante tivesse dificuldade em se assumir um jurista apaixonado, propusera-se cultivar, ainda que por exaustiva repetição, afeição por sua profissão. Assim que, não tardara em ser profissionalmente reconhecido, mesmo ainda jovem- vivia, naquela oportunidade, os idos de seus 30 anos de idade.
Tal realidade profissional habituara Hans a um pragmatismo, antes para ele inédito, já que havia sido um adolescente um tanto desorganizado e disperso, bem como uma criança tida por seus pais como “ sonhadora”. De modo que, à ocasião, poderia jurar ser capaz de lembrar de todos os processos em que estivesse envolvido.
Mas uma audiência na comarca de “Presepópolis”- cidade cuja existência foi tomar conhecimento pela internet , representando a “sra. A. B.”, às 8 horas da manhã? Realmente não lembrava.
Tampouco a consulta ao endereço eletrônico do juízo serviu-lhe de muito, eis que, embora realmente houvesse o registro de processo sob aquele número, estando ele constituído como advogado, curiosamente, em relação ao assunto do processo e definição das partes, constava a existência de “ Segredo de Justiça”. Ademais, por se tratar de juízo do interior, não era possível precisar exatamente a matéria que seria discutida, embora ele presumisse ser algo relacionado ao direito empresarial, onde atuava majoritariamente.
Essas circunstâncias puseram Hans a refletir, ainda mais do que o habitual, madrugada a dentro, antes de, finalmente, pegar no sono.
Um piscar de olhos depois, restou-lhe acordar, com o indefectível aviso do despertador. O dia não havia ainda raiado, mas já era preciso rumar à Comarca interiorana onde, pessoalmente, haveria de recordar do que se tratava o processo.
Conquanto a perspectiva de simplesmente não lembrar de nada relacionado àquele caso pudesse lhe causar calafrios ( por se tratar de algo quase inédito em sua vida profissional), a vivência de inúmeras e bem sucedidas experiências na advocacia mantinha Hans confiante, a ponto de não se deixar desesperar. Assumiu,então, seu tradicional hábito, em ocasiões que antecediam audiências: pôs no rádio música clássica. Assim, foi acompanhado, durante toda a viagem, pela Nona Sinfonia de Beethoven.
A música nessas circunstâncias o ajudava a adentrar em um estado de espírito desconexo, em que ele deixava seu pensamento o guiar para o horizonte, sem mirar qualquer ponto em específico. Era como se fosse uma meditação, e Hans a percebera necessária porque, anos antes, ainda no início da carreira, havia tido algumas experiências não tão agradáveis.
Em meio a mais de uma audiência, o jovem advogado se vira, repentinamente, transportado para muito distante do local onde se encontrava. Somente quando a voz ao longe o chamava “ Alguma pergunta à testemunha? Doutor? DOUTOR HANS...”, ele era resgatado à realidade, não sem que a situação sempre o deixasse bastante confuso.
Assim que, ele percebera no ritual musical uma oportunidade, na qual buscaria condensar isso, que assumia se tratar de uma “tendência à dispersão”. As notas sacras de Bach, o romantismo de Chopin, o ímpeto de Mozart, e a genialidade de Beethoven haveriam de estimular essa sua predisposição à íntima reflexão, mas anntes das audiências, não calhando sua concentração de abandoná-lo, quando dela precisasse. A estratégia parecia ter dado certo, pois episódios semelhantes não mais se repetiram.
Tratou, portanto, de se deixar envolver o máximo que pode pela composição lírica de Ludwig, durante a viagem, deixando na realidade apenas seus reflexos mais elementares de direção.
Ao chegar na cidade, embora não soubesse o que dela esperar, Hans não se sentiu propriamente surpreso. Havia uma igreja, de arquitetura barroca, ao redor da qual uma praça, em que algumas pessoas de maior idade- cuja aparência remetia à colonização alemã- encontravam-se sentadas. Havia ainda uma ou duas mães, vigiando seus pequenos filhos, que se aprumavam atrás de um vendedor de algodão doce.
O cenário remeteu-o a muitas das comarcas que visitara no interior, levando-o estacionar o carro e procurar, ao redor, pelos logradouros públicos que, nesse tipo de cidade, geralmente se encontram estabelecidos nas proximidades da praça. Logo encontrou a prefeitura, uma delegacia, bem como outros órgãos públicos. Mas não conseguia vislumbrar o prédio da Justiça da cidade.
Aproximou-se, então, de um senhor, a quem questionou a respeito:
-Bom dia, senhor. Saberia me informar onde fica o Foro da cidade?
O homem, um senhor de barba espessa, aparentando uns 60 anos de idade, deteve-se, encarando-o por um momento. Então, disse-lhe:
-Buenas... o senhor doutor é novo por aqui? Não me lembro da tua cara...É o filho adevogado da dona Frederica, que tava pra vir dos estrangeiros?”
- Não, senhor... chamo-me Hans. Fui intimado para uma audiência nesta comarca, que será dentro de 10 minutos. Mas não sei onde fica o Foro daqui.
- Oh!- exclamou o velho, parecendo curioso- bem, o senhor sabe. Aqui em Presepópolis não é comum a gente termos a visita de gente de fora. Ainda mais de pessoas garbosa, com roupa de doutor...não tem muito adevogado aqui não. Eu só conheço um só, que é o doutor Calisto, que é filho da minha vizinha Rosa. Bom guri, esse dr. Calisto... ele qui me ajudou a me encostar, quando me deu uma labirintite. Eu até queria continuar, doutor, juro pro senhor, mas não dava não. Toda hora eu tava tonto! Ah!... o senhor precisa ir lá pra ver o juiz, né? E eu segurando o senhor aqui... o senhor me desculpa. Bem, tá vendo aquela ruela, pro lado ali da prefeitura, onde têm aquelas árvre?- o homem apontou para uma rua estreita, que ladeava a prefeitura pela direita- o senhor segue sempre ali por ela, dali a cinco ou seis quadra, tá o prédio das Justiça. Mas acho que nem abre agora por esses horários... o senhor tem certeza de que o juiz te chamou agora? O dr Calisto, esse, que saberia dizer pro senhor. Sabe, ele ajudou um amigo meu num processo e..”
-Muito obrigado- interrompeu-o Hans, que temia se atrasar para a audiência (o que não acontecia no seu dia a dia).
A rua ao lado da prefeitura era realmente estreita, e Hans decidiu que seguiria a pé até o foro, julgando que isso lhe faria economizar tempo.
Caminhou, durante duas ou três quadras, passando por casinhas simpáticas, que lhe levavam a crer estar em direção a uma parte mais residencial da cidade. Havia então alguns descampados, e Hans se preocupou, pois não via nada que pudesse lembrar um prédio da Justiça. A não ser uma consstrução, ao fundo, após dois terrenos baldios, para onde rumou, apostando todas suas fichas ( e já temendo estar no caminho errado).
Ao se aproximar, vislumbrou um prédio, sóbrio e antigo, onde se lia, em um pequeno Letreiro sobre a entrada, “ Justiça de Presepópolis”. As portas do prédio se encontravam abertas, embora, estranhamente, ele não tenha deparado com ninguém na entrada.
Pensou então que o guarda do prédio pudesse estar no banheiro, ou ocupado vigiando algum carro ( embora não tivesse vislumbrado qualquer carro no local). Não tinha tempo, porém, de procurá-lo e apresentar-se, de modo que, ao ler em uma pequena placa ao lado da escada “ Sala de audiências: segundo andar”, tratou logo de subir.
Havia então uma pequena porta, a única que viu no andar, e que se encontrava semiaberta. Hans olhou ainda antes no relógio, e viu que o ponteiro virava, naquele exato instante, para as 8 horas em ponto. Adentrou, decidido, na sala.
A cena com que se deparou surpreendeu-o ainda mais do que poderia imaginar.
Como em qualquer outra sala de audiências, havia uma mesa, em sentido de U, com cadeiras em cada uma das pontas. No entanto, não havia ninguém, nem nada no local. Absolutamente nada, além da mesa e das cadeiras. A não ser uma caixa, ao lado de um par de calçados, que se encontravam sobre a mesa, justamente em frente a onde Hans se sentaria, como advogado da parte autora.
Tomado de um ímpeto repentino, Hans aproximou-se dos objetos.
O par de calçados ele reconheceu como sendo uma bota Salomon, cuja numeração era, para seu espanto, exatamente a dele: 42. Lembrava-se bem daquele calçado, pois fora um sonho de consumo em sua adolescência (quando tinha por hábito caminhar muito) que ele, infelizmente, não pudera realizar.
Ao abrir a caixa, percebeu que havia três objetos: dois tíquetes, e um envelope. Olhou atentamente o primeiro tíquete. Tratava-se de uma passagem de avião, com destino previsto para Paris. Estava em seu nome. E o horário de embarque era às 7 horas da manhã do outro dia.
O outro bilhete, em francês, tratava-se de uma passagem de trem, com destino de Paris para Saint Jean Piet de Port, em um horário em que ele calculou ser aproximadamente logo após a aterrissagem do avião.
Decidiu então abrir o envelope, esperando entender alguma coisa em meio àquela situação surreal. Havia nele um bilhete, com breves dizeres, que ele apressou-se em ler.
“ Que bom que você atendeu ao meu chamado, meu caro Kel.
Essas duas passagens são para você chegar até Saint Jean Piet de Port. Caso você não saiba ( o que eu honestamente duvido, conhecendo-o como conheço), trata-se do início do Caminho de Santiago da Compostela.
Eu te espero ao fim dele, onde você entenderá tudo.
Com amor, Ana Boulos.”
Hans permaneceu, durante alguns instantes, inerte, olhando para o bilhete. Leu-o e releu-o. Pô-lo então no bolso, juntou os tíquetes e a bota na caixa, e saiu da sala.
A primeira coisa que fez, depois disso, foi descer e procurar por alguém no Fórum. Mas, para seu espanto, continuava tudo deserto. Ladeou o Foro pelos lados, foi para seus fundos: ninguém.
“ Só estou esperando o momento em que eu acorde disso tudo... que não seja no meio de uma audiência!” ele pensou.
Então passou próximo a uma lixeira, tendo decidido colocar todos aqueles objetos fora. Tinha-os como uma espécie de materialização de seu delírio.
Deteve-se, no entanto, em frente à lixeira. Decidiu levar a caixa, e pensar melhor a respeito- se é que isso seria possível- em casa.
Ao olhar para o relógio, percebeu que já eram 9h:20. Como no mesmo dia ainda tinha outras duas audiências marcadas, uma ainda às 11 da manhã, apressou-se em direção ao seu carro, pensando já em como seria difícil manter a concentração nas solenidades, diante de tudo o que o cercava naquela manhã tão atípica.
Ao fim daquele dia, Hans deitou-se e, como de praxe, preparou-se para uma infindável reflexão, antes de finalmente entregar-se à inconsciência. No entanto, antes mesmo que percebesse, estava já entregue à escuridão.
Acordou logo depois, com o chamado do despertador. Eram 6 horas da manhã.
Hans prostrou-se de costas para a cama, olhando para o alto, na posição em que costumava permanecer, todo dia, e refletir sobre estar dormindo e qcordado
Mas, dessa vez, sua reflexão desenhou-se em apenas um questionamento:
“ Que ópera ouvir em uma viagem até Paris? Hum... acho que as 4 Estações de Vivaldi seriam uma boa...”
Levantou-se logo e, sem saber exatamente como ou por quê, pegou a caixa e se pôs em direção ao aeroporto.